BEDA / Educação Sentimental

O texto chamado Amor & Ser suscitou em mim lembranças de quando comecei a me interessar mais profundamente sobre Literatura e sobre o processo da criação da escrita. Mesmo porque a escrita se tornou para mim uma espécie de “imperativo categórico” –necessária por si mesma. Com a ação contínua, comecei a perceber que era através dela que eu me reconhecia ao reconhecer que caminhava por padrões da arte humana. Tudo passou a me interessar.

Em resposta ao texto, a Lunna falou sobre a criação de classificações de categorias e subcategorias para o amor, com regras distintas para homens e mulheres. O amor romântico, o amor de mãe, o amor de amigo – que cria ser um problema. Eu acabei por retomar os princípios desse tipo de expressão, principalmente na tradição do Trovadorismo português, mas não só, já que foi um movimento relevante do Século XII ao XIV em toda a Europa.

“A Linguagem do Trovadorismo é musical, poética, popular, dialógica, crítica, lírica e satírica. Os trovadores eram os autores das cantigas, enquanto os jograis eram os cantores. Já os menestréis, além de cantarem, tocavam as músicas, as quais eram acompanhadas por alaúdes, violas e flautas. Em meio ao contexto do Feudalismo, o Teocentrismo (Deus como centro do mundo) foi sua principal característica. Em Portugal, o Trovadorismo tem início em 1189 (ou 1198) com a publicação da Canção Ribeirinha, de Paio Soares de Taveirós. Esse movimento literário vai até 1434, quando começa o Humanismo”. (https://www.todamateria.com.br/cantigas-trovadorescas/)

As Cantigas Líricas se dividiam em cantigas de amor e cantigas de amigo. As Cantigas Satíricas, em cantigas de escárnio e cantigas de maldizer. Na prosa são subdivididas em Novelas ou Romances de Cavalaria, versando sobre relatos de heróis e seus cavaleiros. Nobiliários ou Livros de Linhagem, sobre árvores genealógicas de nobres. Hagiografias, sobre biografias de santos. Cronicões, que detalhava narrativas históricas.

Mas o que me interessava mais intensamente eram as Cantigas de Amor e de Amigo. Os compositores dessas cantigas se apresentavam como homens, mas na primeira vertente  o eu poético era masculino, enquanto que na segunda, feminino. Característico do Patriarcalismo português, o homem tinha esse privilégio de expressar o seu amor de uma maneira mais aberta do que a mulher. Mas não duvido que mulheres viessem a criá-las sob pseudônimos – uma possibilidade que creio ser um fato – ainda que improvável documentalmente. Li certa vez poemas dessa época feitos por freiras que devotavam seu amor ao noivo – Jesus. A linguagem era claramente erótica, bem construída. Se retirássemos o endereçamento à figura de Cristo, faria corar o Nazareno pregado na cruz.

A influência do Trovadorismo em Portugal persistiu a ponto de o Fado, gênero musical português por excelência, carregar muito de sua melancolia nas canções de amor “que nem às paredes confesso”. Essa influência reverberou no Brasil com as Cantigas de Amor, que “são escritas em primeira pessoa do singular (eu). Nelas, o eu lírico, ou seja, o sujeito fictício que dá voz à poesia, declara seu amor a uma dama, tendo como pano de fundo o formalismo do ambiente palaciano. É por este motivo que ele se dirige a ela, chamando-a de senhora”. Em minha educação sentimental, as músicas que me influenciaram tinham muito desse distanciamento em relação ao objeto amado. Quanto mais impossíveis os romances, mais atraentes. Sentimento que levei para a vida prática. A minha timidez me auxiliou nesse afastamento.

Ao acessar o Spotify, apareceu com uma das sugestões, o álbum lançado em 1971 de Roberto Carlos. A minha mãe fez questão de comprar esse disco para tocar na nossa eletrola portátil. Eu o ouvia sempre que podia. Uma das canções que me pegou pelo lado sentimental um tanto passadista, mas muito intenso no pré-adolescente de 10 anos foi “De Tanto Amor”. Eu já observava as meninas que me encantavam de uma forma que as colocava num pedestal, sublimes, inatingíveis. A reprodução “De Tanto Amor” que escolhi quem a canta é Nando Reis, que sofreu como eu a inspiração do romantismo avassalador de RC, contemporâneos que somos. Quem os considera um tanto “brega” não está distante da verdade. Mas não passo vergonha. Traçando um paralelo sobre o sentimentalismo musical desbragado para a Literatura de qualidade reconhecida, chamo Álvaro de Campos, versando sobre o sentimento mais cantado no mundo:

