BEDA / Scenarium / Paixão

Domingo

A Páscoa traz diversos significados para mim, além da efeméride religiosa. A Paixão de Cristo sempre me emocionou, desde criança. Aqueles filmes bíblicos, exagerados em atuações e dramas, eram assistidos com avidez em minha televisão em preto e branco. As histórias em tons de cinza, carregavam todas as cores mais fortes da paleta.

No entanto, durante um tempo, passeei pelos caminhos do ateísmo. Muito novo para não entender que houvesse tarefas impossíveis, cheguei a iniciar um projeto em que reescreveria a Bíblia sob a ótica racionalista, se bem incluísse versões em que extraterrestres exerciam um papel preponderante.

Entre os 16 e os 17 anos, li um livro de origem hinduísta que mudou a minha visão de mundo. Eu, que já havia lido a Bíblia, livros kardecistas e de outras vertentes, como excertos budistas, maometanos e outros, percebi que todas as linhas de pensamento convergiam para um mesmo propósito – o conhecimento de Deus. Radicalizei e me tornei vegetariano. O meu lado racionalista me fez pesquisar (em livros) sobre como me alimentar de forma adequada sem carne, visto que já sabia que a proteína animal era “quase” imprescindível para a sustentação do nosso organismo. Organizei um “programa de desintoxicação” progressivo e lá fui eu vivenciar a experiência de viver sem carne. De origem animal, consumia ainda ovos, leite e derivados. Não era “vegano“, portanto.

Devido às minhas várias influências, estabeleci um sincretismo em que a Sexta-Feira Santa tinha um papel especial. Nesse dia, eu fazia jejum completo. Só bebia água. E assim foi durante os 10 anos seguintes, até voltar a comer carne, já que havia me casado e nascera a minha primeira filha, Romy, que pode aprender a gostar de comer de tudo.

Com o casamento, sabia que não poderia impor a minha postura a ferro e fogo, ainda mais que a minha esposa, Tânia, viesse de outra formação e não quisesse deixar a nossa filha sem o consumo daquele tipo de proteína. Além disso, achei também que tinha que abrandar a rigidez dos meus “votos”. Porém, tirante uma churrascada ou outra, não consumo carne vermelha à larga.

Mesmo sem o meu influxo direto, a filha do meio, Ingrid, adotou o vegetarianismo como estilo de vida e, como a corroborar que os nossos filhos ou filhas não somos nós, a mais nova, Lívia, que não gostava de certos alimentos da nossa dieta familiar, também acabou por caminhar na abstinência de carnes.

De qualquer forma, a ideia da ressurreição da Consciência Crística em cada um de nós é algo que me mobiliza ainda hoje e acho que assim sempre será. Porque Cristo morre todos os dias em nossos corações e sempre é tempo de promover o Seu Renascimento em nossas vidas hora a hora.

Beda Scenarium

BEDA / Scenarium / Páscoa de 2013

PÁSCOA 2013

Este ano eu não quis comprar ovos de Páscoa – para ninguém!

As minhas crianças já não são tão crianças. A mais nova das minhas três filhas está com 17 anos e acabou por receber um ovo de chocolate de presente de seu namorado. A do meio está em viagem. A mais velha está com 22 anos. As crianças de parentes estão distantes demais e as dos amigos, não são tão próximas. Portanto, muito devido aos altos valores envolvidos, em contraponto ao valor real da Páscoa que desejava ressaltar, essa decisão me pareceu sensata e econômica. No entanto…

… com a aproximação do domingo de Páscoa, comecei a ficar inquieto com a ideia de não ofertar para as minhas eternas crianças um pouco do sabor que elas cresceram aprendendo a associar a esta época – a do chocolate. Gostaria de exercitar o desapego à barafunda de conceitos normalmente ligados ao comércio de datas que, primariamente, deveriam estar associadas à elevação de nossa formação como homens de espiritualidade elevada, colocando-me acima disso. Porém, ontem, decidimos, eu e a minha mulher, sair hoje cedo e ver o que sobrou dos chocolates em oferta para recuperar nosso próprio espírito infantil.

