O Genocídio

Mulher Yanomâmi sendo pesada por uma assistente da força tarefa para atendimento de saúde

À vista das imagens divulgadas mostrando o estágio dos efeitos causados pela desnutrição entre vários membros do povo Yanomâmi – crianças, mulheres, homens – fiquei como que paralisado de horror. Como foi que chegamos a esta situação? Tragédia anunciada há tempos, nos últimos quatro anos, sem medo de errar, virou política de Estado empreendida pelo ex-presidente e futuro presidiário (se houver justiça), ao qual chamo de Ignominioso Miliciano. Vinte e um ofícios de ajuda e tomada de medidas para impedir o morticínio, enviados às várias instituições da administração federal, foram solenemente ignorados.

Ao longo de seu comportamento na vida pública há indicação de um padrão macabro, inicialmente em palavras, depois transformadas em atos quando chegou ao poder. Esse ser humano que festejou a morte de Marielle Franco, antes já havia elogiado o torturador Ustra na votação do impedimento indevido da ex-presidente Dilma Rousseff. Esse tipo defendia a morte de pelo menos 30.000 brasileiros na época da Ditadura Militar – que perdurou de 1964 até 1985. Essa mesma pessoa defendeu a imunidade de rebanho na Pandemia de Covid-19, adiando a compra de vacinas, o que resultou na morte de pelo menos 300.000 pessoas a mais do que a média populacional, de acordo com a projeção de vários cientistas sanitários. Esse ser abjeto liberou a compra indiscriminada de armas de fogo sob a alegação de que o cidadão tem o direito de se defender. A grandíssima maioria dos artefatos caíram na mão de milicianos e de outros grupos criminosos.

Associado a interesses de políticos e mineradores – “follow the money” – de Roraima e de fora desse Estado e até do Brasil, não foi difícil para o Ignominioso Miliciano (a milícia carioca o patrocina) decidir pela destruição da floresta onde vive o povo Yanomâmi. Sem se importar com os 30.000 originários da região, incentivou a invasão de 20.000 garimpeiros que envenenaram os rios das terras indígenas, a ponto de causar a mortandade dos habitantes nas quase 200 aldeias. Os outros habitantes do resto de Roraima apoiaram fortemente a política de morte do elemento, delegando a ele 76% dos votos na última eleição. Tal crime hediondo não poderia ser praticado sem tantos cúmplices.

Estava assistindo a um filme em que o personagem comenta sobre o comportamento de poderosos que subjugam e exploram as outras pessoas, sem se importar com o mal que produzem. Ao contrário, se julgam acima das outras criaturas que, no entanto, segundo as Escrituras Sagradas são seus semelhantes. No caso dessa personagem brasileira que promove morte e terror entre seus semelhantes, não há semelhança entre as pessoas em direitos. Defendendo a instauração de uma “elite” homogênea e hegemônica – racista, machista, misógina, homofóbica –, através de um discurso difuso e atabalhoado, incorpora uma linguagem messiânica. Ataca àqueles que propõem a diversidade como signo de vida, agregando seguidores de seitas cristãs que passam por cima da Palavra de Cristo. Suas palavras inspiram o medo, a discordância, a ojeriza aos pobres, a violência e a destruição.

Eu já o associei a um dos Cavaleiros do Apocalipse. Para os milhares de mortos ao longo do seu (des)governo, que tiveram as suas vidas ceifadas por influência direta de sua estratégia fascista de direção, o fim realmente se precipitou.

