B.E.D.A. / Professor

Professor acordou naquele sábado ainda com a angustiante lembrança de sua morte. Em sonho. Era tão forte a sensação que teve certeza que ocorreria no correr das próximas horas. Tomou o café da manhã com a filha, sem coragem para lhe falar que passaria desta para melhor. Sem muita certeza que a passagem fosse assim tão boa como se dizia — talvez algo dito para a consolação dos que ficavam. Homem culto, professor de Português em escola pública, conhecia inúmeros textos da morte versada em todas as suas possibilidades e expressões, em todos os tempos. Pouco religioso, preferia citar às mitologias egípcia e grega — Osíris, Hypnos e Morfeu — a santos que viessem a lhe dar alento.

Saber que morreria lhe trouxe certa paz e tranquilidade, sentimentos pouco comuns nos últimos anos. Na manhã invernal que se anunciava tépida, pediu para a filha um pouco de dinheiro. Disse que desejava comprar algumas frutas. O salário que recebia da pensão deixava todo para a sábia Sophia administrar, que fazia jus ao nome dado. Viúvo, ela era a luz de sua vida. Sentia-se responsável por ela nunca ter se casado. Intuía que fosse por sua causa, alcoólatra que não bebia há dez anos, mas que antes disso era motivo de preocupação. Uma diversão de final de semana — beber com amigos no Bar do Chico — tornou-se programa diário após a aposentadoria. Decidiu parar quando, embriagado e desconexo, caiu na frente dos ex-alunos em um evento comemorativo de uma antiga turma que o elegera como patrono.

De Professor Carlos, passou a ser chamado somente pelo título. Dos tempos que os alunos se levantavam quando entrava, sua força expressiva impunha esse ritual mesmo depois de cair em desuso nas escolas de relações modernizadas. Aposentado, homem esguio e elegante, preto de cabelo branquíssimo, sua figura lhe fazia parecer uma entidade. Ajudava a aumentar a fantasia em torno de si o uso da bengala, devido ao joelho vago e o chapéu branco — marca registrada dos tempos da escola — mesmo quando moço.

Ciente que morreria, Professor decidiu beber a isso. Ao contrário de tantas vezes em que apenas saudava aos frequentadores do Bar do Chico, quando passava em frente. Dessa vez, tornou seu corpo à esquerda e invadiu o espaço sagrado do balcão de madeira antigo e liso por milhares de passadas de mãos, braços e copos.

Chico, surpreso, o saudou incrédulo. Alguns de seus antigos companheiros de copo presentes tampouco criam que Professor estava sentado junto a eles. Incluindo os três jogadores de dominó na mesa de metal em sempiternas partidas. Chegaram a paralisar por instantes as suas jogadas. Como se há apenas uma semana antes bebesse entre eles, Chico perguntou:

— O de sempre?

— Sim, o de sempre!

Habilmente, Chico preparou em um copo especial — guardado há dez anos — privativo do Professor, a mistura com 50 ml de cachaça, 25 ml de vermute tinto, 25 ml de Cynar, com um twist de limão Taiti. Serviu com reverência ao professor de seus três filhos, homens de bem que o amavam como a um segundo pai. Sua luz desviou vários alunos do caminho do crime, tão comum na Periferia.

Após várias horas de rabos-de-galo, risadas e causos que sabia contar como ninguém — versões adaptadas por ele de histórias da Mitologia greco-romana e de Guimarães RosaProfessor anunciou que era hora de partir. Desacostumado a sentir tanto prazer, embriagado de alegria, sentiu-se preparado para morrer. Ao puxar da carteira, Chico pediu para que a guardasse. Ressaltou que era um prazer servi-lo.

Ergueu-se como se não tivesse bebido nada, o que surpreendeu a todos. Tomou um último gole e deixou um restinho para o santo. Caminhou para a rua pela última vez, com o Sol declinante de agosto no horizonte a lhe conferir tons de âmbar na pele brilhante. Desapareceu no lusco-fusco sem deixar pistas.

Participam do B.E.D.A.:
Adriana Aneli
Mariana Gouveia
Lunna Guedes
Cláudia Leonardi
Roseli Pedroso
Darlene Regina

O Filho Do Porteiro

O meu pai teve várias profissões em sua vida. Foi feirante se considerarmos uma banquinha com produtos de higiene uma “barraca de feira” , torneiro mecânico, marceneiro, pesquisador do IBOPE, almoxarife e porteiro num jornal de economia, na Martins Fontes. Às vezes, eu ia encontrá-lo para vê-lo, já que ele já não morava mais conosco e a mulher que estava com ele não gostava de nossa presença, assim como a minha mãe não gostava que fôssemos à casa deles. O que eu mais gostava é que o Sr. Ortega me entregava quase sempre um exemplar do Jornal da Tarde. Além das páginas de esportes, adorava as de cultura e as crônicas de Lourenço Diaféria.

