18 / 11 / 2025 / Blogvember / Havia Que Deixar O Corpo Descoberto Entre As Pedras

a pele a conversar com esses seres imóveis e permanentes
testemunhas de outras eras
sábias pedras em essencial mutismo ainda que digam —
estamos aqui — somos proféticas
somos compostas de eternidade aqui estaremos depois que vocês partirem
outras vidas pisaram se assentaram se expressaram
em nossa constituição mineral
vocês já tiveram a sua oportunidade fracassaram
testemunhamos a sua decadência
passaram a existência sobre nós a desrespeitar
outras vidas outros cantos outras forças belezas energias
dias e noites noites e dias
também gostamos da luz que nos aquece os contornos
mas em seu caminho autodestrutivo
os humanos estão criando maneiras de que a luz seja apagada
vocês serão extintos nós continuaremos
perfeitos em nossa dura e explícita consciência de cristal…

Participação: Lunna Guedes

Foto por Lucas Pezeta em Pexels.com



O Relógio E As Pedras

Ela não tem como evitar… Desde que foram colocadas pedras brancas no canteiro circular em torno da mangueira, a Bethânia as elegeu como objetos de desejo, as retirando e decorando todos os lugares possíveis da casa. Nós as encontramos em vasos de plantas, no sofá, sobre cadeiras, na nossa cama e em cima da mureta que limita a varanda e o telhado da churrasqueira, em alinhamentos que chegam a parecer mensagens astrais.  Pela mureta, a gata-cachorra acessa a laje da vizinha, casa da minha irmã, de onde fica tretando com o Fredy e o Marley, moradores da sua casa, além de latir para Urbi et Orbi.  

Considerando que seja um ser que age por impulso irrefreável, apresento uma característica quase igual. Eu me atraso, reiteradamente, apesar de montar estratagemas para que isso não aconteça. Não consigo evitar que a minha atenção seja desviada com relação ao horário ao surgir do chão, das paredes, dos portais interdimensionais pequenos entraves – como o único copo sujo que deixei de lavar, um objeto fora do lugar, o fone de ouvido que não encontro, a carteira que estava esquecendo, o coco dos cachorros no quintal que surgem em profusão após o almoço deles e não consigo deixar de recolher… e, por aí, vai.

Essas distrações não ocorrem somente quando tenho compromissos “oficiais”, mas também em circunstâncias comezinhas do dia a dia. Quem convive comigo chega a acreditar que esses desvios acontecem por não me importar, já que se assemelha bastante a descaso. Eu sempre fui um tanto disperso e com o correr da idade, agora oficialmente um idoso, com 62 anos, é bem capaz que essa característica venha a ser confundida com demência. E haja incompreensão…

Bethânia tem a minha solidariedade quando o pessoal de casa ralha com ela, porque parece que quer nos presentear com as pedras ao chegarmos de algum lugar. Mas pensando bem, não só. Também quando estou preparando a refeição do dia, ela as carrega para lugares incógnitos como sinal de satisfação antecipada. Deve haver outros estímulos, senão não veríamos tantas pedras espalhadas (colocadas?) por todos os cantos. Considerando tudo, os nossos impulsos são similares, mas enquanto os dela chegam a ser encantadores, os meus são bastante irritantes.

Entre nós dois há olhares cúmplices de seres que caminham pela linha tênue entre o carinho e a repreensão. Ela não tem vergonha de aparecer com o olhar de cachorro que caiu da mudança e ganhar beijos de compreensão. Quanto a mim, resta a fama de destrambelhado, distraído ou, mais grave, desinteressado. O lindo relógio que ganhei da minha filha, ao final das contas eu o uso apenas para me informar o quanto estou atrasado… Aliás, por onde ele anda?

As Pedras

“Com as pedras do caminho, construirei a minha casa” ou “com as pedras que me atirarem, construirei o meu castelo”. Acho mais pertinente a primeira frase, mais afeita à minha personalidade. A segunda, pretenciosa, ainda que demonstre fortaleza de propósito.

