O Amor

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Noite alta. Em um bar, duas pessoas se reencontram depois de uma longa separação. Amigas desde a infância, retomam assuntos interrompidos depois da viagem de uma delas para a Europa, como se não tivessem passado quatro anos. Decidiram cortar a comunicação por quaisquer meios. Antes que desentendimento, foi um acordo consciencioso. É como se não quisessem que a gravidade da amizade-sol interferisse nos relacionamentos com outras pessoas que se iniciavam, então. Temiam que os respectivos companheiros não entendessem o que tinham, um tão presente na vida do outro em união umbilical.

No reencontro, as bocas abriram-se em sorriso espontâneo e aberto. O abraço, demorado e apertado, parecia confirmar todas as expectativas que carregavam. Ou, até um pouco mais. Nunca haviam se separado por tanto tempo.

Após horas de conversa sobre seus percursos sem estarem juntos – idas e vindas de amores, novos amigos e casos cotidianos – afinal um calor parecia aquecer a alma e ousaram versar sobre o amor. O assunto é inesgotável, mas tudo se torna possível após a quinta rodada de caipirinha. Uma delas, provoca e traz à baila um trecho de Sete Pecados -˗ O Governante Supremo*.

– “Ao contrário do que se propagava – que uma imagem valesse por mil palavras – intimamente sabia que uma só palavra poderia equivaler a mil interpretações diferentes. Como evitar que a comunicação não fosse corrompida por pensamentos espúrios quando se escrevesse ou lesse a palavra ‘amor’, por exemplo?”

– Isso é verdade. O amor não é um sentimento específico, determinado e irretocável. A depender do momento que alguém pensa senti-lo – esse algo que o move ˗˗ poderia receber qualquer nome, como “fome”. Digo isso porque normalmente ele parece surgir em horas de penúria física ou mental. Algo que tenta preencher um vazio. Em muitas ocasiões, dizer “eu te amo” é uma mentira cômoda tanto por quem diz como para quem é dito. Tentativa de se manter a homeostase, sem pensar muito em sua profundidade e alcance. Quem sabe pudéssemos propor um primeiro mandamento: “Não dirás ‘eu te amo’ em vão”.

˗˗ Bem, você fala de relacionamentos esparsos, inconsequentes. Pode ocorrer o comodismo mentiroso. Mas, para mim, o amor tende a ser um sentimento tão importante que muitos têm medo de confessá-lo. É precioso – precisa de proteção e sigilo. Amar geralmente é uma ação que demanda esforço e coragem para vivenciá-lo. Para muitos, é muito mais fácil dedicá-lo a um bicho de estimação do que a um ser “pensante”. Os bichos amam a quem os acolhe, os alimenta ou lhes dão carinho. Absolvem seus cuidadores até das ações mais raivosas contra si… se bem que algumas pessoas, também.

˗˗ Para mim, amor, só de mãe. O vínculo físico entre mãe e cria é poderoso o suficiente para perdurar por toda a vida, mas não é relevante para explicá-lo para além dos fatores hormonais. Sei do amor de minha mãe por mim. Ela é meu modelo de mulher. Mas fui reconhecendo isso ao longo da convivência, entende? Não é um sentimento que tem lugar garantido só porque temos um vínculo visceral.

˗˗ Você acha que tentamos reproduzir pela vida afora esse padrão de amor inicial entre mães e filhos? Acha que não haja pessoas que escapam dessa relação edipiana? Eu, por exemplo, nunca tentei encontrar uma mulher parecida com a Dona Edi. Já tive minha dose de desentendimentos para entender que não gostaria de conviver com alguém como ela. Você sabe como eu a amo, mas quero outro modelo de encontro d’almas.

˗˗ Encontro d’almas? Alguns dizem que o amor nasce da relação física ˗˗ confundem paixão com o amor. Outros, que acontece antes ˗˗ uma atração mágica, sem explicação. Há gente que ama amar, mas amor à primeira vista? Acho estranhíssimo. Quantos erros cometemos ao julgar um livro pela capa? Ainda que haja quem prefira viver de erro em erro, repetindo sempre as mesmas ações.

˗˗ Mas será que vivemos em delírio coletivo? Muitos poetas e compositores cantaram o amor desde sempre. Milhões de canções foram feitas e são entoadas com todo o vigor por inúmeras de vozes. Testemunham, em todos recantos do mundo, com toda a potência do ser, sua força imensurável, que move montanhas. Uma energia que nos envolve aquém e além da pele.