O jornal acabou por enfrentar problemas financeiros, deixou de publicar em papel e hoje apresenta somente a edição eletrônica. Na época, um jovem que tentava entender o mundo, fiquei intrigado porque uma publicação especializada no setor financeiro não tenha conseguido contornar os efeitos econômicos das sucessivas crises pelas quais passamos. Para se ver que o Brasil não é para amadores ou nem mesmo profissionais. Hoje, eu sei que era o início um processo de modificação no setor de comunicação impresso, que apesar de ainda não haver a concorrência massiva da Internet, decaía por uma razão óbvia para mim: a leitura de modo geral decaiu na mesma proporção da decadência do ensino, em movimento iniciado na Ditadura como projeto de desmonte da educação.

Na época, tanto professores quanto alunos eram encarados como entes que causavam extrema desconfiança. Afinal, o aprendizado requer que pensemos, pensar requer questionar, questionar requer filosofar, especular, contestar o status quo e os esquemas pré-estabelecidos. Nada é mais desesperador para o conservador que, como diz a Lunna Guedes, é um ser preguiçoso, do que ocorrer a revolução dos costumes, a transformação dos tempos, a contestação das classes dominantes, a busca da mudança dos parâmetros políticos. O arejamento do ambiente social para torná-lo mais saudável, tentar encontrar soluções para a diminuição do imenso desnivelamento socioeconômico da população brasileira.

Como bem nos fez ver o atual Ministro da Economia, o Sr. Paulo Guedes, ao objetar a chegada do filho do porteiro ao ensino superior através dos programas públicos de incentivo à educação como o FIES, isso é uma temeridade para pessoas que, com ele e o chefe dele, formam a quadri… a equipe de (des)governantes então no poder federal. Ao educar o filho do porteiro, como eles terão ao seu dispor outros porteiros que, ainda que recebam um baixo salário, possam servir aos deleites dos eleitos: abrir e fechar portas, carregar as suas sacolas de grife, receber as suas correspondências, controlar a circulação de pessoas indesejáveis, recepcionar amigos, distinguir e fazer mesuras aos cidadãos de primeira classe e cuidar de sua segurança?

No início dos anos 80, eu entrei na FFLCH-USP, no curso de História, prestando vestibular. O filho do porteiro então só tinha dois passes para ir e dois para voltar da Zona Norte até a Cidade Universitária, na Zona Sul quatro horas entre ida e volta e um dinheirinho para comer alguma coisa. Eu levava iogurte, maçã e comprava um salgado na lanchonete. Havia o “bandejão”, mas eu preferia economizar para poder tirar cópias dos textos necessários para fazer o curso, já que comprar livros era impensável, devido ao alto custo. Fiquei seis anos frequentando a Cidade Universitária, participei como figurante de “Feliz Ano Velho”, com Malu Mader e Marcos Breda, além da belíssima Eva Wilma; iniciei um curso de Italiano com os alunos de Letras; bati com gosto nos adversários, como médio volante do time de futebol da História (muito fraco); escrevi para o jornal do grêmio da faculdade, fui censurado por usar a palavra “tesão” em um poema (amar como um artesão, com arte e tesão…); escrevi muitos trabalhos literalmente nas coxas (tirei uma das melhores notas de Egiptologia num texto escrito durante o percurso de ônibus); e decidi deixar o curso para começar o de Português, na mesma FFLCH_USP, fazendo um outro vestibular, no qual passei.

O filho do porteiro estava feliz por poder ter contato com a Literatura de uma forma mais intensa. No entanto, “engravidei”. Tudo mudou. Tive que abandonar a faculdade para poder trabalhar integralmente. Eu já trabalhava com eventos, mas como empregado de uma banda. Dois anos depois, eu e o Humberto, montamos a Ortega Luz & Som. Voltei a fazer faculdade apenas aos 47 para 48 anos bacharelado em Educação Física quatro anos em que reencontrei o prazer de estudar, apesar de dormir pouco. Vivi a mesma situação da maioria dos estudantes que precisam fazer os seus cursos e trabalhar para financiar os seus estudos. Fiquei muitas vezes no negativo. O que me movia era poder ter uma opção de trabalho, mas a minha pequena empresa ganhou musculatura e atuar como “personal” ou professor de Educação Física em uma escola foi ficando em segundo plano, principalmente por perceber que a falta de atividade na profissão causa uma defasagem às vezes intransponível. Essa é uma outra questão que os que legislam sobre a educação não entendem estudar é um processo permanente.

