27 / 10 / 2025 / A Que Encerra

A Lívia foi a última a chegar. Mas a não menos importante para compor a nossa família. Hoje, completa 30 anos (!). Parece que foi outro dia que eu ficava insistindo para comer um pouco mais enquanto ela fazia manha. Das três, foi a que aceitou fazer natação e treinar basquete porque o pai esportista gostaria que fosse eventualmente uma atleta. As três irmãs são muito unidas e eu, ingenuamente me surpreendi ao saber que criaram um grupo de mensagens entre elas em que os pais talvez sejam um dos tópicos ou nem tanto. Não sei o que é pior…

Há um ano ou menos — não sou afeito ao calendário factual — alugou com o namorado Pablo um apartamento em que ensaiam a vida de casados. Como acontece frequentemente, deixou a filha Lolla Maria aos cuidados dos avós. Não porque não quisesse, mas porque ela não se adaptou ao espaço. Cheia de manias e de uma eterna fome, ficava latindo quando não encontrava seus humanos em casa.

Lolla Maria

O nome Lívia deriva de Liv Ullmman — atriz, diretora de cinema, além de escritora — por quem fui apaixonado quando jovem, assim como fui por Romy Sceneider e Ingrid Bergman, que deram nome às outras duas filhas. A minha paixão pelas mulheres não é apenas física, mas sou fascinado pelo poder que carregam e que os homens tentam de todas as maneiras obliterar. As mulheres que inspiraram a nomear as minhas filhas são exemplos de pessoas que marcaram seu tempo com comportamentos que fugiam ao estereótipo da mulher conformada com o papel tradicional da fêmea da espécie. Das três, apenas Liv vive e continua atuante como artista, depois de 60 anos de carreira.

Lívia & Pablo em seu apartamento

Talvez as minhas filhas sintam que eu esteja um tanto distantes delas, mas acho que devo dar espaço para que encontrem sem pressão os seus caminhos, façam as suas escolhas e tomem as suas decisões. Elas sabem que estarei sempre à disposição para apoiá-las no que quiserem. Eu desejo que a que encerra a fábrica Ortega alcance todos os seus propósitos, incluindo os artísticos, com a Elebonde, seu projeto de DJs com o Pablo. Quem sabe, um dia, não participem de um festival desses grandes por aí? De você, menina, eu não duvido de nada!

Elebonde em ação…

B.E.D.A. / Romaria

Interpretação de Romaria por Elis Regina, no show Transversal do Tempo, gravado ao vivo em 1978.

Eu tive a oportunidade de ouvir Romaria em sua primeira audição e senti uma comoção tão grande, que me vi na pele daquele romeiro da canção de Renato Teixeira. Foi por ocasião de um programa radiofônico da Jovem Pan*, chamado O Fino da Música, de 1977, interpretada por Elis Regina, que já era a minha cantora favorita, então. Foi uma verdadeira comunhão.

Quase ao final da apresentação, ao ressoar retumbante de um prato, no belo arranjo de César Camargo Mariano, já não podia controlar a minha emoção e verti algumas lágrimas sentidas. Assim, desbragadamente. Ali, também estava eu, ajoelhado e, da mesma forma não sabendo rezar, tentava enternecer a Santa mostrando o “meu olhar, meu olhar, meu olhar”… Aliás, comecei a me envolver logo aos primeiros acordes: “É de sonho de pó, o destino de um só…” — em crescente comoção. Talvez fosse um sinal da mudança de sentido que se prenunciava — de minha postura abertamente cética à transcendência espiritual como visão de vida…

Elis cantou várias canções que embalaram a minha imaginação e me fizeram compreender o quanto a música pode transcender o fato de ser muito mais que composições de frequências vibratórias que mexem com a nossa estrutura física. As músicas também carregam mensagens que nos elevam a alma, que nos fazem transbordar sentimentos profundos ou emoções rasas. Muitas nos arrastam para o prazer ou para a dor sentida-imaginada, alcançando, enfim, os recônditos mais discretos de nosso ser.

