Entrevistando Alexandre, O Pequeno

Alexandre e o entrevistador

Hoje, faz quatro luas que eu encontrei Alexandre ou ele me encontrou. Tanto quanto da outra vez, dia de votação. Votei pela vida. Decidi conversar mais longamente com aquele agora faz parte da família. Eu me encaminhei em direção ao meu entrevistado. Ele ainda bocejava quando passei a mão em sua cabeça e disse que precisava conversar com ele. Faria uma entrevista para conhecê-lo melhor. Alexandre esticou suas quatro patinhas longas e retas.

– Bom dia, papai!

Caramba! Ele me chamar daquela forma me desconcertou… Fiquei tentando observar mais de perto os seus olhos anuviados pela catarata e pude perceber que buscava também os meus. Me deu uma lambida. Voltei a passar a mão em sua cabeça e desci pelo dorso magro, mas muito mais cheinho do que quando o encontrei.

– Vamos lá?

– Sair? Aqui está tão quentinho…

– Não, não é isso. Vamos conversar. Como está se sentindo?

– Estou com soninho e com um pouco de fome…

– Vou escrever que está bem…

– Não foi isso que disse, papai…

– Não está bem, então?

– Estou feliz! Ganhei uma caminha quentinha, carinho de todos, fiz amigas, principalmente a Bethânia, mas vou devagar com ela. Tem muito ciúme do papai.

A cada vez que ele me chamava de papai, eu ficava desconcertado. Voltei a lembrança para as primeiras vezes em que as minhas filhas humanas me chamaram de “papai” – uma emoção que não há igual.

– Mas também estou com fome…

– Daqui a pouco, vocês todos irão comer…

– Depois tem biscoito?

– Sim, mais à noite. O que eu queria perguntar é: se lembra da sua família antes de chegar em aqui?

– Eu sonho com ela, lembro do cheiro da casa. Parece que mamãe tinha sumido, não me dava mais comida. Fiquei fuçando atrás de um cheiro bom. Mas não estou enxergando como antes. De repente, estava sozinho. Quando percebi, não conseguia voltar. Fiquei muito tempo sem comer, fiquei vagando atrás de comida. Quando papai me encontrou, tinha sido expulso da feira de domingo. Fui caminhando sem destino…

O tom de seu pensamento não era de tristeza, exatamente, mas de resignação. Ele citou a mesma feira em que hoje comprei mexericas na volta da votação. Subi pela mesma ladeira na qual o vi caminhar à esmo, cheirando o asfalto.

– Onde você dormia? Houve dias que fez bastante frio…

– Ah… eu ficava enroladinho nalgum buraco. Numa graminha mais alta. Na escadaria de alguma casa. De manhã, saía para encontrar algum saco de lixo com restos de comida humana. Mas sempre tinha um cachorro maior na minha frente. Quase não sobrava nada.

Não sabe quanto tempo ficou perdido?

– Nós não entendemos o tempo como vocês, humanos. Aliás, fico curioso com o que vocês tanto fazem de lá para cá. Não param um instante! É tão gostoso se deitar ao sol, na caminha, nas almofadas. Comer uma comidinha gostosa! Beber uma aguinha fresca…

Como explicar para o Alexandre que fazemos o que fazemos muito por causa dele e dos outros? Melhor não saber. Não valia a pena…

– Vamos sair um pouquinho para o quintal?

Terminou?

Não! Você mesmo disse que gosta de sol. Está um dia lindo! Sobe no banco. Pronto! Podemos recomeçar?

Cadê o meu paninho? Tem o meu cheiro…

– Espera… vou pegar… olha aqui! Está cheio de buraquinhos. Imagino que você morda por ansiedade… Achávamos que você era mudo. Por que você ficou duas semanas sem latir?

– Eu tinha medo de que as meninas me atacassem. Agora, me sinto em casa. Gosto de ficar latindo para quem passa, quando vejo. Ou só faço coro para elas.

– Como está a sua visão?

– Quase vejo bem com o meu olho direito. O esquerdo parece que tem um pano na frente. Eu me assusto com sombras e movimentos rápidos.

– Quando o vi pela primeira vez, você quase se metia debaixo dos carros…

– Estava com muita fome. Eu me dirigia pelo olfato. Não me importava com mais nada!

– Ah! Foi quando decidi resgatá-lo. Peguei você no colo, que retribuiu com xixi no meu casaco…

– Estava assustado e fraquinho, mas quando colocou a minha cabeça junto ao seu peito, ouvi o seu coração bater e me acalmei um pouco…

– E você me disse que se chamava Alexandre…

Eu achei que fosse o Alexandre, por isso, falei seu nome… mas ele sumiu antes de mamãe…

Sentidos

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Ver não é enxergar…

Em um acidente tão prosaico quanto difícil de explicar, prendi os dedos da minha mão esquerda na porta, exceto o polegar. Como o meu próprio corpo a impedisse de ser aberta, pois eu estava sendo pressionado contra uma estrutura, fiquei quase um minuto a sentir a pressão de oitenta quilos sobre as quatro falanges até que fossem liberadas. Felizmente, não quebrei nenhuma delas, mas perdi a sensibilidade na ponta do dedo anular. Espero que momentaneamente. Nada tão sério quanto a falta da mão esquerda de um companheiro de mergulho com o qual conversei à respeito da dor fantasma quando ganhei a sua admiração pela destreza em pegar jacaré nas ondas da praia onde estava.

