Seu Zé não bebia. No entanto, aquele senhor de tez escura e barba branca de Preto Véio, tinha diante de si sempre um copo e uma garrafa de cerveja. Em uma tarde de domingo dessas, lá estava ele sentado à mesa de plástico em frente à TV postada ao alto da entrada padaria, com o seu olhar que não deixava de me surpreender por sua tristeza. Entrei para comprar pão e ele ainda estava sozinho. Cercado de ausência, assim dessa maneira, nunca me pareceu tão tristonho.
Postei-me na fila das pessoas que estavam à espera da próxima fornada de pão quentinho e pude presenciar a chegada de seus colegas de tardes solitárias e que eram efetivos bebedores. Logo, o Seu Zé estava acompanhado por risadas e conversas animadas. Todos os convivas mal percebiam que o seu copo quase nunca se esvaziava, apesar da chegada das muitas garrafas. Apenas conversava e trocava gargalhadas alheias por sorrisos sutis.
Troquei de posição umas quantas vezes, a pretexto de verificar produtos expostos na geladeira e nas gôndolas, somente para observar a evolução daquele episódio da sessão da tarde. Mais um pouco, já havia demorado demais e pedi o que queria. Deixei o Seu Zé, agora rodeado de gente, mas ainda tão isolado na vida quanto antes. Eu intuí que ali estava alguém que em sua existência apenas pareceu beber dor.
Vou à padaria — prosaicos pãezinhos recém-saídos do forno iniciariam o meu dia na casa vazia. Mesmo depois de acordar, visualizar-responder às mensagens, caminhar, só me é dada à luz dos olhos depois de um gole de café, com pão e manteiga — homenagem aos meus primeiros cinquenta anos de vida com mamãe. Seu rosto marcado e cabelos prateados ainda passeiam por trás das minhas retinas dez voltas em torno do sol depois de cumprir a nossa sina…
No retorno aos muros de meu recolhimento, um anónimo bêbado insone, àquela hora da manhã tropeça em si mesmo, lata de cerveja à mão, olha para todos os lados, como se esperasse alguém chegar, um abraço a lhe abraçar… Seria a esposa, um amigo, irmão, um filho, ninguém? Apenas o próximo fantasma a lhe assombrar? Um pai sem filhos? Um filho sem pai? Um dia dos pais sem paz, sem par, sem possibilidades-passos-pessoas a lhe aguardar?…
Eu me projeto em sua condição. Porém, só me embriago de sonhos. Acordado, carrego à mão o nada ser, o nada a acontecer, o nada gestar… A não ser versos sem rima, arrítmicos, textos-tropeços em palavras tísicas, quedas em si-abismo…
Mas sou pai… num país de filhos e pais mortos, sem cerimônias de adeus… Não consigo escapar ao presente e ébrio de insensatez, compadecido, lanço ao desconhecido: Bom dia, pai! Ele sorri desdentado e ainda que talvez tivéssemos a mesma idade, responde: Bom dia, filho!…
Carla entendeu que aquele seria o melhor horário para morrer — 7 horas da manhã. Quando Francisca chegasse, dali a uma hora, a encontraria em “boas” condições físicas, apesar do processo de autólise que se iniciaria assim que o coração parasse de funcionar. Naquela altura, seu corpo daria chance para que a vida explodisse em novas formas, habitado por moradores invisíveis. Ao pensar sobre isso, veio a perceber que o tempo não era o mais importante, mas a afirmação da vida, ainda que ínfima na duração e diminuto, o habitat. Começou a se sentir importante em se tornar o mundo de colônias de bactérias em um complexo ecossistema que se alimentaria dela até estarem exauridas as suas fontes de energia — ela mesma, Carla.