No entanto, não creio que para a Maria Bethânia Ortega, nada disso importe. A Tânia, para cercar a nossa mangueira, em substituição à grama, pisoteada e arrancada pelos cães, decidiu colocar pedras brancas de jardim. Esse visual limpo, parecia ser solução para evitar que a terra fosse escavada pela comunidade canina. Bethânia, simplesmente ficou fascinada por elas. Começamos a encontrá-las dispersas nos mais diversos pontos da área da casa, carregadas pela pequena boca da artista — na cama do casal, na sua própria caminha, no corredor dos quartos, em cima do sofá ou espalhadas pelo quintal.

A Lívia disse que numa das ocasiões, encontrou um desenho triangular, como se fosse uma obra artística ou disposição cabalística. Numa dessas, encontrei três pedras colocadas do mesmo lado, a cada dois degraus. Intencional ou não, de início, eu a admoestava por agir dessa maneira, mas ao perceber que a atração pelas pedras era mais forte do que ela, deixei de falar num tom acusador. Hoje, ao chegar de um compromisso, ela me recebeu com uma pedra na boca. Pensei até que fosse um presente pessoal, mas permaneceu com ela até deixar numa das casinhas.

Pela Internet, cheguei a ver vários vídeos de cães de aparências similares, variações da raça dachshund, que praticam os mesmos atos com objetos diferentes, desde arcos a bichos de pelúcia. Antes, outras coisas sumiam e quando as encontrávamos, estava ou na caminha dela ou dentro dos vasos das plantas, enterrados. De certa forma, talvez esse fascínio pela pedras brancas evite que não suma outras tantas coisas que só venhamos a descobrir tempos depois.

Outra curiosidade é que ela tenha preferência pelo mesmo formato de pedra, mais plana. Se bem que as arredondadas, como são em maior número, também compareçam ao acervo artístico da Bethânia. Essa minha filha já compareceu como tema em meu primeiro livro — REALidade, pela Scenarium — pelo ciúme expresso por latidos sentidos quando acaricio as suas pares da família. Tem um olhar expressivo, uma inteligência incrível, uma postura que comunica os seus desejos de maneira clara e, aparentemente apresenta pendores artísticos e místicos. Ágil, é uma acrobata que anda pelas muretas como se fosse uma gata.

Dada a crença que sejam espíritos em evolução, é bem possível que, assim como outras criaturas da sua espécie, eu volte a encontrá-la em forma humana e possamos interagir com conversas que faria com que a conhecesse mais profundamente. Porque eu não alcanço toda a sua complexidade, mas sei que ela me entende completamente…

Pássaro Do Delírio

Ontem, eu vi um gigantesco pássaro pairar sobre um morro e suas casas de alvenaria sem acabamento, tão típicas nesta região da Periferia.  Ainda que alguns não o enxergassem como pássaro, eu acreditava distintamente em seu corpo curto de imensas asas abertas de lado a lado. Acreditava que fosse prenúncio de boas novas. Seu bico aberto a emitir um canto de liberdade, mesmo que surdo. Ou não…

Talvez fosse o pássaro do apocalipse tão presente quanto o vento frio e cortante daquela manhã. Bicos abertos para devorar o ar e o azul. Asas descomunais para alcançar cidades, planaltos e planícies, colinas e vales de todo país, em pesadelo de lágrimas e padecimento. Indiscriminadamente, recolheria ávida e mortalmente os corretos e os errados, os infratores e os legais, os generosos e os maldosos, homens, mulheres, transgêneros, crianças e velhos.

Comecei a desejar que aquele pássaro fosse apenas uma nuvem passageira, a se desfazer pela ação do vento, da rotação da Terra, do calor do Sol ou, melhor ainda, que viesse a se unir a outras nuvens e se precipitar sobre a terra seca em forma de chuva. Para lavar corpos e mentes, apaziguar espíritos e seres astrais. Que fosse apenas uma ilusão. De alguém que não concebe como uma nação se liquefaz em loucura sem propósito algum, que não seja o de destruir vidas e banir a fraternidade. Que tenta ver no céu azul puro de outono, nos rostos mascarados de quem se cuida e cuida dos seus uma mensagem de boas novas.

