#Blogvember / A Mulher No Espelho

Dona Madalena e eu, no início dos Anos 60

Estranhamente, (quase) sonhei com o meu pai. Foi como se fosse uma introdução a uma viagem mais longa e profunda, interrompida por algo que me acordou. Nunca sonhei, pelo que me lembre, com o meu pai. Se sim, obliterei. A relação com o meu progenitor foi muito difícil, já que nunca fui um modelo de homem que ele aceitasse. Ou seja, alguém como ele mesmo – uma reprodução sua – como alguns dos pais que chegam a nomear as crias com números sequenciais. Eu já disse-escrevi que só perdoarei o meu pai quando me perdoar, numa espécie de espelho que mostra o meu contrário, em uma imagem com milésimos de segundos de atraso. Porém, esse breve instante de “convivência” depois de sua passagem me permitiu uma certa aproximação. Espero voltar a senti-la.

Quanto à minha mãe, a sua decisão de se separar de meu pai aos 70 anos, me fez percebê-la para além da mulher que sonhava com a volta do marido. Amar é aceitar as pessoas como elas se apresentam (são), apesar das eventuais ressalvas. E com a Dona Madalena, eu tinha muitas. Tenho certeza que ela também quanto a mim. Nunca fui uma pessoa fácil de lhe dar, já que tudo buscava desvendar o significado. Como um extraterrestre que caiu na Terra, via tramas invisíveis a cada ação humana a se desenvolver onde os outros encaravam a normalidade. Mas uma coisa sempre percebi – seu amor por mim – acrescida da crença inabalável no homem que me tornaria.

Quando ela transcendeu, até poderia me perguntar: Como posso viver sem essa mulher que funciona como o meu espelho? Alguém que me mostrava melhor do que eu mesmo me imaginava? Um tempo antes dela deixar o corpo físico, eu já me preparava para o desenlace. Buscava atravessar o corredor que ligava a minha casa à dela e a visitava para ver como estava. Percebia a deterioração progressiva de sua saúde. Ao contrário de meus irmãos, sabia que não ficaria muito mais tempo entre nós. Passados alguns meses, ela me veio em sonho e disse que estava em paz. Acordei tão pleno de sua presença que nunca mais senti a sua falta. A todo momento que me olho no espelho, eu a vejo.

Participam: Lunna Guedes / Suzana Martins / Roseli Pedroso / Mariana Gouveia

O Descanso*

A Penélope descansou. Seu enorme coração parou de bater nesta madrugada. Fiquei ao seu lado até o ultimo suspiro. Sua respiração foi ficando cada vez mais ofegante, até diminuir e cessar. Seus olhos, os mesmos que estavam embaçados pela idade, porém que ainda assim buscavam divisar qualquer sinal de petiscos em nossas mãos, se fecharam para sempre. Durante o tempo todo, segurei a sua cabeça e a acarinhei. Enquanto isso, lembrava que chamegos na cabeça e nas costas eram as únicas coisas que gostava mais do que comida. Esses afagos era como se lhe alimentassem a alma. Ela gostosamente se espichava toda e dava o “sorriso” que lhe caracterizava.

A sorridente “Penelopão” chegou ainda nova em nossa casa, mas já grande o suficiente para ocupar um espaço importante na vida da Família Ortega. Ela acompanhou o desenvolvimento das três adolescentes – RomyIngrid e Lívia – até as moças ficarem cada vez mais ausentes, ocupadas com os seus afazeres adultos. Os dois últimos anos foram os mais difíceis e houve episódios em que pensávamos que ela nos deixaria a qualquer instante. Diagnosticado o câncer, tomamos medidas para que fosse mantida em casa, com assistência e cuidados constantes para minimizar o desconforto e as dores, com a orientação da Tânia.

Nesse período, as patas não conseguiam mais sustentar seu pesado corpo com eficiência, mas ainda encontrava forças em algum lugar para se erguer e ir de encontro às pessoas que chegavam, as quais recebia – qualquer uma – com a cauda a dar lhes darem boas-vindas. Ultimamente, reclamava quando ficava sozinha na sala, cozinha ou quintal. “Para, Penélope! Estamos aqui!” – Depois de reclamarmos da “véia”, lá íamos ajudar a insistente a se levantar e caminhar até onde estávamos. Tomávamos precaução para não apertar seu corpo em algumas partes mais doloridas.

Esse ser, todo amor, deixará como legado a paciência com a qual recebia aos novos moradores caninos, que logo se afeiçoavam àquela labradora que protegia as novatas das outras companheiras de quintal. Mãezona, era também menina, sempre disposta a brincar e a passear. Adorava banana, maçã, abacaxi, cenoura… bem gostava de quase tudo. Não dispensava um pedaço de pão, que só introduzimos na dieta para dar o remédio que precisava. Na verdade, ela tinha fome de viver.

Sentiremos falta de seus chamados-latidos. O silêncio de sua ausência será, por um bom tempo, ensurdecedor. Sua marca, em nossas vidas, eterna… 

*Texto de três anos antes. A constatação é que talvez não haja dia que não a citemos ou que não lembremos de sua presença.

BEDA / Scenarium / Um Dia Depois

UM DIA DEPOIS

Um dia depois do Dia dos Pais,
o que mudou no País?
Para tantos pais, filhos e famílias,
o segundo domingo de agosto não foi comemorado.
Pais não receberam seus filhos,
filhos não abraçaram quem os gerou
cuidou,
trabalhou,
viveu por…
Muitos, estavam vivos, mas distantes
e distanciados, por força do isolamento
ou pela desavença e litígio.
Eu, mesmo,
passei os últimos anos de meu pai,
alienado da sua presença. Mas foi uma escolha.
Outros, partiram pela doença do descaso.
Cem mil vezes pranteados.
Há ainda os que estão acamados,
entubados,
estratificados.
Todos, marcados
por estatísticas macabras.
Eu pude estar com as minhas filhas.
Percebi o quanto sou agraciado
por ser beijado,
abraçado,
por me sentir amado,
entrelaçado
pelo enredo familiar.
A minha alegria carregava um travo.
Em domingos sequenciais,
vivemos dentro de uma bolha boçalizada,
em ilhas isoladas,
de mar que se nega a aprofundar.
É como se o oceano não fosse salgado,
suas águas não quebrassem em ondas ao chegarem às praias,
não se permitisse abrigar sereias,
miríades de outros seres,
tesouros naufragados
e continentes perdidos ̶ raso de vida, mistérios e poesia.
Contudo, se aproveitam da crença no fantástico
e renegam a profundidade da Ciência.
Existimos em realidade paralela,
afirmando nossa indecência.
Negamos o conhecimento e festejamos a morte.
Entre plantas ̶ coqueiros e bambuzais ̶
o supremo mandatário deglute a nossa humanidade.
À caminho da segunda centena de milhar,
o chefe do jogo do bicho medonho continua sem paradeiro.
Quem o impedirá o testa de ferro insubordinado dos coronéis do dinheiro de continuar a jogar?
Há remédio
para evitar que muitos mais pais e filhos
estejam separados no próximo Dia dos Pais,
por obra e artimanha da desconsideração por brasileiros,
por obra e arte da estultice de eleitores brasileiros?

B.E.D.A. — Blog Every Day August

Adriana AneliClaudia LeonardiDarlene ReginaMariana Gouveia

Lunna Guedes