O Piedoso

O Piedoso
Pintura em ajulejo, realizada em 1913, por José Francisco de Oliveira, diplomado na Escola Comercial e Industrial de Brotero – Coimbra – Portugal (Centro Cultural Português, Santos/SP)

O honrado homem chegou ao lugar em que tudo precisava de sua intervenção piedosa. De início, como era um mundo novo, seu espírito desbravador encontrou o espaço ideal para sua atuação. Fundou vilas e porto, construiu igrejas, forte e hospital. Introduziu a agricultura e desenvolveu a economia. Tornou-se um fidalgo rico, por conta de seu espírito empreendedor e destemido. Respeitado por seu povo, era um dos homens favoritos do Rei, que lhe delegou todas as possíveis honrarias.

O honrado e piedoso homem, para realizar todas as obras que o distinguiu como um dos principais de seu tempo, não hesitou em invadir e ocupar terras que não eram suas de origem, matar seus donos primordiais, derrubar a vegetação natural, esteio do povo antigo, dizimar animais e seu habitat, explorar as riquezas que para os autôctones não tinham nenhuma valia. Para completar seu projeto de poder, pretendeu escravizá-los. Enfrentou uma revolta – a Confederação dos Tamoios. Seu nome: Braz Cubas.

Para os colonizadores portugueses, era mais do que natural que assim fosse. Matar os contrários às suas vontades, por sede de riqueza e imposição de uma fé excêntrica, assumir comando sobre espaços – terra, mar e céu mapeado – era uma ação valorosa, que engrandecia o nome da Pátria a milhares de quilômetros de distância. A suprema vilania, que serve como marca definitiva de posse se dá quando limitou fronteiras e as nomeou com sons e signos alienígenas. Assim como capturar as mulheres nativas e usá-las como reprodutoras de mão de obra filial e fiel aos novos donos das sesmarias, tornando-a cooperadora involuntária da destruição de seus ascendentes genéticos.

Dessa maneira, a antiga faixa de terra ocupada pelos habitantes originais, os Tamoios – Tupinambás, Goitacás, Guaianás e Aimorés – transformou-se, muitas luas depois, em grupamentos humanos com costumes estranhos e pendor para a belicosidade. O termo “Tamoio” vem de “ta’mõi“, que em língua tupi significa “avós”, indicando que eles formavam o grupo tupi que há mais tempo se havia instalado no litoral brasileiro. Nunca supuseram que povos mais antigos ainda viessem de lonjuras inalcançáveis para trazerem a morte por armas que queimavam e doenças que seus pajés não conseguiam curar.

Quem afinal se põe em posição de piedoso está em condições de determinar quem vive e quem morre. O prestigioso Braz Cubas, era apenas mais um exemplar daquele povo que dominou o país que se formou com a chegada de mais e mais gente. Muitos mais de seus iguais reproduziram a mesma jornada de dominação e morte dos nativos, finalmente domados.

Seus pares erigiram monumentos para o grande súdito português. Com o tempo, instituições ganharam seu nome, incluindo algumas de ensino, aqui mesmo na antiga terra tupiniquim, a do povo dizimado. Somos filhos desse sistema de colonização. Não há como escapar de nossa História. Devemos enfrentar nossa origem espúria e suas contradições. Conjurar nossa sanha conquistadora-destruidora. Creio que somente dessa forma poderemos superá-la. Vivemos como se não tivéssemos passado e nem presente. Apenas um futuro enganoso e enganado.

Sempre haverá aqueles que virão com projetos de grandeza sem avaliarem as consequências, por piores que sejam. Como quando se constroem pontes para travessia de uns tantos sobre os cadáveres de tantos mais. O objetivo termina por sair mais caro, tanto do ponto de vista material como moral, no melhor sentido, baseado em valores básicos de convivência, como respeito à diversidade, com tolerância, solidariedade, compreensão e comunhão de objetivos éticos.

Enquanto não nos conscientizarmos de nossa História, tenderemos a reproduzir ad eternum os mesmos erros de percurso. Estamos insatisfeitos com o nosso presente, mas buscamos soluções fundadas na força destruidora que formou nossa sociedade. A fama de povo gentil não passa de uma formulação sem validade, como se não fôssemos agressivos. Somos um dos países com mais mortes por número de habitantes, percentualmente.

Vivemos uma guerra civil. Se não mudarmos sua direção, jamais alcançaremos a maturidade civilizatória, ainda que a ideia em torno de civilização tenha uma “má fama”. No entanto, se não partimos daqui para uma concepção mais aprimorada de convivência, a tendência de perdermos a noção de brasilidade que “conquistamos” a ferro e fogo até aqui, ainda que precária, se imporá definitivamente, para a nosso desgosto e prejuízo permanente para as próximas gerações…

Marina, Morena

Lançada em 1947, a linda canção do grande Dorival Caymmi nasceu de uma frase dita por seu filho Dori, então, novinho, quando viu o pai sair pela porta: “Estou de mal!”. O dito ficou martelando na cabeça do compositor e, ao final do dia, a canção estava pronta. Do mote inicial, construiu o sucesso reeditado por Gilberto Gil em 1979 que, inclusive, nomeou como Marina Morena a uma de suas filhas.

