BEDA / Uma Leonina

Há 35 anos, numa noite de 12 para quase 13 do mês de Agosto, vinha à luz terrena, Romy. Desde o anúncio de sua chegada, ela revolucionou a minha vida e me transformou numa pessoa melhor — um pai. Diferente do que foi ontem, na época, o Dia dos Pais foi comemorado um dia depois. Desde então, percebi que ser pai é padecer no céu das incertezas. Para tornar tudo mais emocionante, a Romy (@romyzeta) se apresentou ao mundo trazendo um problema de origem hereditária.

Vim a conhecer a Anemia Falciforme — uma doença caracterizada pela alteração dos glóbulos vermelhos do sangue, tornando-os parecidos com uma foice, daí o nome Falciforme. Essas células têm sua membrana alterada e rompem-se mais facilmente, causando anemia. Eu nem falaria dessa deficiência se não fosse algo que demanda e demandou um esforço tremendo para que ela tivesse uma vida “normal”, dentro do que fosse possível. Apesar de muito sofrimento físico dela e psicológico, do resto de nós.

Esse “pormenor” envolve o funcionamento de toda a família, alterando ou direcionando planos e estratégias de todos os envolvidos, ou melhor dizendo, além de mim, todas — Tânia (@tanort), sua mãe, e irmãs, Ingrid (@ingriidortega) e Lívia (@liviaortega). Se há alguma coisa que me encanta neste mundo é a união, ainda que haja eventuais desavenças, das meninas da Família Ortega. A personalidade leonina da Romy tanto encanta quanto causa agitação na dinâmica familiar.

No entanto, não existiria a minha família se ela não viesse a este plano, anunciada em dezembro de 1988 numa imagem de ultrassonografia. Eu me lembro de tê-la mostrado à minha mãe na cozinha da casa da Vila Dionísia, dizendo que era uma foto de meu futuro (algo intangível). Ao qual abracei e celebro hoje como sendo a minha vida de marido, pai e, espero, de amigo, delas e de quem as ame, como eu.

Feliz Dia da Romy, meu amor!

#Blogvember / Homem De Lata

Coração transplantado procurando resquícios do que já foi humano (Lua Souza)

Escultura de Paulo Da Luz (Paizdalu)

Comecei a ficar cansado por qualquer esforço que fazia. Frequentemente, o ar me faltava. Com os irmãos fora do País, separado da Sônia há alguns meses, meus filhos longe de mim, já casados, não tinha ninguém com quem me queixar – meu passatempo favorito. Devido ao meu típico mal humor, nem meus amigos de copo me aguentavam mais.

Já aposentado, eu me restringia a torcer por meu time em jogos na TV. Antes, uma das minhas poucas diversões era ir ao estádio para xingar Deus e o mundo – do juiz aos jogadores, passando pelo técnico. No meu antigo trabalho, no escritório da transportadora, era conhecido pelo meu rigor no trato dos caminhoneiros, que eu julgava complacentes e indisciplinados. Para faltarem à lida, era sempre algum problema familiar, um filho doente, a mãe que morria, uma esposa que arranjava outro pelas seguidas ausências do marido…

Sônia, nesse aspecto, teve bastante paciência.  Aguentou o quando pode a minha animosidade. Quando me aposentei, ela disse que não suportaria conviver cotidianamente comigo em casa. Decidiu voltar para a casa da mãe, que estava doente, para cuidar dela. Aproveitou para pedir separação. Agora esse cansaço, dores nas costas, respiração ofegante. Criei coragem, pedi um transporte e me dirigi ao hospital do bairro.

Fragilizado, mal tinha forças para reclamar do atendimento, mesmo porque fui bem atendido. Os enfermeiros, atentos, ouviram as minhas queixas. Apesar de relutar, fui colocado numa cadeira de rodas e levado para ser atendido por um médico. Solicitado um eletrocardiograma, além da anamnese médica, verificou-se que eu estava prestes a ter um infarto. Mais tarde, com exames mais apurados, me foi revelado que o velho coração não duraria muito mais tempo funcionando. Para sobreviver, teria que fazer um transplante.