Todas as cartas de amor são ridículas

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

Texto participante do BEDA: Blog Every Day August

Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Bob F / Denise Gals / Lunna Guedes / Suzana Martins /  Cláudia Leonardi

A Coragem Ou Flávio Migliaccio

Coragem
Shazam & Xerife – Paulo José e Flávio Migliaccio (1972)

Outro dia, partiu um dos atores mais emblemáticos de minha garotice ˗˗ Xerife ˗˗ que representou o Flávio Migliaccio. Adorava vê-lo viver aventuras ao lado de Shazam, também conhecido como Paulo José. Os dois andavam de cidade em cidade com o caminhãozinho-trambolho-geringonça conhecida como Camicleta (caminhão com bicicleta). Eu os encontrei na novela O Primeiro Amor, de 1972. Eu era noveleiro. Aliás, na nossa TV PB Bandeirante 14”, gostava de assistir novelas, filmes, séries, desenhos ˗˗ tudo o me fizesse sonhar ˗˗ ou, de certa maneira, me desviasse do cotidiano duro que vivia na periferia da Zona Norte.

Enquanto corria o mundo, a dupla mais incrível que já vi, se metia nas situações mais complicadas e acabava por resolvê-las das maneiras mais inusitadas e atrapalhadas possíveis. Na visão do menino, Shazam e Xerife eram maiores que a própria vida. Quando a série acabou, não me conformei. Mas já compreendia que as coisas mudam. Que mudar é viver.

Eu estava mudando. Por volta dos meus 12 anos, ao mesmo tempo que comecei a usar óculos, troquei de escola. Inaugurei um novo mundo de relacionamentos e vivências. Fui ficando cada vez mais ensimesmado. O ser introspectivo, apreciador de aventuras fantásticas, começou a escrever sobre a transcendência do ser sobre o amor. De certa maneira, queria transcender a algo que não conhecia. Queria me tornar luz sem me jogar na escuridão da dor de amar. Hoje eu sei que não há como alcançar uma coisa sem passar por outra. Na realidade, tinha a ilusão de aprimorá-la, expandi-la e me tornar puro amor.

Na periferia, via passar Shazans & Xerifes a todos os momentos. Muitos, em vez de Camicletas, usavam carroças puxadas a cavalo. Por aqui havia ainda estábulos e ferreiros para ferrar cavalos. Gostava dos cavalos, mas não aceitava a maneira como eram usados. Via crescer a minha indignação com o ser humano ˗˗ ente que deseja se assenhorar de tudo ao seu redor, sem pedir permissão. Em determinada época, preferia não pertencer à espécie humana.

Aos 16 anos, estava pronto para morrer. Se acontecesse, receberia a morte com a curiosidade típica que sempre me acompanhou. A minha expectativa é que estivesse consciente ao conhecê-la. Com 17 anos, mais uma mudança. Tomei contato com a busca pela iluminação real. Não a fátua ˗˗ egoísta e vaidosa ˗˗ que nos afasta da verdade. Porém aquela que nos posiciona para além de nós. Isso me ajudou a sobreviver fisicamente.

Passei a ter respeito pela vida, mas principalmente pela procura das melhores condições para que ela pudesse se expressar em todas as suas potencialidades. Ao mesmo tempo, compreendi que somos proprietários dos nossos veículos e percebi crescer em mim a responsabilidade de deixar o meu corpo-veículo mais apto a me carregar, pelo maior tempo possível, para me levar para onde quisesse ir, até desligá-lo quando não quisesse mais usá-lo. De alguma maneira, sem conseguir identificar o que me dava prazer em viver, boicotei a mim mesmo e quase morri duas vezes.

Consegui superar essa fase de me deixar morrer, graças ao amor. Mas há momentos que cansamos. Atualmente, parece que vejo acontecer as mesmas coisas que vivi há 50 anos. As mesmas personagens, travestidos de novos, sendo representantes do que é velho e ultrapassado. Xerife, cansado de guerra, corajosamente quis cometer um último ato de protesto contra o desrespeito ao artista e à arte. De corpo envelhecido, mas de espírito jovial, sabendo que dificilmente voltaria a atuar, decidiu libertá-lo. Preso à gravidade cada vez mais opressora, respirando o ar cada vez mais venenoso do País, representou o papel do eterno rebelde com causa, defensor dos fracos e oprimidos ˗˗ morreu-se ˗˗ para se perpetuar como o herói simples e imortal que fez todo mundo sorrir.