Michelle Pfeiffer (Lea De Lonval) & Rupert Friend (Chéri), em Chéri, de Stephen Frears
Eu era moço Ela, uma senhora E senhora de si Se enamorou de mim… Logo, me buscou E, nela, me encontrei E com ela aprendi a ser Senhor de mim…
Aprendi a abrir portas A usar a língua Para falar e amar Aprendi a amá-la…
E, através dela Amei a todas as mulheres Amei as feias e as belas As fortes e as frágeis As boas e as más As sãs e as loucas Amei muitas e muito Todas, nela…
Certo dia, ela me deixou Sentiu que fosse a hora Porém, nunca saiu de mim Ela me fez um homem Que ama mulheres Que ama amá-las Que a ama eternamente Nelas…
Esta cidade que se come, nesta manhã, reaparece em suas linhas retas-irregulares, em cinza-cimento, imersa em cinza-nebulosidade. Linda, de tão feia. Porque quem a ama, bonita lhe parece – distorção que todo amor gera, abrigado por suas praças sem cuidado.
Retas-irregulares, em cinza…
Quando vejo São Paulo aparentemente desabitada, como nesta manhã-madrugada, sei que por trás de suas portas, paredes e janelas, o drama da vida se apresenta implacável e comovente… Amores acordaram abraçados… Traições foram postas à luz… Amizades passaram a noite insones apenas no bate-papo livre e sem rumo… O desejo de ser feliz pode ter encontrado guarida nos peitos e paixões nos corpos… Ou, tristemente, podem ter se perdido entre os desvãos dos prédios e das ruas sem saída da metrópole insana que desperta…
Fome de aço…
Tenho fome de asfalto, granito e aço. Eu não sei o que acontece, mas não são poucas as vezes que eu sinto uma tremenda vontade de abocanhar esta cidade. Degluti-la quase inteira, absorvê-la e vomitá-la, renovada e rediviva. Traduzida.
Traduções…
Por caminhos antigos, não percebo os escombros. Mas histórias passadas, que um dia foram protegidas por tetos, quartos e salas – lares e comércios – negócios de viver. Espaços contidos de expressão. Lembro as roupas, os comportamentos, adivinho os pensamentos – déjà-vu, atavismo ou alucinação.
Escombros…
Progressivamente, o sol se ergue por entre as colunas e lacunas. Durante o dia, pessoas de todas gerações e procedências se cruzarão por suas calçadas, dobrarão suas esquinas. Serão carregadas feito vírus por trens subterrâneos e vias elevadas, por ônibus e automóveis. Cumprem a magna determinação e enlevado desejo do monstro – querer ser maior e pior.
Leituras…
Seus personagens ressurgem anônimos e marcantes. Tento lê-los… A moça deselegante e amarfanhada, dona da lojinha de frutas, que arranja as prateleiras. O jovem forte e bonito, negro, que reabre o salão afro de cabelereiros e carrega uma camiseta em que se lê: “I ran like a slave. I walk like a king”. Na padaria, enquanto toma café, o operário com capacete de segurança, lê um livro técnico de engenharia. No trem, uma moça, entretida com um livro religioso, permanece em pé, apesar dos inúmeros bancos vazios.