Estaria morta a médica de 40 anos, bonita e desejada que, no entanto, não conseguia ultrapassar as barreiras dos relacionamentos com pessoas — homens e mulheres — que escolhia a dedo para feri-la. Ou talvez fosse ela, tão sensível desde a infância, que chorava por qualquer coisa. Pelas irmãs, era chamada de chorona e ranheta. Os namorados e namoradas, se afastavam assim que percebiam que não conseguiriam lidar com tamanha delicadeza em prantos, apesar da beleza física clássica. Vaidosa, para não ser encontrada mole pela podridão em paulatino avanço, não quis se matar à tarde, quando bateu a dor mais profunda por estar viva. Passara mais um dia a cuidar de pessoas que, estranhamente para ela, se agarravam à vida de maneira absurda. A contaminação pela Covid-19 voltara a aumentar. Dessa vez, os pacientes eram mais jovens que, como característica básica, se consideravam imortais. Mas para alguns, a doença se assenhorava do corpo como fosse uma casa abandonada invadida. Os estragos fisiológicos, caso sobrevivessem, seriam inevitáveis.
A falta de empatia ou, de outra forma, certa inveja por não ser contaminada pelo vírus, a deixava com raiva de si mesma. Carla se lembrava do quanto se importava com as pessoas e o desejo desde nova em se tornar médica. O curso, logo de início, foi a deixando cada vez longe do ser humano solidário para torná-la um ser de emoções amorfas. Ter sido estuprada por um grupo de colegas depois de uma aula de Anatomia, praticamente a matou por dentro. Até o presente dia, não se conformava por não ter delatado a corja, hoje, médicos renomados, de lindas famílias de comercial de margarina. Tinha pesadelos recorrentes sobre como a usaram para “estudar” os nomes das partes da sua estrutura físico-biológica viva — detalhes da cabeça, passando pelo tronco e membros — e seus sinônimos funcionais, no léxico popular e no médico. Oito mãos intrusas e quatro órgãos genitais usurpadores passearam sobre sua derme sem obedecerem aos seus recessos ou às recusas veementes, abafadas por estarem em um lugar isolado. Percebeu que o local onde se deu a “aula” de Anatomia fora escolhido a dedo e a ação, planejada.
Para nunca mais os ver, evitou se candidatar para trabalhar nos maiores hospitais de São Paulo, para onde foram. Jamais quis participar de festas de congraçamento pelo Dia do Médico ou de reuniões festivas da Turma de 2002 de Medicina da USP. Ao procurar atender na Periferia, sua atitude foi confundida com benemerência, o que lhe angariava simpatia e admiração. Morar em Santana a deixava perto dos hospitais da Zona Norte nos quais atendia como Dermatologista. Aquela casinha a lembrava de sua morada na vila da Zona Leste onde cresceu, o que lhe dava certo conforto mental pela evocação da lembrança dos pais amorosos. Afora isso, não conhecia os vizinhos das casas de fachadas iguais e muros baixos à direita e à esquerda. Não tinha tempo e, para ser sincera, não queria.
Um pouco antes de ligar o gás, Carla ouviu a campainha tocar. Pensou em não atender, mas decidiu ver pela janelinha quem era. Um sujeito mascarado estava junto ao portão. Usava roupas largas, uma camisa colorida tingida. A máscara não conseguia esconder uma espessa barba. Os cabelos, um tanto desgrenhados, a lembrou de um rapaz que conheceu na Mooca do qual gostara muito, mas sempre à distância. Era uma figura que parecia ter acabado de chegar diretamente dos Anos 70, pelo que já vira em filmes. Curiosa, abriu a porta e postada debaixo do batente, perguntou o que ele queria.
— Oi, vizinha! O meu nome é Raul! Moro aqui do lado, na casa do meio. Queria lhe desejar um bom dia!
O tom de voz era sereno e o timbre profundo, de barítono. Antes que ela pudesse responder algo, o tal de Raul se dirigiu a dois portões à esquerda e tocou a campainha. Pouco depois, apareceu um homem preto que perguntou exatamente o que eu perguntara antes, como se fosse uma fala ensaiada. O sujeito repetiu a mesma linha:
Oi, vizinho! O meu nome é Raul! Moro aqui do lado, na casa do meio. Queria lhe desejar um bom dia!