Um Domingo

um domingo este domingo
início de um dezembro indeciso decisivo
final do 22 que já foi 17 que devia ser zero
vou à academia castigar o corpo
que não carpe não planta não colhe
sem atividade funcional funciona
apenas para comer imposição de viver
ingerir beber se alimentar excretar
fazer a roda viva do chico girar
pelo celular as minhas velhas canções
algumas parece que ouço pela primeira vez
porque o mundo é outro ainda sendo o mesmo
cíclico atemporal o tempo é rei de gil guru
“não me iludo tudo permanecerá
do jeito que tem sido
transcorrendo transformando
tempo e espaço navegando
todos os sentidos”
quantificando a física enquanto tento
qualificar a minha expressão física de estar
a minha curiosidade em continuar viver
pode se confundir com medo
mas não a curiosidade é a mesma em fenecer
dois dias antes “descobri” que a vacina faz mal à saúde
um companheiro de trabalho me “informou”
palavra de seu pastor como não acreditar?
crê que a ciência que desenvolveu seu instrumento de trabalho
é a mesma que mata em doses e contradições
algumas entre tantas como discernir?
qual o grau de claridade clarividência clareza
que nos faz ter certeza de sua certidão?
pobre rebanho sem rumo
caminho pelo caminho calçado que contorna
uma árvore se fosse direto feriria a grama
o caminho reto nem sempre é o correto
retorno depois de fazer o corpo suar
havia prometido a mim
doar para uma preta senhora magérrima
em situação de rua ela e seus cães
residentes da marquise
da loja de pets hoje fechada quando abre
desloca seus trapos e restos de um lado
para o outro da avenida
dorme sob chuva sol nuvens lua e estrelas
sem porta janela muro teto
livre
enquanto nos cercamos de medidas protetivas
não a encontro somente seus companheiros de quatro patas
doam companhia à sua solidão
proteção ao entulho que ela venderá
volto para a casa almoço
a imagem da senhora dando restos de comida
para as criaturas irmãs de sua confraternidade
me invade me devasta
volto pelas ruas passeio por minha consciência
quão são reais nossas existências?
eu a encontro sentada entre os seus
me aproximo de seu olho esquerdo esbranquiçado
estendo a mão envergonhado
ofereço uma nota de cinquenta reais
aceita por favor?
como a pedir alivia minha dor?
sorri um sorriso choroso de idade indeterminada
nossa! obrigado moço!
devo ser tão velho quanto ela
fujo da minha emoção

aceno sem olhar para trás.

B.E.D.A. / Veredas

Há quem garimpe a vida toda
em busca da pedra preciosa
e nada consegue,
a não ser restolhos —
poeira sem peso, pedregulhos
e o espinho da rosa.

Há quem se perca pelo caminho
e encontra a curva perfeita,
a reta para o coração,
topa com a pepita na terra aflorada,
um beijo perfumado
da inesperada boca da amada.

Há quem beba da água mais limpa,
desconhece a insipidez do ódio,
a tibiez da voz monocórdica,
desfila sem saber o que é medo,
canta a alegria e recebe amor,
mas é infeliz…

Há quem consiga fazer correr o sangue,
sabe estimular a troca e a revolução
apaixonada a bandeiras despregadas.
Quaisquer cores são suas,
o trânsito em cada rua tumultua,
segue o fluxo descontínuo,
arremeda o certo com o incerto,
mente verdades e constrói sendas
e, entre incensos, insensato,
trapaceia.
Vence.
É herói.

As veredas da existência são insinuantes,
indeterminadas, cheias de vieses
feito terminações nervosas,
crescentes na infância e na juventude,
esclerosadas na velhice.
Viver é bom. É ruim.
Como doença progressiva no coração da Terra,
somos bestiais seres da guerra.
Matamos e morremos.
No meio de tudo isso, vivemos…

Participam do B.E.D.A.:
Adriana Aneli
Cláudia Leonardi
Darlene Regina
Lunna Guedes
Mariana Gouveia
Roseli Pedroso

Dançando Com Aline Bei

Coreografia “Coincidência”, com o marcador de página pego aleatoriamente contendo a Obra “Bailarina de Quatorze Anos”, de Edgar Degas.

Aline Bei escreve como uma mulher. Mulheres como Raquel de Queiroz, Virgínia Woolf, Cecília Meirelles, Lígia Fagundes Telles, Jane Austen, Anaïs Nin, Wislawa Szyborska, Clarice Lispector, Agatha Christie

Convidado, como a todos os seus leitores, para dançar com ela a Pequena Coreografia do Adeus, foi difícil ao final do bailado dar o último passo. Seria fácil e até prazeroso percorrer todas as páginas de uma só vez, como se fosse um reencontro saudoso e desesperado a se consumar em duas horas. Preferi dançar em quatro atos, em dias diferentes, manhãs silenciosas, ensolaradas e frias deste inverno.

Foi a melhor opção. A contradança de Júlia foi se tornando cada vez mais intricada, num crescendo. Em evoluções solidárias às dores e a solidão dos progenitores — herança de família — encontrei interdependência de percursos como filho, pai, marido e esposa por histórias vividas, próximas, conhecidas. A cada tempo, pedia para respirar.

Na Coreografia…, a poesia é pulsante, inverossímil em sua singeleza, forte. O passo trôpego é belo e preciso.

“em casa

minha mãe arrastava as suas dores como Manto 

ao mesmo tempo que marchava

seu velho soldado…”.

