Carta Ao Amor Ideal

Amor Ideal, como vai?

Deve saber que há muitos que o procuram em vão, não?

Onde se esconde?

Tenho por mim que, de tão perfeito, você passe despercebido em forma de cumulus nimbos que interdita a luz do Sol apenas para refrescar o calor.

Ou passa disfarçadamente como uma simples sardinha num grande cardume no Atlântico.

Com certeza, morou por um instante nos olhos verdes da moça triste.

Dever caminhar em grupo de pinguins que se juntam para enfrentar a tempestade de neve.

Estou quase certo que o vi de relance no arabesque preciso da bailarina.

Tenho por mim que esteja no beijo de boa noite de uma mãe em seu filho… também. Mas não apenas.

Sei que está no gesto de carinho do namorado no cabelo da amada, ainda que se restrinja a existir em tempo escasso, diante do cotidiano de dissabores.

Todos o desejam eterno, mas somos mortais e nossos desejos urgentes, sem compromisso com o que é permanente. Está nas ondas do mar que se quebram em ruídos d’água espumosos. No entendimento de seu fluxo e refluxo.

Está no quarto 102 de um hotel barato do centro em que os amantes se bastam por tempo determinado.

Caminha nos primeiros passos claudicantes da criança que meses antes mergulhava na barriga materna.

Outro dia, eu o encontrei numa palavra singela, mas que me fez perceber a sua eternidade — “é”.

Amor Ideal, sou dos poucos que desacredita em sua existência sempiterna.

Eu me surpreenderia se eu o encontrasse por aí, ao procurá-lo com insistência. Assim como a Felicidade, deve estar em momentos de descuido…

Foto por Pixabay em Pexels.com

BEDA / Corpo Matutino

Noite de calor, manhã morna
Dormimos sem tirarmos os nossos fluidos
Os seus do meu, os meus do seu corpo
Acordo para a labuta
E antes de sair percorro os meus olhos
Pela pele que lhe recobre
Tento compreender a magia que faz
Com que me traga tantos e imensos prazeres
Mesmo depois de tantos anos a percorrê-la
Com a minha boca, mãos e pontas dos dedos
A penetrá-la com a minha impetuosidade
Saio do quarto sem beijá-la, sem tocá-la
Quase fujo
Para cumprir os compromissos do dia…

Foto por Angela Roma em Pexels.com

Participam do BEDA: Lunna Guedes / Roseli Pedroso / Darlene Regina / Mariana Gouveia / Suzana Martins

B.E.D.A. / Cão Perdido No Espaço*

Laika, primeiro terráqueo vivo a ir para o Espaço, em 1967, pelas mãos do homem.

Quando ela se foi,
silenciosa feito um raio sem trovão —
Oyá calada — comecei a cheirar o chão
pelo qual ela teria passado…

Em busca de seu cheiro —
cão perdigueiro —
perdi meu dom,
me perdi…
Fiquei sem casa,
sem dona,
sem domínio
sobre o meu caminho
de perseguidor de seu odor.

Todas as noites,
uivava para as luas
presas aos postes das ruas,
tentando alcançar as estrelas
de seu corpo,
os cometas em seus cabelos,
os asteroides de seu olhar…

Cercado de escuridão,
senti-me como Layka
só na imensidão infinita —
corpo encapsulado,
sem elo
com a Terra de onde provinha,
a não ser pela gravidade
que a ela me prendia…

Sonhei que pela poderosa atração
de seu corpo,
reentrava na atmosfera
em que ela respirava — invasão
em forma de fogo
e risco de luz — pedaço de metal
incandescente
a penetrar na pele da amada… 
Saudade que se apagava
em choque e explosão,
amor e paixão… 

A energia e o ar de meu módulo
aos poucos se esvai…
Por meus pelos,
o calor se retira da pele,
começo a sentir o frio a me invadir,
até que o frio se torna meu,
antes que deixe de respirar…
Ser sem vigor, aberta sorte,
circulo pelo Espaço a conhecer
o belo mistério da morte…

*Em 3 de novembro de 1957, um mês após a missão do Sputnik 1, os soviéticos mandaram o primeiro ser vivo ao espaço: a cadela Laika. O Sputnik 2 deu 2.570 voltas à Terra e ficou 162 dias em órbita. Queimou-se ao tocar na atmosfera terrestre em 14 de Abril de 1958.

Participam do B.E.D.A.:

Roseli Pedroso / Lunna Guedes / Claudia Leonardi / Darlene Regina / Mariana Gouveia / Adriana Aneli

Amor Cego

quando a toquei
cego pelo amor
desvelei os véus
da percepção humana
para além do sentido
barato e velado da visão

ultrapassei a pele
alcancei a alma
meu corpo se tornou todo potência
energia sem identidade
dor orgástica-holística prazer 
perfeita desorganização
do sentido do sentir

unidos a roçar
terminações nervosas hipersensibilizadas
drogados pelo cheiro gosto  
escuridão clarividente
paixão eterna profunda
muito mais que amor
perene platitude

consubstanciado em línguas
dedos mamas bundas genitálias
bocas mordeduras arranhões
impressões digitais
impermanentes renovadas
toques estoques vibrações

invasão de novos territórios
para além da vida penetrações
atraídos por buracos negros
onde se consomem
fótons fantasias
glúons gulosos
quarks aquartelados
neutrinos sanguíneos
constelações galáxias inteiras

suor golfo úmido rocio
em pelos vaporizados
resfolegar arpejos
brotar plena consciência
corpo epiderme campo fértil
da breve morte bem-vinda
big crunch em um último beijo
no tempo que não existe mais…

BEDA / Quando Os Ponteiros Desapontam

Vivemos pelos ponteiros do relógio…
Ainda que sejam digitais,
aparelhos nos apontam o tempo
que com suas digitais
marcam a nossa pele.
Eu não vivo aqui.
Vivo agora.
O marcador do tempo determina o valor?
Se durou pouco, é paixão?
Se perdura, é amor?
Sabemos quanto mais tempo dura,
maior a chance de frustração.
Amantes em série preferem o momento
violento e fugaz
ao gostar longo e em paz…
Amar deveria permitir
se apaixonar pela mesma pessoa, sempre.
E estar permanentemente apaixonado
pelo ato de amar.
Cinco, quinze, trinta anos…
Creio que possamos amar apaixonadamente
as diversas pessoas que são a mesma pessoa
numa única relação,
que é única por ser preciosa.
Se for outro o caminho,
que ao final de tudo,
não falte, ao menos, carinho…

Lunna Guedes / Claudia Leonardi / Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Alê Helga / Adriana Aneli