Estranhamente, (quase) sonhei com o meu pai. Foi como se fosse uma introdução a uma viagem mais longa e profunda, interrompida por algo que me acordou. Nunca sonhei, pelo que me lembre, com o meu pai. Se sim, obliterei. A relação com o meu progenitor foi muito difícil, já que nunca fui um modelo de homem que ele aceitasse. Ou seja, alguém como ele mesmo – uma reprodução sua – como alguns dos pais que chegam a nomear as crias com números sequenciais. Eu já disse-escrevi que só perdoarei o meu pai quando me perdoar, numa espécie de espelho que mostra o meu contrário, em uma imagem com milésimos de segundos de atraso. Porém, esse breve instante de “convivência” depois de sua passagem me permitiu uma certa aproximação. Espero voltar a senti-la.
Quanto à minha mãe, a sua decisão de se separar de meu pai aos 70 anos, me fez percebê-la para além da mulher que sonhava com a volta do marido. Amar é aceitar as pessoas como elas se apresentam (são), apesar das eventuais ressalvas. E com a Dona Madalena, eu tinha muitas. Tenho certeza que ela também quanto a mim. Nunca fui uma pessoa fácil de lhe dar, já que tudo buscava desvendar o significado. Como um extraterrestre que caiu na Terra, via tramas invisíveis a cada ação humana a se desenvolver onde os outros encaravam a normalidade. Mas uma coisa sempre percebi – seu amor por mim – acrescida da crença inabalável no homem que me tornaria.
Quando ela transcendeu, até poderia me perguntar: Como posso viver sem essa mulher que funciona como o meu espelho? Alguém que me mostrava melhor do que eu mesmo me imaginava? Um tempo antes dela deixar o corpo físico, eu já me preparava para o desenlace. Buscava atravessar o corredor que ligava a minha casa à dela e a visitava para ver como estava. Percebia a deterioração progressiva de sua saúde. Ao contrário de meus irmãos, sabia que não ficaria muito mais tempo entre nós. Passados alguns meses, ela me veio em sonho e disse que estava em paz. Acordei tão pleno de sua presença que nunca mais senti a sua falta. A todo momento que me olho no espelho, eu a vejo.
Participam: Lunna Guedes / Suzana Martins / Roseli Pedroso / Mariana Gouveia
Eu também sempre vejo minha mãe em muitas de mim. abraço
Eu li duas ou três vezes o seu texto… na primeira vez, eu parei na frase: só perdoarei o meu pai quando me perdoar. Frase estranha e pesada. Sem efeito, é verdade, se olhar pelo lado da psicologia. Entender-se como pessoa não passa pelo perdão, essa invenção cristã, tanto quanto o pecado.
Na segunda leitura, o texto se misturou a muitas de suas falas e a expressão que se altera em seus nervos e músculos ao falar deles.
A Psicologia, apesar de ser um deus magnífico, é apenas mais um no panteão. O que talvez queira dizer em relação a se perdoar, no que eu entendo, é me aceitar completamente, com todos os defeitos ainda não sanados. Sei, como já disse Cecília, que muitos me sustentam e, sem os quais, sucumbiria. Quando dizem” para tudo tem remédio, menos a morte”, prefiro dizer que a morte resolve tudo. Não para quem fica, mas para quem vai – seja o sono eterno ou a preparação para uma nova vida.
Ah, o espelho, Obdulio, nos revela e nos protege!
(…)
nossas mãos dadas, isoladas
pés descalços, encobertos
pensamento lento, célere
corpos ardentes, cadavéricos
alma gêmea, ímpar
boca santa, profana
espelho meu, seu
Forte abraço, Rozana