O conhecimento exige esforço e demanda recursos. O aprimoramento é fundamental para que o educador possa fornecer subsídios atraentes para que seus alunos prosperarem no aprendizado. O estímulo para quem professa o ensino como missão (me perdoe, Professora Marta Scarpato, que odeia esse termo) deve se dar em uma estrutura adequada, recursos midiáticos, compatíveis com os tempos atuais e a capacitação constante. E, é mais do que claro, salário não apenas digno, mas muitíssimo sobrevalorizado ao que se apresenta hoje. Porém, em se apresentando uma plataforma de governo que adota o Regime Militar como modelo, ou seja, de desmonte da educação, isso não acontecerá. Piorará. É um ciclo vicioso e viciado, pustulento e infectante de doenças do século passado. Isso não é conservadorismo. É putrefação.  

Bom dia! (Ou Como Zeca Baleiro Salvou Duas Vidas) — Parte Um

Novembro de 2020. A Pandemia em São Paulo ainda não vivia a segunda onda. Provavelmente nem tivesse saído da primeira. Numa das casas remanescentes de uma vila, naquela pequena rua de Santana, bastante movimentada por ligar duas vias principais, Raul não via como conseguiria sobreviver a mais um dia. Nos últimos dias, a sensação que tinha era de que, a qualquer momento, seu coração pararia de bater, após desembestar em seguidos galopes. Sentia-se oprimido, como se um paralelepípedo repousasse em seu peito. Quando a noite chegava, sua alma parecia querer sair do corpo, como se procurasse por outro hospedeiro, ao qual nunca encontrava. Ou talvez apenas quisesse fugir. Sem coragem para caminhar até o quarto, se deitava no sofá ainda cheio de pelos do Miau, seu gato-amigo que partira dias antes, após 14 anos de mútua convivência. De alguma maneira, ele sabia que quando isso acontecesse, perderia o resto de motivação que tivesse para acordar todos os dias.

Em março, quando os esforços para impedir que a Covid-19 fizesse mais vítimas do que o sistema de saúde pudesse suportar e o governo municipal e estadual impuseram o fechamento do comércio, fábricas, serviços não essenciais, escritórios e setores culturais, Raul, que vivia a andar pelo fio da navalha, percebeu que os próximos meses seriam difíceis. Com o otimismo preventivo de um depressivo em negação, achava que em três ou quatro meses tudo voltaria ao normal. Quando agosto chegou e se lembrou do aniversário da namorada que o deixou em plena crise existencial, pensou em se matar para fazê-la se arrepender por ter se mudado para a casa de seu melhor amigo (ou que acreditava ser). Naquele momento Miau o olhou nos olhos e o fez mudar de ideia. Por ele, todos os dias pela manhã passaria pelo corredor de pedras amarelas no chão que saía de sua porta, ultrapassaria pelo pequeno portão e caminharia pela ilha central da Avenida Braz Leme por uma hora e meia, única atividade que lhe sobrara, além de ir ao mercadinho ou a padaria.

Seu trabalho, de professor universitário de Ciências Humanas lhe faltou logo depois. Sua empregadora, um dessas faculdades de baixas mensalidades, próxima de onde morava, o demitiu juntamente com vários outros colegas. Arredio, não utilizava as redes sociais. Foi o que bastou para se fechar cada vez mais. A possibilidade que se precipitava no horizonte era a de voltar para Bragança Paulista. Porém, seu pai estaria lá, vivo, o lançando em lembranças feito redemoinho que o afogava como se estivesse a acontecer naquele mesmo instante e não vinte anos antes ou mais. Agora, quase ao final do ano, imaginava a profunda agonia que o mês de dezembro representava. Decidiu pôr fim a sua agonia de barco preso em mar sem fim de calmaria. A decisão serenou seu coração. Raul se sentiu leve como quase nunca pelo tempo que a sua memória alcançava. A noite cálida o convidava à morte bem-vinda.