Vemos o Balé surgir como uma possibilidade de expressão para a menina irascível. A bailarina de traje azul jogou seu desespero nesse projeto e colheu o resultado que lhe cabia como presença física. Queria

“provar

com movimentos rítmicos

que sou forte

eu queria entregar

na dança

o medo medo

que sinto…”.

Quando conseguiu deixar a casa que a oprimia — extensão da dominação de sua mãe — ganhou asas que se recolhiam quando a visitava.

“beijo

a sua testa

fecho

o portão e

antes de acelerar o passo

dou uma última olhada

para aquele lugar que

mesmo não sendo mais o meu

e quando foi?

ainda é

a imagem que me vem à mente

toda a vez que escuto ou digo a palavra casa”.

A moça de “corpo inexpressivo” vem a concentrar a sua expressão no diário que escreve, o que acende o desejo de se tornar escritora. Começo a torcer para que esse projeto se concretize. Outro paralelo entre as vivências da personagem e mim. Assim como lidar com o público, trabalhar num Café, campo de observação para as diversas coreografias de presenças e ausências na sua escrita. O surgimento de figuras de mães Cíntia, Argentina — dá o exato diapasão de relacionamento corrosivo e status de partner principal a dona Vera. Enquanto Sérgio, seu pai, faz o elemento de conexão e hiato. E, sem querer-saber, o de melhor exemplo à filha.

Quem já dançou com Aline Bei tem consciência que em seus passos a vida tem sempre razão. Não há ensaios que nos prepare. A improvisação a la Isadora Duncan, os movimentos circulares de aproximação e distanciamentos são marcações feitas em clima de expectativa, suspense ou estado em suspensão. Ou êxtase. Se houvesse uma música que pontuasse a Pequena Coreografia do Adeus seria um Blues, porém o tema de Eu E A Brisa cairia à perfeição, no desejo-sensação de que o “inesperado faça uma surpresa”.

E como não deixar escapar um sorriso amargo quando a coreógrafa une os TerraSérgio, Vera e Júlia — num dramático beijo?

Aplausos!

Bambino & Eu

Bambino & Eu

EU

Eu não tenho escrito tanto quanto gostaria, ainda que os temas passem diante dos meus olhos em todos os sentidos, como citadinos caminhantes nos amplos calçadões do Centrão. Eu já testemunhei cachorros mais conscientes de seu destino do que algumas pessoas. Entre elas, estaria eu. Aos outros, os observo, os absorvo, mas não os testifico em tela ou papel. Tenho me dedicado mais a realizar projetos caseiros, a montar e desmontar coisas, fazer exercícios de permanência material, erguer um jardim, pintar ou destruir uma parede. Leio esparsamente. Quando paro diante do computador, comento aqui e ali nas redes sociais. No ano passado, tomei estranhas decisões, como enviar saudações de aniversários a todos que nasceram em outubro — mês do meu aniversário — depois de ficar um tempão sem prestar atenção a isso. Foram desafios inúteis, mas inescapáveis, sob o risco da sensação que sofreria uma pesada represália (seria do deus Zuckerberg?): delírio pandêmico?… De toda a forma, estou preso a meus pés e minhas mãos não me libertam…

BAMBINO

A minha mãe foi para um lugar distante chamado Bahia. Ela me deixou com o meu avô. Eu gosto dele, mas além de mim, ele tem que cuidar das outras filhas e netas. Na casa de minha mãe, eu era tratado como um rei. Na verdade, lá, sou chamado de “Princeso”. Será que isso se deve ao fato de eu ter sido castrado? Ou por que sou delicado e assustado? Quando vim para cá, vomitei quatro vezes no carro. O meu avô ficou comigo o tempo todo com um saco para que não sujasse o banco. Ao chegar, ainda vomitei mais uma vez. Mas agora estou bem, mas parece que quem não está é ele. Eu o vejo triste, caminhando de um lugar ao outro, sem se demorar em cada canto. Muitas vezes, quando para, sem muito entusiasmo, fica diante de um objeto estranho, dando dedilhadas espaçadas. Antes, ficava um tempão batucando naquilo. Quando terminava, apresentava um sorriso no rosto…

Quanto ao medo de andar de carro, minhas tias e ele, os ouvi tentando interpretar a razão desse meu sintoma. Especularam que seria pelo fato de ter sido abandonado pelo antigo cuidador, que me deixou na estrada, após eu ter dado um passeio que achava que fosse para o parque. Eu não sei… esqueci. Assim como é uma lembrança vaga o canil em que estava ter sido atacado por uma onça… Malditos gatos!

O amor é um curativo muito bom para essas coisas…