Apesar de insensível ao toque mais delicado, essa ponta de dedo sente frio e calor. Não está roxa, sinal que apresenta circulação. Simplesmente, parece um território estrangeiro a ocupar um pedaço do outro – Base de Guantánamo em Cuba. O anular esquerdo não tem deixado de me ajudar nas tarefas. Agora mesmo, estou a utilizá-lo para escrever no computador, porém isso me fez pensar sobre como sistema sensorial desempenha a intermediação entre o nosso corpo e o mundo exterior.

Os sentidos oficialmente reconhecidos são cinco, alguns mais ou menos utilizados, a depender de cada um. Os olhos são os que mais se destacam na compreensão da realidade pela maior parte de nós. No entanto, pessoalmente acredito que a visão seja o mais enganador dos sensores para revelá-la. Por exemplo, o olhar pode vir a gerar uma paixão, mas será o tato a estabelecer a verdadeira interação entre os corpos dos apaixonados. Como se apregoa por aí, se não “rolar química”, não prosperará. O tato, em quem não enxerga, é outra forma de ver.

O que vemos nos comove de imediato, porém, será o cérebro a interpretar o que enxerga. O cérebro educado em uma determinada cultura, ideologia ou religião, transformará a visão de um corpo nu, por exemplo, em objeto de culto ou perversão, de poder ou queda, subjugação ou liberdade. Afora a avaliação de possíveis qualidades físicas padronizadas de fora para dentro. Os corpos fragmentados de Picasso causam fruição artística, as deformações físicas reais podem vir a causar repulsa ou compaixão. O ideal é que nos libertemos da visão como meio de revelação do sentido da vida.

Quando ao olfato, descobri a sua dimensão quando, em certa ocasião, estava passando por algum processo infeccioso, talvez no fígado. Fiquei com esse sentido bastante estimulado. Percebi como os cães e outros animais, além dos deficientes visuais, são eficientes em “enxergar” o que não veem. Ao dobrar uma esquina sabia que encontraria o vendedor de abacaxi logo adiante. Tinha consciência do momento exato em que minha mãe fazia café, em outra casa do lado da minha, separada por dezenas de metros, paredes e compartimentos. Após ter o meu problema solucionado, perdi esse superpoder, mas não me esqueço até hoje como era impressionante enxergar pelo nariz.

Os odores exercem um forte estímulo apreciado ou não, a depender de sua origem e força. Cada vez mais tentamos reproduzir cheiros naturais para simulá-los ou substituí-los. Até simulacros de feromônios, que no passado nos auxiliavam no processo reprodutivo, hoje é utilizado para ajudar na atração sexual. A sexualidade, cada vez mais valorizada, tem sido encarada como expressão da individualidade entre os humanos. Não apenas o olfato, mas todos os outros sentidos são propagandeados como intermediadores para estimular o consumo em torno dessa força primeva.

Assim como é poderosa a atração que exerce o cheiro da comida. Quase associado ao olfato, o paladar é um sentido em torno do qual a cultura do alimento ganhou espetacular complexidade por se tornar um dado cultural humano, além de ser a maneira que primordialmente usamos para repor energia para o funcionamento do nosso organismo. Organizamos verdadeiros eventos e templos para consumirmos alimentos líquidos e sólidos. Certamente, vivemos e morremos pela boca.

A audição detém uma tremenda importância nas relações humanas e de outras espécies animais. O som se propaga no meio físico em frequências e ondas e apresenta outras tantas características, que talvez transformasse em artigo científico uma simples pincelada sobre os sentidos. Reconhecido como fonte emanante de poder desde sempre, o Som, na Bíblia é apresentado como o próprio Deus – “No princípio, era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”. Não é à toa que muitos de nós, escritores, que lidamos com as palavras, carregamos certo complexo de grandeza por poder criar e destruir em seus textos.

Os Hindus acreditam que se conseguirmos nos conectar com o som primordial do UniversoOM ou AUM– alcançaremos sintonia com a frequência existencial sublime. De alguma forma, todos nós percebemos o quanto o som pode alterar o nosso humor. Isoladamente ou aliado ao verso – a Música – uma das criações artísticas mais importantes do Homem. A fala é a forma de comunicação mais direta e mais utilizada por nós. Porém, é comum ouvirmos apenas o que queremos e frequentemente interpretarmos de maneira discrepante o discurso da mesma fonte, ainda que seja na mesma língua.

Para terminar, faço alusão aos chamados sentidos extra-sensoriais, de acalorada discussão entre defensores e contrários. A ter como exclusiva a base científica experimental, do modo que a concebemos, eles são refutados. Contudo, ao longo da História humana são utilizados como justificativa para explicar razoavelmente certas apreensões da realidade, principalmente para uma grande parcela das pessoas. Eu, pessoalmente, acredito piamente no sexto sentido feminino. As mulheres costumam sentir-cheirar-ver-tocar-degustar de longe e previamente algumas situações…