O vizinho da esquerda foi mais ágil do que Carla e retrucou o cumprimento:
— Bom dia, vizinho!
Curiosa, Carla acompanhou os passos decididos de Raul até a esquina com a Dr. César. Intrigada e absorta em saber porque um vizinho que nunca vira antes, a fez descer a terra de maneira suave, como se fosse uma alienígena recém chegada. Assim como ela, o outro vizinho acompanhou o percurso de Raul até virar a esquina, à esquerda do Si, Señor! Quando voltou a cabeça, viu Carla e lhe desejou um bom dia, ao qual ela respondeu em tom surpreendentemente descontraído. Após o que, se apresentaram — “Carla, prazer! Prazer, Fábio!”. Durante vinte minutos conversaram como se fossem velhos amigos. O assunto, naturalmente, foi Raul. Nenhum dos dois sequer sabia que ele morasse na casa do centro. Era como se tivesse saído de uma fresta dimensional.
Quando deu por si, Carla viu Francisca chegar mais cedo que o normal. Teria que esperar mais uma semana para realizar o seu plano suicida. Não se mataria antes que ela saísse, para que seu corpo fosse encontrado apenas sete dias depois, quando voltaria para fazer a faxina da sua casa. Nem era tanto serviço assim. Usava pouco a casa, já que trabalhava todos os dias e passava os finais de semana dormindo como se fora uma refugiada. Isso, quando não fazia plantões pontuais. Não recebia ninguém. Não cultivava amigos. As irmãs não sabiam do seu endereço. Os pais, estavam mortos. Francisca e seus doentes eram as pessoas com quem mantinha um contato mais íntimo. Com os colegas de trabalho apenas trocava informações profissionais, sem maiores proximidades. Até que Raul lhe deu bom dia e invadiu seus pensamentos…
Na Voluntários da Pátria, Raul comprou flores. De lá, se dirigiu ao corpo de bombeiros, na Braz Leme. Em frente à corporação, perguntou a um soldado pelo comandante. Informado que estava na sala de comando, pediu para entrar e lhe entregou um belo buquê de flores. Uma variação aceitável da letra original de “Telegrama”. Quando garoto, Raul até pensou em ser bombeiro. O importante é que o comandante, pego de surpresa, sorriu desmascarado de qualquer rejeição. Ele não perguntou em nome de quem entregava as flores, Raul não disse nada ao ofertá-la. Um momento mágico entre dois homens. Acenos de cabeça e saída do entregador como se flutuasse.
Caminhando pela mesma Braz Leme, Raul foi em direção da Casa de Pães. Uma das coisas que lhe dava maior prazer físico, além do sexo, era comer pães. Gostava de quase todos os tipos, mas os italianos eram os seus preferidos. Conhecia o proprietário e se alguém merecia um beijo, esse era o padeiro. Ser padeiro, não lhe desgostaria tornar-se um. Estava como que caminhando sob o comando de seus desejos adolescentes ao fazer o trajeto de centenas de metros entre um ponto e outro. Uma vida toda em que abraçou o humanismo como profissão de fé, a atividade da espécie no planeta como sentido que buscou compreender e empreender. Em que momento tudo se tornou demais? Em que ocasião ser humano não representava mais nada? O asfalto duro, a calçada esburacada, as árvores na ilha central, as pessoas caminhando para algum lugar… o que significava, realmente? Sentiu reacender a chama pela busca pelos significados, uma curiosidade por si mesmo e pelo mundo. Sua divagação foi cortada por uma frase dita espontaneamente em voz alta:
— Que linda mulher, a minha vizinha…
Porém, naquele momento, ele mantinha apenas um propósito: beijar o português da padaria.