
Outro dia, partiu um dos atores mais emblemáticos de minha garotice ˗˗ Xerife ˗˗ que representou o Flávio Migliaccio. Adorava vê-lo viver aventuras ao lado de Shazam, também conhecido como Paulo José. Os dois andavam de cidade em cidade com o caminhãozinho-trambolho-geringonça conhecida como Camicleta (caminhão com bicicleta). Eu os encontrei na novela O Primeiro Amor, de 1972. Eu era noveleiro. Aliás, na nossa TV PB Bandeirante 14”, gostava de assistir novelas, filmes, séries, desenhos ˗˗ tudo o me fizesse sonhar ˗˗ ou, de certa maneira, me desviasse do cotidiano duro que vivia na periferia da Zona Norte.
Enquanto corria o mundo, a dupla mais incrível que já vi, se metia nas situações mais complicadas e acabava por resolvê-las das maneiras mais inusitadas e atrapalhadas possíveis. Na visão do menino, Shazam e Xerife eram maiores que a própria vida. Quando a série acabou, não me conformei. Mas já compreendia que as coisas mudam. Que mudar é viver.
Eu estava mudando. Por volta dos meus 12 anos, ao mesmo tempo que comecei a usar óculos, troquei de escola. Inaugurei um novo mundo de relacionamentos e vivências. Fui ficando cada vez mais ensimesmado. O ser introspectivo, apreciador de aventuras fantásticas, começou a escrever sobre a transcendência do ser sobre o amor. De certa maneira, queria transcender a algo que não conhecia. Queria me tornar luz sem me jogar na escuridão da dor de amar. Hoje eu sei que não há como alcançar uma coisa sem passar por outra. Na realidade, tinha a ilusão de aprimorá-la, expandi-la e me tornar puro amor.
Na periferia, via passar Shazans & Xerifes a todos os momentos. Muitos, em vez de Camicletas, usavam carroças puxadas a cavalo. Por aqui havia ainda estábulos e ferreiros para ferrar cavalos. Gostava dos cavalos, mas não aceitava a maneira como eram usados. Via crescer a minha indignação com o ser humano ˗˗ ente que deseja se assenhorar de tudo ao seu redor, sem pedir permissão. Em determinada época, preferia não pertencer à espécie humana.
Aos 16 anos, estava pronto para morrer. Se acontecesse, receberia a morte com a curiosidade típica que sempre me acompanhou. A minha expectativa é que estivesse consciente ao conhecê-la. Com 17 anos, mais uma mudança. Tomei contato com a busca pela iluminação real. Não a fátua ˗˗ egoísta e vaidosa ˗˗ que nos afasta da verdade. Porém aquela que nos posiciona para além de nós. Isso me ajudou a sobreviver fisicamente.
Passei a ter respeito pela vida, mas principalmente pela procura das melhores condições para que ela pudesse se expressar em todas as suas potencialidades. Ao mesmo tempo, compreendi que somos proprietários dos nossos veículos e percebi crescer em mim a responsabilidade de deixar o meu corpo-veículo mais apto a me carregar, pelo maior tempo possível, para me levar para onde quisesse ir, até desligá-lo quando não quisesse mais usá-lo. De alguma maneira, sem conseguir identificar o que me dava prazer em viver, boicotei a mim mesmo e quase morri duas vezes.
Consegui superar essa fase de me deixar morrer, graças ao amor. Mas há momentos que cansamos. Atualmente, parece que vejo acontecer as mesmas coisas que vivi há 50 anos. As mesmas personagens, travestidos de novos, sendo representantes do que é velho e ultrapassado. Xerife, cansado de guerra, corajosamente quis cometer um último ato de protesto contra o desrespeito ao artista e à arte. De corpo envelhecido, mas de espírito jovial, sabendo que dificilmente voltaria a atuar, decidiu libertá-lo. Preso à gravidade cada vez mais opressora, respirando o ar cada vez mais venenoso do País, representou o papel do eterno rebelde com causa, defensor dos fracos e oprimidos ˗˗ morreu-se ˗˗ para se perpetuar como o herói simples e imortal que fez todo mundo sorrir.
Eu o conhecia apenas de papéis mais recentes. E não sei se era um suicida ou não. Como pessoa que atuou na área da psicologia, me calo sobre o fato. Não enxerto heroismo, coragem ou covardia. Apenas lamento porque sei o tamanho do gesto e sinto que ninguém tenha enxergado o tamanho de tudo isso. Pior agora quem ficou que precisa lidar com todas as pontas soltas
Eu sempre considerei o suicídio como ato de covardia, mas era levado a esse pensamento por questões espirituais. Eu me lembro de um filme sobre indígenas americanos que um ancião subia a montanha porque sentia que era a hora de morrer. Com o tempo desenvolvi a o pensamento que, em sendo dono da própria vida, deveria haver a liberdade de se desvencilhar dela quando quisesse. Sou a favor da liberdade da adoção da eutanásia, apesar de continuar a ter restrições quanto a isso. Ninguém consegue avaliar a dor que alguém pode suportar por continuar vivo. É um tema polêmico e complexo.
Não considero polêmico e nem complexo. Considero necessário falar do assunto. Esclarecer os gatilhos existentes no mundo, filmes, livros. A espiritualidade apenas atrapalha ao tratar o tema com seus preconceitos conhecidos. Em nada ajuda os propensos ao fim.
Para você, Lunna, devido à sua formação e
… e personalidade, não é uma coisa nem outra. Mas que é um assunto tabu, não há dúvida.
Só é tabu porque a religião se intrometeu no tema. Não fosse isso, seria tão natural quanto o sexo deveria ser. Mas… ambos são tabus.
E o mais interessante é que se fala tanto em direitos, mas há religiões que não permitem que os suicidas sejam enterrados no mesmo espaço que outros mortos.
Exatamente. Parece que a pessoa não pertence a si, mas a Igreja e ao Estado. Se for para morrer, será para defender alguma coisa – as instituições ou a pátria.
Curioso que não chamam isso de suicidio. Morre para defender a pátria (essa invenção maluca) e as instituições todas (uma grande bobagem). Mas não se pode morrer por si… rá