Mas, por mais que deseje, sei que vivemos e viveremos dias terríveis. Que tudo piorará muito antes de vir a melhorar. De repente, eu sinto me transformar naquele pássaro. Que busca fugir da realidade para alcançar um outro mundo. Outras possibilidades, outras paragens, um lugar aonde não chegarão homens para destruir tudo o que respira. Um lugar em que eu aja conforme a leis naturais. Que ame em vez de odiar. Que beba água da fonte e fortaleça a minha alma. Que eu prefira morrer em vez de matar. Que cante canções de amor em vez de dor. Que me lave da lama em cachoeiras vindas de nascentes límpidas, assim como fez por séculos o povo originário deste solo, antes de ser dizimado.  

Porém, há os outros… eles são reais como as pedras. Duros como o ferro enferrujado. Não sonham, apenas executam ordens. São sequazes do Ignominioso que não acreditam na igualdade. São seres corrompidos pelo desejo latente e frio como a ponta de baionetas a perfurarem corações. Zombam da desgraça, se alegram com a morte, porque a têm como aliada. Se deixam morrer pela causa errada. Logo percebi que aquele era o pássaro do delírio. Que o céu é alheio ao nosso sofrimento. Que as nuvens não se importam como as enxergamos. São o que são partículas diminutas de gelo ou água. Não passareiam, mas passam… como nós…

BEDA / Scenarium / O “Um” Anel*

Anel
O Precioso

Ontem, sábado, estava no ponto de ônibus, quando a luz tímida do dia nublado incidiu sobre uma peça que brilhava junto aos meus pés. Abaixei-me e o peguei — era um anel. Pode ter sido perdido, escapado dos dedos ali mesmo ou trazido pela água da forte chuva da noite anterior, que o carregou junto a vários outros restos.
O “um anel”, foi apenas segurá-lo entre os meus dedos e comecei imaginar histórias por trás de sua existência. Qual seria o valor deste anel? Quase nenhum, considerando o financial. Deveria custar uns 15 ou 20 Reais, no máximo. Era uma bijuteria feita de um metal simples, imitando a prata e apresentava um desenho em “S”, que alinhava quatro “pedras” lateralmente a outras quatro. Na verdade, um desses oito “brilhantes”, feito de plástico duro, era diferente dos outros sete, que eram mais claros do que esse, amarelado.
Levantei duas hipóteses para essa configuração. A primeira, é a de que tenha sido adquirido assim mesmo. A segunda, é a de que o anel possa ter perdido uma pedra do conjunto, que foi substituída por uma parecida, mas nem tanto. Uma das hipóteses pode envolver a distração do comprador; a outra, a precariedade do conserto. Qualquer opção implicaria na simplicidade do material e de quem o detinha. Simplicidade econômica, mas talvez não de sentimentos.
Eu poderia escolher a suposição de que fosse apenas um anel comprado por alguém, provavelmente uma mulher (segundo a minha avaliação), para si mesma ou para uma amiga; ou ainda de que tenha um presente de uma mãe para a sua filha ou de uma filha para a sua mãe. Mas acabei por escolher a conjectura de que tenha sido um presente de amor romântico, porque hoje preciso que seja assim.
Na hipótese daquela amiga a presentear à sua amiga, seria porque ela fosse mais do que especial. Ou ainda a de um amigo para outro mais do que especial ou de um homem de poucos recursos que quisesse oferecer o melhor anel que pudesse comprar diante de seus poucos recursos para a sua namorada. Adivinhei que fosse um anel de compromisso, representando o pedido para uma coisa mais séria entre eles.
Já os via tendo a paciência de esperar na fila pelo ônibus no horário mais tardio, simplesmente para poderem voltar juntos no coletivo lotado, sentados em um banco que os levaria, em suas conversas, para um lugar muito mais longe do que a distante periferia na qual viviam. Quis sentir que esse fosse o valor do “um anel”, assim que o vi. Eu o guardarei, em respeitoso sinal de seu suposto poder.
*Texto de 2015

 

B.E.D.A. — Blog Every Day August

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Lunna Guedes