“Nenhuma das chaves que possuía podia decifrar os segredos dos [invisíveis] cadeados”, por Flávia Côrtes, em As Estações
o que queremos nem sempre é o que queremos muitos são desejos que queiramos que os queiramos outros são quereres emprestados de gerações mortas estamos vivos desejando nos libertarmos de tantas demandas são fôrmas externas que nos modelam desde tempos imemoriais violência contra os nossos corações imaturos vá por esse caminho de destino conhecido ficará a salvo me salvará de que? se quero experimentar o caminho tortuoso da indecisão e do inesperado? estabilidade sensaboria insensibilidade sem uma dor para chamar de minha? perderá tempo oportunidades se perderão… perdição é o que eu quero se não gosto do que espero e o que esperam de mim… há quem queira decifrar segredos de cadeados atados a ferrolhos pesados quero o impossível decifrar códigos de invisíveis cadeados de querências sem fim ir pelas manhãs de cidades fantasmas adentrar por portas sem batentes seguir por portais para o outro lado de muitos mundos invadir campos não explorados e não cercados de horizontes marcados lusco-fusco de meu olhar atravessado e profano quando quero chegar não existe resiste é o quanto desejo me aprofundar me aproximar do âmago do nada redentor e definitivo estarei morto e feliz a sentir que não tenho fronteira apenas um estado de nenhuma beira…
Passageiro passo Eu e mais tantos coletivamente motorizados Por uma pracinha de uma única árvore larga Do tamanho do abraço de oito homens Nela uma placa propagandeia: “Alianças a moda antiga”… Terei lido errado Na rapidez da minha passagem? Uma lanchonete Uma igreja Um posto de gasolina Pontos comerciais à direita do meu olhar À esquerda Padaria Loja de tintas Uma oficina Quantas funções Serviços Precisões Consórcios Empresas Dos quais somos presas Não bastam as necessidades básicas Temos que adquirir novas e variadas Outras muitas Vender e comprar desejos de consumo Sem eles O que nos move? Amar? Atravessar pontes sem ultrapassar portais? Nos desvestirmos de roupas E posições sociais? Nos apoderarmos de emoções E sentimentos? De sermos mais do que o corpo Nos proporciona de prazer E transcender o gozo? Alcançar o prazer de ser Sem ter? O que somos além de animais Racionais que praticam irracionalidades Identidade e idade Cor e nacionalidade? Já buscou dentro si o universo E o multiverso? O que você É Sem o nome que carrega? A ouvir o som eterno do silêncio Consegue se imaginar sem tamanho Sem o apego ao ego Indefinido e infindo? Deixaria de ser servo E se tornar um com Deus?
Eu me lembro de um samba de Luiz Ayrão pelo qual me apaixonei assim que eu o ouvi. Ainda que fosse uma canção dedicada a Escola de Samba da Portela e eu fosse um fã da Império Serrano; ainda que eu fosse um garoto de 12 anos, inexperiente e tímido, me identifiquei com a imagem do coração escancarado: “Pela porta aberta / De um coração descuidado / Entrou um amor em hora incerta / Que nunca deveria ter entrado / Chegou, tomou conta da casa / Fez o que bem quis e saiu / Bateu a porta do meu coração / Que nunca mais se abriu”. Portas são para isso — servem para entradas, saídas, poemas, romances e canções.
Igreja de São Benedito – São Bento de Sapucaí / MG
Em uma brincadeira antiga se perguntava: “Por que um cachorro entra na igreja? Ora, porque a porta estava aberta”. Não mais, em muitos lugares. A igreja era terreno sagrado tanto para os malfeitores quanto para os vampiros. Diante do aumento da violência, mesmo em cidades pequenas, há horários específicos para que seus portais sejam abertos e fechados. Atualmente, as orações tem tempo marcado. No começo de outubro, fui cumprir um contrato pago antes do advento da Pandemia de Covid-19. Foi o primeiro evento depois de meses inativo. Realizou-se em lugar aberto, com poucos convidados, no Sul de Minas, onde registrei a imagem acima. Cumprimos todos os protocolos de segurança e estou aqui para contar a história.
Pórtico de um hotel no Centro de São Paulo
Há pórticos, portas ou portais que não precisam serem abertos para nos mostrar o exterior. Envidraçados ou vazados, a visão externa se nos apresenta em recortes como telas de cinema, a vigiar os passos de quem passa pela ruas. Carros passeiam pelo leito carroçável e desconhecidos se tornam personagens de comédias ou dramas mudos. A luz projeta sombras e para quem viaja nas linhas de versos ou prosas, criam caminhos de infindáveis labirintos nos quais acabo por me encontrar…
Prédio do início do Século XX reformado – Rua Santa Ephigênia / São Paulo
Portas que fazem igualmente a função de janelas, já que a saída não lhe dá uma saída viável, a não ser você seja um pássaro ou um suicida. A possibilidade de sair sem ir a lugar algum não é uma deferência de portas em varandas elevadas. Muitas vezes, ao sairmos, não temos para onde ir, mesmo que tenhamos liberdade para isso. Portas, diríamos, exigem que as usemos. Que saiamos por elas. Mas nem sempre que retornemos…
Residência de Elton John & Irmãs Kardeshian
Trabalhei nos últimos meses no Yellow Brick Road Garden. Ao fim do caminho dos tijolos amarelos, montamos a residência do galo e galinhas garnisés Elton John, Kim, Kendall e Kyllie. Eu abro a portinhola pela manhã e fecho depois que se recolhem — questão de proteção. Durante o dia, fazem recreação em seu jardim particular, vedado à entrada dos bichos peludos de quatro patas, que observam os bichos penados de duas com o olhar atencioso de quem gostaria de ficarem bem mais próximos do que ficam.
A porta da minha sala…
Para viajar, costumo fechar as portas da minha sala ao mundo exterior. Abri-la não me atrapalharia, supunha. Até que percebi que a minha atenção era presa fácil de borboletas, pássaros ou aviões, folhas farfalhantes ou cachorros com olhares amorosos. Ou qualquer outra coisa. Tenho tentado exercitar a minha atenção o máximo que posso. Não apenas para escrever. Quero sinceramente me esforçar para estar no presente da conversação, da ação, do acontecimento. Valorizar quem está comigo — o tempo em comum. Creio que essa seja a porta de entrada para viver. Ou a saída para não morrer em vida.
Um dos túmulos do Cemitério da Consolação
Certo dia fiz uma incursão ao Cemitério da Consolação. Uma enorme concentração de portas especiais — portas para a Eternidade. E a paz. Foi o que encontrei por lá… Não cruzei com quase nenhuma pessoa. As alamedas entrelaçavam-se em um emaranhado de caminhos para o passado — presente em cada conjunto das obras tumulares. A antiga família mais poderosa de São Paulo tem o maior jazigo da necrópole, feio feito um pesado prédio soviético. Acho estranho que quisessem causar admiração dos vivos, ainda que mortos. Vaidade além do túmulo. No entanto, as que mais gostei foram aquelas que jaziam em ruínas. Como a da imagem acima.