Dançando Com Aline Bei

Coreografia “Coincidência”, com o marcador de página pego aleatoriamente contendo a Obra “Bailarina de Quatorze Anos”, de Edgar Degas.

Aline Bei escreve como uma mulher. Mulheres como Raquel de Queiroz, Virgínia Woolf, Cecília Meirelles, Lígia Fagundes Telles, Jane Austen, Anaïs Nin, Wislawa Szyborska, Clarice Lispector, Agatha Christie

Convidado, como a todos os seus leitores, para dançar com ela a Pequena Coreografia do Adeus, foi difícil ao final do bailado dar o último passo. Seria fácil e até prazeroso percorrer todas as páginas de uma só vez, como se fosse um reencontro saudoso e desesperado a se consumar em duas horas. Preferi dançar em quatro atos, em dias diferentes, manhãs silenciosas, ensolaradas e frias deste inverno.

Foi a melhor opção. A contradança de Júlia foi se tornando cada vez mais intricada, num crescendo. Em evoluções solidárias às dores e a solidão dos progenitores — herança de família — encontrei interdependência de percursos como filho, pai, marido e esposa por histórias vividas, próximas, conhecidas. A cada tempo, pedia para respirar.

Na Coreografia…, a poesia é pulsante, inverossímil em sua singeleza, forte. O passo trôpego é belo e preciso.

“em casa

minha mãe arrastava as suas dores como Manto 

ao mesmo tempo que marchava

seu velho soldado…”.

Vemos o Balé surgir como uma possibilidade de expressão para a menina irascível. A bailarina de traje azul jogou seu desespero nesse projeto e colheu o resultado que lhe cabia como presença física. Queria

“provar

com movimentos rítmicos

que sou forte

eu queria entregar

na dança

o medo medo

que sinto…”.

Quando conseguiu deixar a casa que a oprimia — extensão da dominação de sua mãe — ganhou asas que se recolhiam quando a visitava.

“beijo

a sua testa

fecho

o portão e

antes de acelerar o passo

dou uma última olhada

para aquele lugar que

mesmo não sendo mais o meu

e quando foi?

ainda é

a imagem que me vem à mente

toda a vez que escuto ou digo a palavra casa”.

A moça de “corpo inexpressivo” vem a concentrar a sua expressão no diário que escreve, o que acende o desejo de se tornar escritora. Começo a torcer para que esse projeto se concretize. Outro paralelo entre as vivências da personagem e mim. Assim como lidar com o público, trabalhar num Café, campo de observação para as diversas coreografias de presenças e ausências na sua escrita. O surgimento de figuras de mães Cíntia, Argentina — dá o exato diapasão de relacionamento corrosivo e status de partner principal a dona Vera. Enquanto Sérgio, seu pai, faz o elemento de conexão e hiato. E, sem querer-saber, o de melhor exemplo à filha.

Quem já dançou com Aline Bei tem consciência que em seus passos a vida tem sempre razão. Não há ensaios que nos prepare. A improvisação a la Isadora Duncan, os movimentos circulares de aproximação e distanciamentos são marcações feitas em clima de expectativa, suspense ou estado em suspensão. Ou êxtase. Se houvesse uma música que pontuasse a Pequena Coreografia do Adeus seria um Blues, porém o tema de Eu E A Brisa cairia à perfeição, no desejo-sensação de que o “inesperado faça uma surpresa”.

E como não deixar escapar um sorriso amargo quando a coreógrafa une os TerraSérgio, Vera e Júlia — num dramático beijo?

Aplausos!

Bambino & Eu

Bambino & Eu

EU

Eu não tenho escrito tanto quanto gostaria, ainda que os temas passem diante dos meus olhos em todos os sentidos, como citadinos caminhantes nos amplos calçadões do Centrão. Eu já testemunhei cachorros mais conscientes de seu destino do que algumas pessoas. Entre elas, estaria eu. Aos outros, os observo, os absorvo, mas não os testifico em tela ou papel. Tenho me dedicado mais a realizar projetos caseiros, a montar e desmontar coisas, fazer exercícios de permanência material, erguer um jardim, pintar ou destruir uma parede. Leio esparsamente. Quando paro diante do computador, comento aqui e ali nas redes sociais. No ano passado, tomei estranhas decisões, como enviar saudações de aniversários a todos que nasceram em outubro — mês do meu aniversário — depois de ficar um tempão sem prestar atenção a isso. Foram desafios inúteis, mas inescapáveis, sob o risco da sensação que sofreria uma pesada represália (seria do deus Zuckerberg?): delírio pandêmico?… De toda a forma, estou preso a meus pés e minhas mãos não me libertam…

BAMBINO

A minha mãe foi para um lugar distante chamado Bahia. Ela me deixou com o meu avô. Eu gosto dele, mas além de mim, ele tem que cuidar das outras filhas e netas. Na casa de minha mãe, eu era tratado como um rei. Na verdade, lá, sou chamado de “Princeso”. Será que isso se deve ao fato de eu ter sido castrado? Ou por que sou delicado e assustado? Quando vim para cá, vomitei quatro vezes no carro. O meu avô ficou comigo o tempo todo com um saco para que não sujasse o banco. Ao chegar, ainda vomitei mais uma vez. Mas agora estou bem, mas parece que quem não está é ele. Eu o vejo triste, caminhando de um lugar ao outro, sem se demorar em cada canto. Muitas vezes, quando para, sem muito entusiasmo, fica diante de um objeto estranho, dando dedilhadas espaçadas. Antes, ficava um tempão batucando naquilo. Quando terminava, apresentava um sorriso no rosto…

Quanto ao medo de andar de carro, minhas tias e ele, os ouvi tentando interpretar a razão desse meu sintoma. Especularam que seria pelo fato de ter sido abandonado pelo antigo cuidador, que me deixou na estrada, após eu ter dado um passeio que achava que fosse para o parque. Eu não sei… esqueci. Assim como é uma lembrança vaga o canil em que estava ter sido atacado por uma onça… Malditos gatos!