A fome assomou inesperadamente e, quase feliz, preparou duas fatias de pão integral com banana e requeijão, seu lanche favorito. Sentia que poderia se satisfazer sem se recriminar por se servir de pequenos prazeres. Sentiu-se pacificado com o rumo que dera a sua existência — extingui-la. Após comer, colocou o CD do Zeca Baleiro para tocar. Morreria ao som da música do maranhense. Munido do frasco de sedativos para depressão, se sentou no sofá preferido de Miau. Na mesinha lateral, junto a um copo d’água, se serviu de uma generosa porção de comprimidos, ao som de “Telegrama”, que parecia brincar divertidamente com a sua tristeza:

“Eu ‘tava triste tristinho
Mais sem graça que a top model magrela na passarela
Eu ‘tava só sozinho
Mais solitário que um paulistano
Que um canastrão na hora que cai o pano
‘Tava mais bobo que banda de rock
Que um palhaço do circo Vostok”…

Antes que chegasse os sedativos à boca, esperou os versos seguintes, que pareceu se divertir da sua situação:

“Mas ontem eu recebi um telegrama
Era você de Aracaju ou do Alabama
Dizendo nego, sinta-se feliz
Porque no mundo tem alguém que diz
Que muito te ama
Que tanto te ama
Que muito, muito te ama
Que tanto te ama”…

Sabia que seu amor não era mais seu e que nunca receberia um telegrama dela dizendo que o amava. Esperou mais um pouco, até chegar a sua parte favorita:

“Por isso hoje eu acordei com uma vontade danada
De mandar flores ao delegado
De bater na porta do vizinho e desejar bom dia
De beijar o português da padaria”…

Talvez por estar com todos os poros à flor da pele receptiva, os últimos versos lhe trouxeram uma ideia. Era dono da sua vida, assim como da sua morte. Sabendo que daria fim aos seus dias de qualquer forma, decidiu esperar. Ele cumpriria o ritual de despedida de uma maneira simbólica. Como há muito tempo não acontecia, um sono profundo o brindou como a uma lufada de vento morno. Guardou os comprimidos. Não precisaria nem mesmo do único do qual se servia todas as noites-madrugadas-insones para levá-lo de si. Adormeceu…

EMM – E=mc²

Energia
Foto do casarão da Escola Municipal de Música, na Rua Vergueiro, 961, até junho de 2012.

A minha alma apresenta zonas escuras pela qual caminho de vez em quando. Devo supor que não só a mim assaltam presságios de agouros silentes, porém penetrantes. Como também, igualmente, não apenas a mim sinto chegar massas de energia que são transmitidas por pessoas, coisas e lugares. Creio que ocorram momentos dessa natureza com cada um de nós alguma vez na vida, em que sentimos vibrações benéficas ou maléficas que derivam de eventos e indivíduos.

Passei por várias situações em minha vida em que antecipava com a certeza de quem tinha os presenciado fatos que viria a saber, oficialmente, algum tempo depois. No entanto, isso não é algo que aconteça com tanta frequência comigo. O mais comum é que na maioria das ocasiões eu esteja alheio a acontecimentos que se desenrolam diante do meu nariz.

A introdução acima foi para apresentar uma dessas situações em que as minhas antenas apontavam fortemente em direção a um determinado ponto. Desde que comecei a frequentar a unidade da UNIP do Paraíso, em agosto de 2012, alternava a opção de descer nas estações Paraíso ou Vergueiro, sendo que achava mais interessante a última, por poder me desvencilhar o quanto antes da lotação dos trens do metrô de todas as manhãs.

Todas as vezes que caminhava em direção ao prédio da faculdade e passava em frente a um determinado imóvel na Rua Vergueiro, o meu olhar se desviava para a esquerda e eu sentia uma tremenda necessidade de desvendar o bloco que se apresentava por detrás do alto tapume de metal. O que dava para perceber é que se tratava de uma casa antiga, mas que não apresentava nenhum aspecto especial que a destacasse de outros casarões que estavam sendo abatidos na região, um após outro, substituídos por torres de vidro. Prometi a mim mesmo que usaria alguns dos instrumentos disponíveis na rede para visualizar o local fotograficamente e saber quem vivia ali antes. Por uma dessas situações que não sei identificar porquê, fui protelando meses seguidos essa providência. O número “1” do “961” chegara a cair e outros detalhes do imóvel se deterioravam paulatinamente. Percebi a urgência de realizar a averiguação, o que finalmente se concretizou em meados de abril de 2013. Pude, então, identificar qual a história daquele lugar que emitia uma carga vibracional que me lambia todas as vezes que eu passava por ali.

