No armário onde guarda a louça, a mulher solitária reserva uma parte do espaço para copos rachados ou quebrados. Muitos, marcados por substâncias cristalizadas por conteúdos derramados de seu interior. Ela sabe dizer quando e de que maneira cada um daqueles utensílios foram usados e avariados. Transparentes, em sua concepção original, os objetos apresentavam por dentro linhas descontínuas e desenhos aparentemente desconexos, mas que representavam, para D. Martha, mensagens de seu filho morto.
Seu marido, sem saber como lidar com a criação, segundo cria, de um mundo de simbolismos vazios depois do passamento de Maurinho, acabou por se afastar da casa e apenas uma ou duas vezes por semana, a visitava rapidamente para verificar como se encontrava D. Martha. Mauro contratou uma auxiliar doméstica que cuidava da sua alimentação, limpeza e arrumação da casa onde a família viveu por vinte anos. A principal recomendação era de que nunca se aproximasse do santuário.
Maurinho, a partir dos 15 anos, começou a deixar cair o que pegava. De início, como estava atravessando pela adolescência, os pais acharam que fosse devido ao estirão. Menino grande, estava a ultrapassar a altura do pai, que já era bem alto e já estava a se destacar no basquetebol. Melhor jogador do time, a acentuada queda de acerto nas cestas de três pontos, sua especialidade, fez com que ficasse deprimido.
Os pais, preocupados, realizaram exames que revelaram uma severa doença neurológica progressiva, com evolução acelerada. Na casa de Maurinho, enquanto Seu Mauro buscava alternativas e estímulos para deixar a vida do filho mais confortável, Dona Martha preferiu ver acumular os cacos dos copos que insistia em dar ao filho. Com toda a certeza que o amor podia lhe dar, na falta de palavras que pudesse proferir, os copos rachados ou quebrados seriam revelações de seu filho que passaria o resto da vida tentando decifrar.