Lembro-me do quanto fiquei decepcionado quando minha tia Raquel, de família mais abastada, passou a não me dar mais ovos de chocolate após os meus 12 anos de idade. Como assim, não ganharia mais? Ainda me sentia tão criançona! Talvez os mini adultos de 12 anos de hoje não entendam: por que cargas d’água (nossa, que expressão antiga e incompreensível) eu teria ficado tão mal por tal fato? “Pô, cara, você já tinha 12 anos!”…

 Hoje, buscamos as lojas abertas e não encontramos mais as marcas que queríamos, mas não deixamos de comprá-los. Tive para mim, no momento em que adquiria os ovos, que tentava devolver para as minhas crianças, as que foram – eu e a Tânia – o sabor da expectativa que envolvia a chegada da Páscoa – menino e menina – que não tiveram tanta chance de prová-los em muitas oportunidades de infâncias de precariedade material. De qualquer forma, acabei por dar chocolate para a minha mulher, para a minha criança mais velha e para a minha criança mais velha ainda… e, talvez, para a mais infantil de todas – eu mesma…

 

Beda Scenarium

BEDA / Um Conto De Páscoa

Páscoa
Pingo

Vera passava de carro por debaixo do Minhocão, na Major Sertório, quando, parada no semáforo, avistou um grupo de catadores de papel carregando duas carroças de tração humana. Seria até uma cena corriqueira, a qual não daria muita atenção, se um dos personagens não lhe parecesse bastante familiar.

Não chegou a ver o seu rosto, coberto por barba e cabelos longos, além de estar tampado por um boné esfarrapado. No entanto, os movimentos de seu corpo, andar e meneios identificaram que aquela pessoa era o seu filho. Não via Carlinhos há muito tempo… mais precisamente, há dois anos e meio… Porém, uma mãe que velou todo e qualquer gesto, todos os caminhares e as quedas, dos trejeitos aos maneirismos, desde que viera à luz, não deixaria de perceber a expressão física de sua criança… ainda que ele estivesse bem mais magro desde o último encontro que tiveram.

Vera tinha um compromisso importante no centro da cidade, mas decidiu estacionar naquele lugar. Duzentos metros depois, ela alcançaria o filho. Se deu conta que nunca conseguiu alcançá-lo antes, realmente. Sempre fora um menino irrequieto, não do modo que quase toda criança se apresenta, pulando de lá para cá, mexendo nos objetos, curiosidade nos olhos, nas mãos e pés. A sua inquietação era de outro tipo… Não conseguia se adaptar ao ambiente escolar e nem aos grupos da mesma idade. Preferia jogar bola com os meninos da favela próxima ou conversar longamente com os mais velhos, quando crivava seus interlocutores com saraivadas de perguntas.

Na adolescência, tudo ficou mais difícil. O relacionamento com Antônio, seu marido e pai de Carlinhos, se deteriorou rapidamente. Ao completar dezoito anos, já na faculdade de Português – um curso bem diferente do que o Antônio preferia para o filho, de Engenharia, para prosseguir a tradição familiar e herdar a empresa da família – o rompimento se deu definitivamente.

Nos anos seguintes, houve encontros esporádicos entre os três, normalmente tensos e, após completar o curso, Carlinhos sumiu de vista. Sabia-se vivo através de telefonemas em horas incertas. Vera, quase tão resoluta quanto Antônio em querer que Carlinhos prosseguisse com o trajeto projetado pelo casal para seu filho, quando o viu desta vez, abandonou todas as suas convicções e foi ao seu encontro. Queria abraçá-lo, senti-lo vivo, saudável… perdoá-lo… ou seria o contrário?