Ainda que não quisesse, avisei à Sônia do meu estado. A minha ex-esposa prontamente chamou a sua irmã para substituí-la no cuidado da mãe e voltou para São Paulo. Foi ao hospital e me encontrou alquebrado de tal maneira que quase chorou. Quando chegou, me abraçou, me chamando de “meu turrão”.

Pedi desculpas por tê-la feito deixar a mãe doente. E por demonstrar tanta aspereza no nosso casamento. Que busquei ser um pai sempre presente e um marido que trabalhou duro para trazer conforto à família. Que tinha sorte por tê-la conhecido e dela ter me aceitado como companheiro.

— Para de falar, como se fosse morrer hoje. Antes de entrar, conversei com o Dr. Ângelo. Você ainda vai me perturbar bastante antes de partir desta para melhor… Vai precisar se cuidar para manter o seu coração batendo enquanto espera um coração novo. Vou ficar de olho!

Eu estava com saudade dessa maneira dela falar comigo. Sincera e direta. Quando começamos a namorar, disse que eu não era um homem bonito, mas também não era feio. Que beijava bem. Mas era um sujeito turrão. Eu respondi que tive que assumir a casa bem novo, depois da morte do meu pai. Que havia começado a trabalhar cedo. Sem chance para me sensibilizar.

Como começamos a namorar adolescentes, a Sônia me acompanhou no auxílio à minha mãe. Deixei de estudar, mas estimulei os meus irmãos a se formarem na faculdade. Hoje, são homens de sucesso. Assim como os nossos filhos. Talvez tenha custado uma convivência mais prazerosa com a família. É bem possível que a minha atitude tenha sobrecarregado o meu coração, que acabou por retesar as suas fibras.

Com o coração transplantado, procurarei buscar resquícios do que já foi mais humano em mim… Tentar reencontrar o menino que chegou a ser feliz antes de papai se ir pelas próprias mãos. Quem sabe tenha a chance de uma nova vida? A oportunidade em que eu não seja mais chamado de Homem de Lata.

Participam: Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Lunna Guedes / Suzana Martins

BEDA / Pais*

nos anais memoriais
de minha mãe
meus pais se casaram em bela cerimônia
ela de branco virginal
ele de preto solene
ateu na igreja
talvez quisesse outras cores
formato alternativo
sua raiva crescia
pelos grilhões que o prendia
anéis trocados
juras convencionais
primeira noite o marido diz
vou logo lhe passar o pinto
depois sairei em nome da luta política
o revolucionário se ausenta
um dois dias
volta tarde no terceiro
ela pergunta porque demorou
ele responde com um tapa
no rosto de pele macia
homem de esquerda vanguarda macho
sem contestação
de pesada mão
buscava uma parideira faz filhos
casou por causa da macumba
da esposa dizia
mulher não se confia
a deixou na periferia
com filhos casa simples
longe da família
três crianças vivas oito abortados
vida dura desesperançada
época difícil regime militar
fugia da polícia o senhor meu pai
o índio paraguaio
preso sem definido paradeiro
pequenos íamos aos quartéis
lembro do japonês
falava com mamãe mentia não sabia
pai torturado esmagado como homem
liberto do cárcere
morreu para aquela vida comunista
ajudado por madrasta kardecista
família quatrocentona
nasceu pela segunda vez
pela mão da capitalista
mamãe morreu tantas vezes
renasceu muitas dezenas
nunca a vi esmorecer
vivia a se desmerecer
trabalhou em bares
vendedora de galinhas
comprar meus livros coleções enciclopédias
limpar casas não se impedia
soube tanto tempo depois
choro choro de remorso
porque nada me tornei
ela a amar sua culpa
eu incriminado por ser amado
aos 70 pediu separação legal
o marido ausente se diz apunhalado
pelas costas
nada quis deixar à ex aos filhos seus
pediu a deus deu procuração ao diabo
roubou um milhão o advogado
restou uns caraminguás
sobrou um cara minguado
tentou surrupiar a própria família
morreu mais uma vez por última
no pau-de-arara lei civil
no choque elétrico dos torturadores
sua descendência sobrevivente
quando nos deixou fisicamente
nunca chorei
espero chorar antes de eu mesmo fenecer
então terei perdoado e me perdoarei.