 

Energia 1
Placa que identificava a construção do futuro prédio comercial.

Quando acessei as informações, me surpreendi, mas nem tanto. O fato de sentir aquela vibração especial irradiada por detrás do tapume não era vã. Ali funcionou, até junho de 2012, a Escola Municipal de Música. Essa instituição que agora funciona no Centrão, na Avenida São João, foi fundada em 1969. Não sei se operou desde o início naquele lugar. Eu fui aluno, por pouco tempo, da E.M.M., trinta anos antes, na unidade que funcionava na Rua Machado de Assis, ali perto. Talvez fosse a mesma escola, não sei. De qualquer forma, na época que frequentei não pude continuar porque não sabia tocar um instrumento razoavelmente. Talvez nenhum…

Passei em uma prova que é feita para ser a mais democrática possível. Quem tem ouvido musical, passa com certa facilidade. Segundo a proposta da E.M.M., “A escola tem por missão formar músicos profissionais, com destaque para os instrumentos de orquestra. Atende interessados de todos os instrumentos de uma orquestra sinfônica, além de regência, canto, saxofone, cravo, flauta doce e violão. Os cursos têm duração variável, de 2 a 12 anos, e o ingresso se dá por seleção interna, com inscrições sempre na primeira semana de outubro. Os cursos são gratuitos, e as exigências para ingresso são publicadas geralmente na terceira semana de setembro em edital no Diário Oficial da Cidade. A seleção de alunos é feita em duas etapas, sendo a primeira um teste auditivo realizado em grupo e a segunda uma prova prática individual, frente a uma banca examinadora”.

Dividida em várias escalas de classificação, o sistema de seleção da grade ensino me jogou para o 1º Ano Teórico. Quando fiz a primeira aula, me senti totalmente deslocado. Todos os alunos já tinham conhecimento teórico e sabiam tocar algum instrumento, quase sem exceções, muito bem. Pedi que me transferissem para um patamar abaixo e fui para o 1º Ano Básico. Não era muito diferente da classe anterior. Quando o nosso professor, Mário Zaccaro, foi fazer uma demonstração de notação musical e pediu para um aluno tocar algo no piano da sala, um jovenzinho “debulhou” nas teclas pretas e brancas, de modo que percebi o quanto seria difícil me equiparar àquele pessoal. Ainda tentei entrar para um dos cursos – me restava o canto – que sabia também ser quase impossível. No dia do teste, o professor selecionador foi muito gentil, me ajudou na postura e observou a minha entonação de “Cio da Terra”, de Chico Buarque, com atenção. Enquanto isso, os outros candidatos se revezavam em peças de Verdi e Puccini. Lá, permaneci um bimestre, tirei a nota mínima na aula teórica (7,0), mas senti que não daria para continuar. Músico frustrado, mas amante incondicional da arte e de músicos, trabalho bem de perto com essa “raça” diferenciada. São seres especiais, sem dúvida.

Não me admira que aquele lugar projetasse tanta energia para fora do tapume. Lá, foram formados alguns dos melhores músicos do País. Naquele lugar se estudou uma arte que carreia a possibilidade de viajarmos para fora de nós mesmos rumo a planetas formados por frequências harmônicas. Uma arte que privilegia e busca a união entre instrumentos e corpos para produzir beleza. Ali, pessoas conjugavam os seus melhores esforços para alcançar a plenitude em produção de música. E aquele ponto de encontro de força criativa, mesmo depois dos envolvidos no processo o terem deixado há vários meses, ainda emitia o seu quantum de energia.

Logo após eu descobrir todo o histórico da casa, ela foi abaixo. Desapareceu qualquer traço visual identificador de que ali funcionou um centro de arte. Rapidamente, fora retirado o entulho resultante, tijolos de história enchiam as caçambas. Foi escavada a terra que fundava o casarão que conectava o chão ao lar de cultura. Mais um tanto de tempo, reinará naquele trecho de rua a mesmice visual e carga energética burocrática e plana de mais um prédio comercial. Não creio que alguém desviará a cabeça para observar mais uma torre envidraçada comum a tantas…

Energia 2
Remoção dos “restos energéticos” e escavação do solo onde se situava a E.M.M., em maio de 2013.