Quando se aproximou do grupo em que ele estava, foi recebida por latidos de alerta por meia dúzia de cachorros de cores e tamanhos diversos… Ficaram calmos quando ouviram a voz calma de Carlinhos expressar: “Mãe!…”. Um abraço forte os uniu. Vera se sentiu muito bem, apesar do cheiro forte que exalava da roupa suja que Carlinhos vestia. Vera ficou surpresa de ver que os olhos de seu filho estavam serenos como nunca vira antes. O azul parecia mais profundo, em contraste com a barba desgrenhada e a pele ressecada. O tom de voz era tranquilo e quase poderia dizer que o percebia feliz.

O fato de ser Semana Santa, uma época muito mais importante para os seus pais do que para ela, não lhe pareceu coincidência. Estranhamente, se configurou vinculada àquela oportunidade que se apresentava para reencontrar o grande amor de sua vida. Vera lembrou-se que a Páscoa era a época preferida de Carlinhos, quando ele devorava todos os filmes sobre a Paixão de Cristo, dos mais antigos e lacrimosos até os mais discretos e místicos. A sua versão preferida era “O Evangelho Segundo São Matheus”, de Pasolini, a qual ela nunca entendera, porém, ao qual o arrebatou imediatamente assim que viu a cena dos catadores de papel. Dessa forma, teve uma ideia.

Depois de conversarem por um bom tempo, de forma tranquila e fluídica, sem questionamentos sobre o seu modo de vida ou recriminações, como nunca se lembrou de acontecer em casa, Vera perguntou ao filho se gostaria de passar o Domingo de Páscoa em casa, com direito a almoço e tudo mais. Carlinhos chegou a sorrir, mas olhou para o lado, para os seus companheiros e cachorros e disse que não poderia deixá-los… Ela, sem apresentar constrangimento, respondeu: “Traga a todos!…”. “E papai?…”. Ela retrucou que havia conversado bastante sobre ele nestes últimos anos e que ele queria revê-lo, da maneira que fosse…

Depois de pensar um pouco, Carlinhos chamou aos homens e mulheres que ali estavam e conversaram em roda. Pouco depois, deu a resposta que Vera aguardava: “Chegaremos por volta das nove horas da manhã, mamãe! Vamos ajudar a fazer o almoço…”. Vera assentiu, deu um último abraço e foi para o seu compromisso, se sentindo muito mais leve do que quando acordou naquela quinta-feira.

No domingo, tanto Vera quanto Antônio, aguardavam o grupo no portão. Alertada por ela, Antônio esperava um quadro de retirantes a se avizinhar do seu portão, quando viu homens, mulheres, crianças e cachorros descerem de uma Kombi, todos muito bem arrumados… Os cães, sem coleiras, os seguiam e os obedeciam como se fossem adestrados. Após os cumprimentos, foram todos para dentro da ampla casa. O casal se sentiu espantosamente à vontade naquelas circunstâncias. Comeram uma mesa farta e Vera acabou por sentir uma paz inédita. Mais tarde, conversaram…

Carlinhos relatou como vivia. Disse que aquela era a sua família agora, incluindo os cães. Que trabalhavam juntos e dividiam tudo. Que chegou a usar droga e beber bastante quando se reuniu a eles, mas que decidiu ficar limpo quando houve um ataque a um dos membros que, por estar tão embriagado, não percebeu quando foi posto fogo em seu corpo… Morreu em agonia… Ficar sóbrio era o melhor que poderia fazer para proteger melhor a todos…

Carlinhos descreveu as humilhações, a fome constante, as condições difíceis para conseguir dormir com tranquilidade, as circunstâncias duras para negociar com os compradores de recicláveis. Mas também revelou que encontrava muitas pessoas dispostas a ajudar, o que atenuava o sofrimento. O grupo que compunha era formado por pessoas marginalizadas pelo desemprego, pelo vício, pela incapacidade de adaptação às normas sociais. Ele era conhecido como “Professor” pelos demais. Dava aulas para as crianças e os adultos não escolarizados, auxiliado pelos livros que encontravam jogados no lixo.