Apesar da beleza da melodia, a composição carrega algumas contradições em relação à visão do “politicamente correto” que frequenta nossos dias. Ainda que tenha objeção a normas que preconizam comportamentos uniformes, não posso deixar de observar preconceitos arraigados, sob aspectos aparentemente inocentes da nossa formação como Sociedade, revelados por sua letra. Ao lado da marcante e suingada interpretação de Gil, a imagem mental de um homem inconformado se impõe apenas porque a “sua” Marina pintou o rosto. Prossegue anunciando “eu já perdoei muita coisa, você não arranjava outra igual / Marina, morena, eu tô de mal…”.

Estamos falando de uma música composta há setenta anos antes, época em que a mulher era cobrada por qualquer comportamento diferente do que fosse considerado ideal – obediência e discrição. A interpretação de Caymmi dada à canção é mais contrita, demonstrando mágoa por Marina ter se pintado. Por trás do elogio – “você já é bonita com que Deus lhe deu…” – resiste implicitamente a contrariedade por ela querer chamar atenção ao se pintar. Eventualmente, deveria passar pela cabeça do homem que ele não seria suficiente para ela. Se Marina viesse a responder que se pintava para se sentir um pouco diferente ou mesmo mais bonita para ela mesma, isso não caberia em seu pensamento.

Caymmi, um dos maiores compositores da música brasileira, gostava de artes plásticas, foi pintor quando mais novo e teve contato com diversos intelectuais, artistas e escritores de meados do Século XX, como Jorge Amado. Inteligente e talentoso, ainda assim não escapou às determinismos sociais do período, em que a atuação da mulher se restringia a se casar e ser “dona de casa” como objetivo ideal. Quando canta “você sabe que quando me zango, Marina, não sei perdoar”, é mostrado um personagem irredutível em aceitar tamanha falta.

Setenta anos depois, outra Marina se coloca a frente de uma situação em que ousa ultrapassar os pressupostos estabelecidos ainda hoje em nossa sociedade. É candidata à presidência do País. Apesar de apoiá-la, antes não revelaria o meu voto nela. Mas como já declarei que não votaria em um em especial, entre todos, o que veio a gerar alguma repercussão, a favor e contra, incluindo alguns que privam do meu contato (normal, mesmo porque sou a favor da convivência de ideias contrárias) preferi ser taxativo. Colaborou, também o surgimento de uma foto que achei graciosa pelo enunciado, mas que suscitou minha reflexão: “Enquanto vocês ficam aí brigando entre Lula e Bolsonaro, a Marina está formando seu exército de clones” – via Instagram.

CLONES

Por trás da imagem, há tanta coisa envolvida, que decidi detalhá-la. Nela, vemos Marina Silva (sobrenome-ícone-brasileiro), fazendo o “V” da vitória, em meio a um grupo de mulheres parecidas com ela, em pelo menos uma condição – a origem étnica – a mesma da maioria dos brasileiros: miscigenada, além do pequeno porte físico, a postura contida e o sorriso encabulado. Ela está entre homens e mulheres que fazem parte do grupo que representa, formado por pessoas que, como ela, nasceram em condições precárias de subsistência. O símbolo da vitória se justificaria por diversas razões, mas sobretudo porque ela chega a uma posição de protagonismo em uma eleição majoritária, mais uma vez.

Superada todas as vicissitudes pelas quais passou, como sabemos, não vejo quase nenhuma pessoa tão gabaritada quanto Marina, morena, para chegar à chefia do Executivo. Esta será a terceira vez que comparecerei à urna para referendá-la. Seu projeto me chamou a atenção desde o início pela defesa do meio ambiente e do saneamento básico como requisitos fundamentais para a melhoria das condições mínimas de saúde e bem-estar da população. Parece pouco ou simples. Se é, porque não realizam? Valorizar a Educação de base, incluindo a construção de creches, se é uma tarefa pequena, porque não é implementada? Além disso, seu programa de governo discorre com propriedade sobre as grandes e complexas questões que dizem respeito à administração do País. Para quem se interessar, acesse seu plano de governo: https://ep00.epimg.net/descargables/2018/08/15/fccc6c2f2fbf5bab0e94cc013a27e399.pdf

Ao mesmo tempo, avançou em questões que causava reservas junto a determinados setores “bem pensantes”, que a viam como messiânica, em uma tentativa de desconstrução feitas por antigos aliados. Retirada essa pecha um tanto preconceituosa, com cara de progressista, acho que aprendemos a lição quanto a não voltarmos a seguir tipos que se anunciam como “Salvadores da Pátria”. Nesse quesito, ela demonstrou buscar a colaboração de todos os setores da sociedade brasileira, como líder democrática que é.

Ao final, espero sinceramente que o “exército de clones” da Marina possa vencer, na sua figura, seus oponentes mais gritantes – o preconceito, a misoginia, a visão míope e a desconfiança quanto a capacidade dos brasileiros de superarem seus limites (visto por eles mesmos), apesar da pobreza material e mental reinante – imposta desde sempre pelo sistema cartorial patrocinado por aqueles que sempre viveram às expensas desta Nação.