Vinte e cinco anos após esse momento, mais ou menos, tive o imenso prazer de sonorizar uma apresentação do próprio Renato Teixeira em um show, no qual ele mesmo cantou Romaria. Na primeira ocasião, ele fazia a segunda voz no refrão — “Sou caipira Pirapora, Senhora de Aparecida…” — na composição que o elevou como compositor ao primeiro time da MPB pela voz da Elis. Ah, as voltas que o mundo dá, nesta eterna Romaria que vivemos…

Com a morte de Elis em 1982, criou-se um vácuo no lançamento de novos nomes na MPB. Apenas alguns compositores, em comparação ao período em que ela esteve viva, conseguiram emergir do anonimato. Por algum tempo, eu cheguei a ter raiva dela por ter morrido tão estupidamente. Hoje, sabemos que estava depressiva há tempos e nós, seus admiradores, não conseguíamos perceber sua condição. Só nos resta a saudade…

*Durante alguns anos, desde os 8 ou 9 até os 13 ou 14, eu tive um radinho de pilha japonês, com o qual ouvia programas de rádio aos finais de semana e durante a semana, logo de manhã e antes de dormir. A programação preferida se dividia entre a esportiva e a musical. Minha emissora favorita era a Rádio Panamericana AM, de São Paulo. No esporte, ouvia as narrações de Osmar Santos e Edemar Annuseck, com comentários de Orlando Duarte e Cláudio Carsughi; reportagens de Cândido Garcia e Fausto Silva (o hoje famoso apresentador dominical), além de outros nomes. O Show de Rádio, com os tipos criados por Estevam Bourroul Sangirardi e interpretados por ele e vários outros humoristas, como Serginho Leite. Na programação musical, aprendi muito com Zuza Homem de Mello e vibrei com o Fino da Música — shows com a participação de grandes nomes da MPB. Depois de cinquenta anos, o alinhamento da emissora com o atual (des)governo fez com que eu me afastasse de sua audiência. Um rompimento doloroso, porém necessário.

Participam do B.E.D.A.:
Cláudia Leonardi
Darlene Regina
Lunna Guedes
Roseli Pedroso
Adriana Aneli
Mariana Gouveia

Copo Quebrado

Mensagens de amor*

No armário onde guarda a louça, a mulher solitária reserva uma parte para copos rachados ou quebrados. Muitos, marcados por substâncias cristalizadas por conteúdos derramados de seu interior. Ela sabe dizer quando e de que maneira cada um daqueles utensílios foram usados e avariados. Transparentes, em sua concepção original, os objetos apresentavam por dentro linhas descontínuas e desenhos aparentemente desconexos, mas que representavam, para D. Martha, mensagens de seu filho morto.

Seu marido, sem saber como lidar com a criação de um mundo de simbolismos vazios, segundo cria, depois do passamento de Maurinho, acabou por se afastar da casa e apenas uma ou duas vezes por semana, visitava rapidamente para verificar como se encontrava D, Martha. Mauro contratou uma auxiliar doméstica que cuidava da sua alimentação, limpeza e arrumação da casa onde a família viveu por vinte anos, com a recomendação de que nunca se aproximasse do santuário.

Maurinho, a partir dos 15 anos, começou a deixar cair o que pegava. De início, como estava atravessando pela adolescência, os pais acharam que fosse devido ao estirão. Menino grande, estava a ultrapassar a altura do pai, que já era bem alto e já estava a se destacar no basquete. Melhor jogador do time, a acentuada queda no índice das cestas de três pontos, sua especialidade, fez com que começasse a ficar deprimido.

Os pais, preocupados, realizaram exames que revelaram uma severa doença neurológica progressiva, com evolução acelerada. Na casa de Maurinho, enquanto Seu Mauro buscava alternativas e estímulos para deixar a vida do filho mais confortável, Dona Martha preferiu ver acumular os cacos dos copos que insistia em dar ao filho. Com toda a certeza que o amor podia lhe dar, na falta de palavras que pudesse proferir, para ela, aquelas eram revelações de seu filho que passaria o resto da vida tentando decifrar.

*Tenho quebrado copos