O amor é um curativo muito bom para essas coisas…  

Não Consigo Falar De Amor

Eu queria falar de amor,
mas meu amor foi embora…
Depois disso,
o meu amor me deixou.
Porque o amor morre antes em nós
e nossos amores,
como flores sem água,
ressecam,
escurecem
e vemos suas pétalas deixarem  
suas hastes e nossos braços.

Nossos abraços
deixam de aquecer o corpo-solo,
as nossas mãos
não fertilizam mais carinhos,
os nossos olhos
não vislumbram mais o sol
na manhã orvalhada.

Quando isso aconteceu?
Foi da noite para o dia?
Ou fui sendo envenenado pouco a pouco,
minha alma a se desertificar
até se tornar terreno pedregoso,
ácido
e impuro?

O que sei é que quando olhei ao redor
só percebi padecimento e ignorância,
violência e ódio,
morte e desdém.
Doenças e falsas crenças,
o mal a grassar de graça —
desgraça e trapaça —
povo contra povo,
o tentacular polvo
do poder a provocar
a confundir,
a maldizer,
a mentir,
a matar…

Antes, eu conseguia proteger
o meu jardim…
Afastava
predadores e pragas,
me abrigava
de palavras negativas,
frequências de indecências
em ultrajantes vagas
dos corruptores do espírito…
Conseguia ultrapassar as nuvens escuras
de tenebrosas ameaças
e ver a luz.
Conseguia pôr a cabeça
e respirar para fora do lamaçal —
esgoto
de merdas,
merdinhas
e merdaças.

Porém a luta insana me esgotou.
Cansado,
submergi sob a influência do homem mau —
mitológico e orgulhoso representante
do Medo
e do Mal-feito.
O meu amor me deixou
e não consigo mais falar de amor —
boca que se calou
em campo de cultivo inóspito-asfaltado,
rumor de lembrança boa,
falta que magoa —
dor fantasma de membro amputado…

O garoto de coração partido…


Normalidades

Normalidades 5
João Pedro, George e Miguel

Seria falta de empatia ̶ alienação ̶ pouco valor à vida?
Ou algo pior?
Seria esquizofrenia ̶ negação operacional ̶ realidade partida?
Ou algo pior ainda?
Aproveitar a pandemia ̶ virtual genocídio ̶ eugenia?
Eliminar os velhos pensionistas ̶ Seus Juquinhas, Donas Marias?
Mortandade como projeto de governo ̶ equalização de perdas econômicas?
Nosso País a viver o drama do fascismo redivivo ̶ teorias de raças hegemônicas ̶
tiros às dezenas a metralharem jovens pobres e pretos ̶ Joões Pedros ̶
invasão de casas em comunidades, como se fora guetos?
Antes, talvez fosse uma simples operação policial boçal,
mas não ̶ faz parte de um sistema antigo ̶ racismo estrutural.
O mesmo que fez por destino-desdém a branca mão ̶
empurrar o corpo do anjo Miguel do alto até o chão…
No Norte da América, Floyd chama pela mãe ̶ última palavra a dizer…
Sem poder respirar, o homem clama por ar ̶ último desejo antes de morrer…
Talvez se sentisse um rei branco aquele que pressiona, ajoelhado,
o pescoço do homem preto subjugado…
Branca mão no bolso, olhos frios, alheio aos pedidos do entorno, conta mentalmente
o tempo que resta da energia que se esvai do gigante.
Uma morte entre tantas mortes ̶ brutalidade exposta ̶ silenciosamente
a melhor parte de nossa humanidade é atacada na nossa frente.
Devemos erradicar as doenças ̶ aquelas que nos mata em conjunto.
Bem como aquelas que nos mata por dentro, dia-a-dia, miseravelmente.
Afastar de nossa convivência aquele que diz não ser coveiro,
mas negocia armas e meios para produzir defuntos.
Devemos nos precaver das enfermidades sistêmicas ̶ combater os males da alma.
Buscar o caminho correto, andar pela claridade do saber e do discernimento.
Sabemos que a morte ̶ fato da vida ̶ é causa perdida, inevitável…
Viver com medo e precariedade, por imobilismo governamental,
sem ter como nos defender do sofrimento por descaso ativo ̶ intencional ̶
é imperdoável.

Magas

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Por onde andam as feiticeiras da nossa cidade?
Magas e bruxas, por onde vocês se esconderam?
Estão com medo de serem acusadas de veleidade?

Caminham pelas ruas tentando esconder as suas idades?
Ocultam a sabedoria das vidas das que as antecederam?
Lutam para não parecerem mulheres de maior qualidade?

Filhas de Merlin, de Circe, de Morgana, de Dubledore e de anônimos
Percorrem campos, vilas, bairros, praças e centros do mundo.
Seres que cantam e labutam e amamentam, usam pseudônimos.
Todas trabalham para a construção de um novo tempo, fecundo.

Sonho de todos os homens, possuí-las em série e quantidade.
Querem dominá-las, dirigir-lhes o caminho, pô-las a parte.
Mas não vencem o espírito, não ultrapassam a sua capacidade
De viver, de amar, de entregar-se e fazer tudo com beleza e arte.

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