Imagem por pt.pixix.com

*Poema de 2021

Participam: Alê Helga / Mariana Gouveia / Lunna Guedes / Roseli Pedroso / Cláudia Leonardi Suzana Martins Dose de Poesia / Lucas Armelin / Danielle SV

BEDA / Marido De Aluguel

O texto anterior acabou por me fazer refletir sobre o termo genérico de “dono de casa”, derivado do feminino “Dona de Casa“. Este, talvez tenha sido criado para dar um lustro de nobreza para designar uma atividade permanente, integral e desgastante de dar suporte à casa e atenção ao amo e à descendência. Merecia uma consideração mais profunda e sobre esse tema tratarei aqui. De forma correlata, a moderna atividade de “Marido de Aluguel” também suscita considerações nas quais não consigo deixar de perceber a ironia que carrega em todos os sentidos.

Eu vejo passar veículos com esse slogan que pressupõe a realização de tarefas que apenas o homem faria – conserto de torneiras danificadas, troca de chuveiros, restauro da fiação elétrica, colocação de parafusos e pregos, pintura, pequenas obras de alvenaria e, por aí, vai. Em casa, a Tânia realiza algumas dessas tarefas, filha de um homem que a ensinou, por exemplo, a erguer uma parede.

Eu não deixo de realizar outras tantas dessas atividades, mas não me sinto mais marido ou mais másculo por isso, como não me sinto mais feminino por lavar, estender e passar roupa, cozinhar, lavar panelas, talheres e louça, regar as plantas, cuidar dos bichos, varrer e passar um pano no chão ou arrumar a cama. Ajudante de minha mãe quando garoto, declarava a ela que queria me tornar um “homem total”. A pequena análise que faço diz respeito a como o Patriarcado exerce sobre nós, homens e mulheres uma dominação absurda.

Emprestando da matriz patriarcal determinadas formulações, fico a imaginar se o termo “Marido de Aluguel” não ensejaria interpretações dúbias e piadas de bar feitas por homens e mulheres que atuam sobre a égide do Patriarcado, que perpassa todas as ações sociais de adultos que não conseguem escapar ao seu domínio. Sempre se aventou entre os deveres da esposa o de atender sexualmente ao marido, assim como a do marido em “comparecer” ao ato como a comprovar a sua masculinidade. Em conversas de botequim a função do profissional poderá ser tratada mais extensivamente, bem como se dizia em tempos idos dos filhos gerados na visita de leiteiros ou padeiros.

O que para o homem significaria carregar a peja de marido enganado, para a mulher talvez fosse como uma válvula de escape da dominação machista imposta por casamentos arranjados, sem conexão de gostos ou pelo abandono em vida por um companheiro que a considera apenas a parideira de seus filhos e que muitas vezes instituíam lares ou relações paralelas. Num texto curto como este, que é mais provocativo do que elucidativo, as questões do nosso envolvimento com as consequências da máster cultural distorcida por milênios de abusos de um gênero por outro, simplesmente por carregar maior força física não são resolvidas, somente são testemunhadas.

