Lançada em 1947, a linda canção do grande Dorival Caymmi nasceu de uma frase dita por seu filho Dori, então, novinho, quando viu o pai sair pela porta: “Estou de mal!”. O dito ficou martelando na cabeça do compositor e, ao final do dia, a canção estava pronta. Do mote inicial, construiu o sucesso reeditado por Gilberto Gil em 1979 que, inclusive, nomeou como Marina Morena a uma de suas filhas.
Apesar da beleza da melodia, a composição carrega algumas contradições em relação à visão do “politicamente correto” que frequenta nossos dias. Ainda que tenha objeção a normas que preconizam comportamentos uniformes, não posso deixar de observar preconceitos arraigados, sob aspectos aparentemente inocentes da nossa formação como sociedade, revelados por sua letra. Ao lado da marcante e suingada interpretação de Gil, a imagem mental de um homem inconformado se impõe apenas porque a “sua” Marina pintou o rosto. Prossegue anunciando “eu já perdoei muita coisa, você não arranjava outra igual / Marina, morena, eu tô de mal…”.
Estamos falando de uma música composta há setenta anos antes, época em que a mulher era cobrada por qualquer comportamento diferente do que fosse considerado ideal – obediência e discrição. A interpretação de Caymmi dada à canção é mais contrita, demonstrando mágoa por Marina ter se pintado. Por trás do elogio – “você já é bonita com que Deus lhe deu…” – resiste implicitamente a contrariedade por ela querer chamar atenção ao se pintar. Eventualmente, deveria passar pela cabeça do homem que ele não seria suficiente para ela. Se Marina viesse a responder que se pintava para se sentir um pouco diferente ou mesmo mais bonita para ela mesma, isso não caberia em sua cabeça.
Caymmi, um dos maiores compositores da música brasileira, gostava de artes plásticas, foi pintor quando mais novo e teve contato com diversos intelectuais, artistas e escritores de meados do século XX, como Jorge Amado. Inteligente e talentoso, ainda assim não escapou às determinismos sociais do período, em que a atuação da mulher se restringia a se casar e ser “dona de casa” como objetivo ideal. Quando canta “você sabe que quando me zango, Marina, não sei perdoar”, é mostrado um personagem irredutível em aceitar tamanha falta.
Setenta anos depois, outra Marina se coloca a frente de uma situação em que ousa ultrapassar os pressupostos estabelecidos ainda hoje em nossa sociedade. É candidata à presidência do País. Apesar de apoiá-la, antes não revelaria o meu voto nela. Mas como já declarei que não votaria em um em especial, entre todos, o que veio a gerar alguma repercussão, a favor e contra, incluindo alguns que privam do meu contato (normal, mesmo porque sou a favor da convivência de ideias contrárias) preferi ser taxativo. Colaborou, também o surgimento de uma foto que achei bastante engraçada pelo enunciado, mas que suscitou minha reflexão: “Enquanto vocês ficam aí brigando entre Lula e Bolsonaro, a Marina está formando seu exército de clones” – via Instagram.
Por trás da imagem, há tanta coisa envolvida, que decidi detalhá-la. Nela, vemos Marina Silva (sobrenome-ícone-brasileiro), fazendo o “V” da vitória, em meio a um grupo de mulheres parecidas com ela, em pelo menos uma condição – a origem étnica – a mesma da maioria dos brasileiros: miscigenada, além do porte físico, a postura contida e o sorriso encabulado. Ela está entre homens e mulheres que fazem parte do grupo que representa, formado por pessoas que, como ela, nasceram em condições precárias de subsistência. O símbolo da vitória se justificaria por diversas razões, mas sobretudo porque ela chega a uma posição de protagonismo em uma eleição majoritária, mais uma vez.
Superada todas as vicissitudes pelas quais passou, como sabemos, não vejo quase nenhuma pessoa tão gabaritada quanto Marina, morena, para chegar à chefia do Executivo. Esta será a terceira vez que comparecerei à urna para referendá-la. Seu projeto me chamou a atenção desde o início pela defesa do meio ambiente e do saneamento básico como requisitos fundamentais para a melhoria das condições mínimas de saúde e bem-estar da população. Parece pouco ou simples. Se é, porque não realizam? Valorizar a Educação de base, incluindo a construção de creches, se é uma tarefa pequena, porque não é implementada? Além disso, seu programa de governo discorre com propriedade sobre as grandes e complexas questões que dizem respeito à administração do País. Para quem se interessar, acesse: https://ep00.epimg.net/descargables/2018/08/15/fccc6c2f2fbf5bab0e94cc013a27e399.pdf
Ao mesmo tempo, avançou em questões que causava reservas junto a determinados setores “bem pensantes”, que a viam como messiânica, em uma tentativa de desconstrução feitas por antigos aliados. Retirada essa pecha um tanto preconceituosa, com cara de progressista, acho que aprendemos a lição quanto a não voltarmos a seguir tipos que se anunciam como “Salvadores da Pátria”. Nesse quesito, ela demonstrou buscar a colaboração de todos os setores da sociedade brasileira, como líder democrática que é.
Ao final, espero sinceramente que o “exército de clones” da Marina possa vencer, na sua figura, seus oponentes mais gritantes – o preconceito, a misoginia, a visão míope e a desconfiança quanto a capacidade dos brasileiros de superarem seus limites (visto por eles mesmos), apesar da pobreza material e mental reinante – imposta desde sempre pelo sistema cartorial patrocinado por aqueles que sempre viveram às expensas desta Nação.
Não gosto dessa senhora, mas reconheço que ela me faz rir quando usa a biblia em suas falas para depois dizer ao oponente que estamos em um estado laico.
Antes a Bíblia, não é, Lunna, que afinal é um livro. Mas acho essa questão reducionista. Ela sabe se colocar sobre outras questões, que considero relevantes.
Não concordo com você, meu caro. Nem sobre a biblia, que é um livro falho, errático, feito por homens para homens. Mas não vou me estender quanto a isso. E quanto as questões, meu caro… no que diz respeito a nós mulheres, ela não nos representa, pelo contrário. Mudou recentemente certos discursos, mas não me convence.
A Bíblia é o que tínhamos para ontem. Gosto de várias passagens. Mas como disse, não vem ao caso, a não ser que fosse o programa de governo da Marina, que disponibilizei como anexo. Quanto a representar às mulheres, na falta de outra candidata para a presidência, é o que temos para hoje.