BEDA | Dança Das Entidades

ENTIDADES
A dança…

O dia frio e úmido destoava da sensação que o corpo de Thiago sentia – ar tão abafado que as mãos estavam molhadas – como se tivesse sob um sol escaldante. No entanto, corria a noite… Sabia que sua febre não era puramente física. Don Diego, que o acompanhava e, eventualmente era convidado a assumir o seu corpo, ardia de saudade… Não que fosse represália por Thiago ter brigado com Diana, que carregava Saphyra, seu amor. Apenas acontecia.

Thiago e Diana também já se amaram. Mas viviam às turras, com diferenças quanto a objetivos e posturas. Thiago era mais tranquilo e retraído, quase tímido. Timidez que se esvaía quando colocava sua roupa de cigano e dançava as vibrações-referências de todos os lugares do mundo por onde o seu povo passou, desde quando os ciganos deixaram o Egito e a Índia, passaram pela Pérsia, Turquia, Armênia, chegando à Grécia, onde permaneceram por vários séculos antes de se espalharem pelo resto da Europa, com influências húngaras, russas e espânicas. Don Diego era mestre na dança flamenca.

Saphyra, de origem grega, também sofria. Com o corpo da esfuziante Diana, fazia uma mescla estonteante de flamenco e árabe. Quando conheceu Don Diego, no corpo de Thiago, imediatamente se apaixonou. O casal-entidade forçou para que Thiago e Diana ficassem juntos. E assim aconteceu, não sem antes causarem as separações dos casais que os abrigavam, também ciganos. Apesar da dor causada pelos rompimentos, os respectivos cônjuges se conformaram diante da explosão passional de beleza e efervescência emanadas quando as entidades dançavam nos corpos de seus companheiros. Sabiam que não havia como impedir o rompimento diante do jorro de energia pura que se precipitava salões afora por onde volteavam.

Thiago, por Don Diego, do qual gostava muito, decidiu chamar Diana para conversar. Ela aceitou, por Saphyra e porque o desconforto que passava a estava impedindo de trabalhar. Marcaram de se encontrarem longe do Recando Santa Sarah, em cujo salão de eventos, dançaram pela primeira vez, causando frisson entre todos que os assistiam, em uma festa com a presença dos Guardiões da Noite do Oriente, com a participação de várias famílias ciganas. Entre volteios e braços erguidos, cruzaram os olhares dentro dos olhares, longos cabelos jogados pelo espaço. A grega e o espanhol formaram a dupla que encheria de força cósmica todos os encontros nos últimos cinco anos.

Fora das festividades, Thiago e Diana tiveram que lidar com o cotidiano massacrante de professor e enfermeira. Nos momentos de encontro amoroso, usufruíam do poder do chakra sacral – Swadhisthana – livre e ativo. A conexão entre Don Diego e Saphyra se consolidava a cada encontro, enquanto Thiago e Diana perdiam suas identidades. No entanto, a massa de energia era tão grande que se espraiava prazerosamente por todos os poros de seus corpos. As peles, depois de cada refrega, permaneciam sensíveis a qualquer toque por quase 24 horas, como se fossem queimaduras. Apesar de todo o prazer que sentiam, os efeitos também concorriam para se sentissem desconfortáveis juntos, quando conscientes.

O ex-casal se encontrou em um Café no Paraíso, subiu as escadas e se posicionaram em um dos cantos do mezanino. Estavam calmos e inicialmente conversaram amenidades sobre saúde e rotina. Sentiam-se estranhos por estarem ali naquele ambiente impessoal. Contudo, talvez fosse o ideal para evitarem certas repercussões que já ocorreram antes. Como fariam? Senhora Avelar teria condições de liberá-los? Orações para Santa Sarah? Intervenção do Mestre Kalé?

Em determinado momento, por mais que evitassem, olharam-se nos olhos. Foi o que bastou para quererem se tocar. De mãos unidas, olhos flamejantes, perceberam que seus corpos perderam peso e praticamente flutuavam milímetros acima dos estofados. Seus corpos começaram a vibrar levemente e seus pelos e cabelos se eriçaram a olhos vistos. Trocaram um beijo longo, acompanhado de um suspiro profundo. Testemunhas disseram que sentiram uma lufada de ar quente a percorrer o salão, enquanto a luzes variaram de intensidade. Em pouco tempo, tudo cessou. A temperatura baixa deste Agosto voltou a prevalecer. Thiago e Diana se olharam como desconhecidos. Don Diego e Saphyra haviam partido..

Participam do BEDA: ClaudiaFernandaHanna LunnaMari