E me incomodam…

Participam do BEDA:
Claudia Leonardi / Lunna Guedes / Mariana Gouveia / Darlene Regina

Procurada — Morta Ou Viva

Mad Abigail

Estive em um hotel do Centro de São Paulo para a realização de um evento. Ao entrar em um dos ambientes para ir ao banheiro, encontrei pendurado em uma pilastra um quadro “decorativo” que reproduzia um folheto aparentemente original de “Procura-se” (em inglês), daqueles famosos que já vimos em filmes de Faroeste. Diferentemente dos bandidos retratados — ladrões, homicidas do gênero masculino, estava uma mulher. Seu nome: Mad Abigail. De início, achei a quantia da recompensa alta demais — $ 6.000 (dólares) — para pegar a tal de Abigail, a Louca. Imaginei que se tratasse de uma chefe de quadrilha de assaltantes, matriarca de um bando de filhos e sobrinhos bandidos ou uma pessoa acusada de um crime hediondo, talvez uma assassina de criancinhas, sei lá…

Outro detalhe que achei interessante é que Abigail poderia ser levada às autoridades “Morta ou Viva” e não o contrário. A perigosa e louca Abigail, eventualmente para impedir sequer que fosse julgada por seu horrível crime, bem melhor seria que estivesse morta. Mesmo porque, o indefeso macho que a prendesse correria o risco de ver-se apunhalado pelas costas se se distraísse um pouco que fosse. Afinal, estava ali alguém que cometeu o maior dos pecados: o mariticídio — ela matou o marido. Se ela fez isso, seria capaz de qualquer coisa. Sendo que o uxoricídio (quando o marido mata a mulher) era não apenas aceitável, como até garantido por lei. Até pouco tempo antes, por qualquer motivo que fosse, aqui no Brasil um sujeito também era absolvido desse crime sem maiores delongas.

Tentei pesquisar sobre a tal tenebrosa figura. Se o cartaz não foi inventado, com engenho e arte, quem sabe encontrasse maiores informações. Não consegui. Na pesquisa por nome que fiz, não houve resultado. Incluí a por imagem e foram feitas referências ao bulbo da luz e ao estilo do cabelo, nada mais. Depois, percebi que de qualquer forma não encontraria a contestação da acusada. Não importa que fosse torturada, surrada, ferida, maltratada, nada justificaria matar o homem que tinha como esposo. Isso chancelaria o poder de vida e morte ou morte em vida da esposa, além de não a caracterizar como uma vítima que tenha se rebelado contra o pesado jugo do macho dominante. A melhor alternativa mesmo foi chamá-la de louca e Mad, Abigail se tornou.

Naturalmente, as circunstâncias da morte envenenamento, arma de fogo, faca, facão, machado, paulada, empurrão de um penhasco, escada ou até morte acidental — de nada sabemos. Caso o cartaz seja fake, ainda assim não duvido que alguma mulher “enlouquecida” por maus tratos não tenha se insurgido contra seu opressor. Outra particularidade que me chamou a atenção era que se tratava de uma foto ou baseada em uma foto em que a acusada se apresentava bem arrumada, talvez uma mulher de boa posição social, citadina, não alguém que vivesse em lugar tão longínquo que os olhos da lei não alcançassem, o que daria maior liberdade de atuação para quem tivesse qualquer desvio de comportamento, ainda que a violência fosse um traço comum no desenvolvimento das sociedades humanas. Nessa circunstância, o morto poderia pertencer a uma família influente, o que justificaria o valor do prêmio. Atualizado, caso não tenha me enganado, passaria de 1 milhão de Reais.

Enfim, se uma ou muitas Mad Abigail tenham existido, esse cartaz (caso seja originalmente real) é uma prova que viria a demonstrar que uma mulher que matasse um homem e, principalmente seu marido, ainda que fosse em legítima defesa, se tornaria uma inimiga que ameaçaria o status quo de uma estrutura em que o macho deveria ser protegido contra a sanha revoltosa de uma mulher. Assim como não acontece no sentido oposto até hoje. Com certeza, Abigail era uma corajosa desvairada…