BEDA / Um Conto De Páscoa

Páscoa
Pingo

Vera passava de carro por debaixo do Minhocão, na Major Sertório, quando, parada no semáforo, avistou um grupo de catadores de papel carregando duas carroças de tração humana. Seria até uma cena corriqueira, a qual não daria muita atenção, se um dos personagens não lhe parecesse bastante familiar.

Não chegou a ver o seu rosto, coberto por barba e cabelos longos, além de estar tampado por um boné esfarrapado. No entanto, os movimentos de seu corpo, andar e meneios identificaram que aquela pessoa era o seu filho. Não via Carlinhos há muito tempo… mais precisamente, há dois anos e meio… Porém, uma mãe que velou todo e qualquer gesto, todos os caminhares e as quedas, dos trejeitos aos maneirismos, desde que viera à luz, não deixaria de perceber a expressão física de sua criança… ainda que ele estivesse bem mais magro desde o último encontro que tiveram.

Vera tinha um compromisso importante no centro da cidade, mas decidiu estacionar naquele lugar. Duzentos metros depois, ela alcançaria o filho. Se deu conta que nunca conseguiu alcançá-lo antes, realmente. Sempre fora um menino irrequieto, não do modo que quase toda criança se apresenta, pulando de lá para cá, mexendo nos objetos, curiosidade nos olhos, nas mãos e pés. A sua inquietação era de outro tipo… Não conseguia se adaptar ao ambiente escolar e nem aos grupos da mesma idade. Preferia jogar bola com os meninos da favela próxima ou conversar longamente com os mais velhos, quando crivava seus interlocutores com saraivadas de perguntas.

Na adolescência, tudo ficou mais difícil. O relacionamento com Antônio, seu marido e pai de Carlinhos, se deteriorou rapidamente. Ao completar dezoito anos, já na faculdade de Português – um curso bem diferente do que o Antônio preferia para o filho, de Engenharia, para prosseguir a tradição familiar e herdar a empresa da família – o rompimento se deu definitivamente.

Nos anos seguintes, houve encontros esporádicos entre os três, normalmente tensos e, após completar o curso, Carlinhos sumiu de vista. Sabia-se vivo através de telefonemas em horas incertas. Vera, quase tão resoluta quanto Antônio em querer que Carlinhos prosseguisse com o trajeto projetado pelo casal para seu filho, quando o viu desta vez, abandonou todas as suas convicções e foi ao seu encontro. Queria abraçá-lo, senti-lo vivo, saudável… perdoá-lo… ou seria o contrário?

Quando se aproximou do grupo em que ele estava, foi recebida por latidos de alerta por meia dúzia de cachorros de cores e tamanhos diversos… Ficaram calmos quando ouviram a voz calma de Carlinhos expressar: “Mãe!…”. Um abraço forte os uniu. Vera se sentiu muito bem, apesar do cheiro forte que exalava da roupa suja que Carlinhos vestia. Vera ficou surpresa de ver que os olhos de seu filho estavam serenos como nunca vira antes. O azul parecia mais profundo, em contraste com a barba desgrenhada e a pele ressecada. O tom de voz era tranquilo e quase poderia dizer que o percebia feliz.

O fato de ser Semana Santa, uma época muito mais importante para os seus pais do que para ela, não lhe pareceu coincidência. Estranhamente, se configurou vinculada àquela oportunidade que se apresentava para reencontrar o grande amor de sua vida. Vera lembrou-se que a Páscoa era a época preferida de Carlinhos, quando ele devorava todos os filmes sobre a Paixão de Cristo, dos mais antigos e lacrimosos até os mais discretos e místicos. A sua versão preferida era “O Evangelho Segundo São Matheus”, de Pasolini, a qual ela nunca entendera, porém, ao qual o arrebatou imediatamente assim que viu a cena dos catadores de papel. Dessa forma, teve uma ideia.

Depois de conversarem por um bom tempo, de forma tranquila e fluídica, sem questionamentos sobre o seu modo de vida ou recriminações, como nunca se lembrou de acontecer em casa, Vera perguntou ao filho se gostaria de passar o Domingo de Páscoa em casa, com direito a almoço e tudo mais. Carlinhos chegou a sorrir, mas olhou para o lado, para os seus companheiros e cachorros e disse que não poderia deixá-los… Ela, sem apresentar constrangimento, respondeu: “Traga a todos!…”. “E papai?…”. Ela retrucou que havia conversado bastante sobre ele nestes últimos anos e que ele queria revê-lo, da maneira que fosse…

Depois de pensar um pouco, Carlinhos chamou aos homens e mulheres que ali estavam e conversaram em roda. Pouco depois, deu a resposta que Vera aguardava: “Chegaremos por volta das nove horas da manhã, mamãe! Vamos ajudar a fazer o almoço…”. Vera assentiu, deu um último abraço e foi para o seu compromisso, se sentindo muito mais leve do que quando acordou naquela quinta-feira.

No domingo, tanto Vera quanto Antônio, aguardavam o grupo no portão. Alertada por ela, Antônio esperava um quadro de retirantes a se avizinhar do seu portão, quando viu homens, mulheres, crianças e cachorros descerem de uma Kombi, todos muito bem arrumados… Os cães, sem coleiras, os seguiam e os obedeciam como se fossem adestrados. Após os cumprimentos, foram todos para dentro da ampla casa. O casal se sentiu espantosamente à vontade naquelas circunstâncias. Comeram uma mesa farta e Vera acabou por sentir uma paz inédita. Mais tarde, conversaram…

Carlinhos relatou como vivia. Disse que aquela era a sua família agora, incluindo os cães. Que trabalhavam juntos e dividiam tudo. Que chegou a usar droga e beber bastante quando se reuniu a eles, mas que decidiu ficar limpo quando houve um ataque a um dos membros que, por estar tão embriagado, não percebeu quando foi posto fogo em seu corpo… Morreu em agonia… Ficar sóbrio era o melhor que poderia fazer para proteger melhor a todos…

Carlinhos descreveu as humilhações, a fome constante, as condições difíceis para conseguir dormir com tranquilidade, as circunstâncias duras para negociar com os compradores de recicláveis. Mas também revelou que encontrava muitas pessoas dispostas a ajudar, o que atenuava o sofrimento. O grupo que compunha era formado por pessoas marginalizadas pelo desemprego, pelo vício, pela incapacidade de adaptação às normas sociais. Ele era conhecido como “Professor” pelos demais. Dava aulas para as crianças e os adultos não escolarizados, auxiliado pelos livros que encontravam jogados no lixo.

No final da tarde, o grupo do Professor Carlinhos decidiu ir embora. As crianças estavam felizes, carregando os seus ovos. Os adultos estavam satisfeitos por aquele dia, sabendo que aquela era uma condição momentânea. Tinham a consciência coletiva de que viviam um dia de cada vez. Os cães, que comeram uma ração especial, da qual gostaram bastante, dormiram a tarde toda, ao sentirem o ambiente seguro.

Ao se despedir de Carlinhos, Vera e Antônio, não pediram e nem exigiram nada… No abraço entre os três, antes de verem o filho querido se afastar, pediram perdão… Em resposta, os olhos de Carlinhos ganhou um brilho especial e o casal percebeu o quanto era abençoado pelo filho que criaram…. Nunca a Páscoa ganhou tanto significado – a Renovação se fez…

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