No final da tarde, o grupo do Professor Carlinhos decidiu ir embora. As crianças estavam felizes, carregando os seus ovos. Os adultos estavam satisfeitos por aquele dia, sabendo que aquela era uma condição momentânea. Tinham a consciência coletiva de que viviam um dia de cada vez. Os cães, que comeram uma ração especial, da qual gostaram bastante, dormiram a tarde toda, ao sentirem o ambiente seguro.

Ao se despedir de Carlinhos, Vera e Antônio, não pediram e nem exigiram nada… No abraço entre os três, antes de verem o filho querido se afastar, pediram perdão… Em resposta, os olhos de Carlinhos ganhou um brilho especial e o casal percebeu o quanto era abençoado pelo filho que criaram…. Nunca a Páscoa ganhou tanto significado – a Renovação se fez…

BEDA / A Paixão

Paixão
Cena da Ressurreição e Ascensão de Cristo – Em Nova Jerusalém – Agreste de Pernambuco

A Páscoa traz diversos significados para mim, além da efeméride religiosa. A Paixão de Cristo sempre me emocionou, desde criança. Aqueles filmes bíblicos, exagerados em atuações e dramas, eram assistidos com avidez em minha televisão em preto e branco. As histórias em tons de cinza, carregavam todas as cores mais fortes da paleta.

No entanto, durante um tempo, passeei pelos caminhos do ateísmo. Muito novo para não entender que houvesse tarefas impossíveis, cheguei a iniciar um projeto em que reescreveria a Bíblia sob a ótica racionalista, se bem incluísse versões em que extra-terrestres exerciam papel preponderante…

Entre os dezesseis e dezessete anos, um livro de origem hinduísta mudou a minha visão de mundo. Eu, que já havia lido a Bíblia, livros kardecistas e de outras vertentes, como excertos budistas, maometanos, etc, percebi que todas as linhas de pensamento convergiam para um mesmo propósito – o conhecimento da existência intangível de Deus. Radicalizei e me tornei vegetariano – uma forma de libertação.

O meu lado racionalista me fez pesquisar sobre como me alimentar de maneira adequada, sem carne – tentativa de abrandamento de minha natureza animal – com a abstenção da proteína quase imprescindível para a sustentação do nosso organismo. Organizei um “programa de desintoxicação” progressivo e lá fui eu vivenciar a experiência de viver sem carne. De origem animal, consumia apenas ovos, leite e derivados. Não era vegano, portanto.

Devido às minhas várias influências, estabeleci um sincretismo em que a Sexta-Feira Santa tinha um papel especial. Nesse dia, eu fazia jejum completo. Só bebia água. Assim  como no Natal e meu aniversário, durante os dez anos seguintes perseverei até voltar a comer carne. Com o casamento e o nascimento da minha primeira filha, Romy, sabia que não poderia impor a minha postura a ferro e fogo. A Tânia, de outra formação, não queria deixar a nossa filha sem o consumo daquele tipo de proteína. Além disso, achei também que tinha que abrandar a rigidez dos meus “votos”. Ainda assim, atualmente não consumo carne com frequência.

Mesmo sem o minha influência direta, a filha do meio, Ingrid, adotou o vegetarianismo como estilo de vida e como a corroborar que os nossas crianças não somos nós, a mais nova, Lívia, hoje também abstêmia de carne, não consome certos alimentos que fazem parte da nossa dieta familiar, bem como a própria Ingrid, que é uma vegetariana seletiva quanto a certos vegetais.

Quanto à Paixão, a ideia da ressurreição da Consciência Crística em mim é algo que me mobiliza constantemente e acho que sempre será assim. Vivo momentos em que vagueio nas ondas do Nada e Cristo morre todos os dias em meu coração. E renasce sempre…  A permanente batalha pessoal é cumprir a máxima de amar ao próximo como a mim mesmo. Para isso, meu grande esforço é conseguir me amar para que o mandamento finalmente se cumpra…