˗˗ Acho que o amor é supervalorizado, cantado em verso e prosa. “O medo de amar é o medo ser livre…” – cantou Beto Guedes. Só se for para nos livrar do autocontrole, nos deixando vulneráveis, entregues a alguém que poderá não corresponder. E aí sobrará pouco de nós para contar a história… Nesse caso, o termo “ser comido” torna-se uma imagem perfeita…

˗˗ Quer dizer que você tem medo de amar? Controlar o amor é uma ilusão. Evitá-lo, uma vaidade fátua. Eu prefiro me despedaçar a deixar de viver um amor. Uma completa interação entre os corpos em que o sangue parecerá circular dentro das veias um do outro. Sei o quão é perigoso desvestir-se do ego para deixar “entrar’ outra pessoa em si. A queda no precipício é inevitável, desejável e aliciante. Mais uma rodada, por favor, Ademir!

˗˗ É por essas e por outras que, para evitar que a sociedade implodisse, foram criadas normas de conduta para regular os relacionamentos na vida em sociedade. Já sabemos que isso é impossível. Além de causar muita dor psicológica. Veja a religião, que inicialmente surge para celebrar a força criadora da Natureza, acabou por ser usada para aprisionar o desejo e a paixão em códigos de conduta ˗˗ quase sempre moralistas ao extremo. Isso para os mais simples, porque nas altas esferas essas leis eram solenemente descartadas. Enquanto o pecado abatia-se sobre consciências e corpos, a morte, a danação, o sofrimento eterno como o destino certo para quem ultrapassasse os limites impostos como celestiais. A promessa do bem estar eterno trocado pela abstenção do prazer imediato. E se todos soubessem que todas as relações são eróticas?

˗˗ É, minha cara, por mais que se valorize outros tipos de amor, há um que independe do liame familiar e sexual. É o da amizade fraterna, entre pessoas que comungam da mesma energia e passeiam pela mesma frequência. Nem mesmo o tempo ou a distância os afastam. Pode-se dizer que resistem a tudo. Só aguentei ficar tanto tempo sem lhe falar porque encarei como senda para o meu autoconhecimento. Hoje, sei mais sobre mim do que já soube antes. Eu a sentia, mesmo na distância. De alguma maneira, você me acompanhou durante todo o período de “ausência”. Nossa! Mal consegui erguer os dedos para as aspas…

˗˗ Amigão. temos a mais nobre das conexões. Independente de ganhos materiais e nível socioeconômico, idade ou gênero. Neste país sexista e homofóbico, de formação patriarcal e machista, que isso ocorra entre uma mulher, como eu e um homem, como você, causa desconfiança. Belos relacionamentos são bombardeados pelo preconceito. Mas saiba que já pensei em nós dois como amantes. E somos, de certa maneira. Será que precisamos que os nossos corpos, além dos nossos olhos, corroborem nossa intimidade como tais?

˗˗ Também passei noites insones nos imaginando como amantes. E uma curiosidade surgiu: continuaríamos amigos tão profundos se deixássemos o nosso desejo falar mais alto? Esse terreno é um campo minado, vivemos por um passo em falso. Ah, corremos o risco que o ciúme e o egoísmo, grandes vilões de qualquer amizade ou vínculo amoroso, prevaleça. Eu, pessoalmente, sou daqueles que luta para que isso não venha a interferir. Muitas vezes, sem sucesso. Porém, prefiro você em minha vida, muito mais do que qualquer outra pessoa que não entenda o que temos…

Tocando as mãos sobre a mesa pelas pontas dos dedos, os dois se entreolharam longamente, bêbados, também de amor…

*Sete Pecados é um lançamento da Scenarium Plural – Livros Artesanais

One thought on “O Amor

  1. Escrever sobre o amor não é tarefa fácil, em absoluto. Ao refletirmos sobre “ele” as dúvidas aparecem… Extremamente natural. Seu texto é como uma janela que provoca inquietações necessárias.
    Acredito, sinceramente, que aprendemos a amar sendo amados. A ideia de que o amor é algo que se aprende soa estranha para a maioria das pessoas. Desde miúdos, escutamos falar desse sentimento como algo natural, instantâneo, incontrolável; só que as vivências vão nos dizendo outras coisas… Vamos aprendendo a amar do jeito que somos amados; e, algumas vezes, as referências são ruins – podem significar controle, desrespeito, violência física ou simbólica, abandono.
    Para mim, amar é não temer a proximidade; é saber me afastar de coisas negativas. Amar só é possível sem o medo que nos paralisa. Uma relação de amor, de bem querer, é aquela em que a estabilidade pode ser refeita cotidianamente; no contato com o mundo, no correr da vida, tendo espaço para expressar nossas ideias e emoções, para crescer como gente.

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