Novembro de 2020. A Pandemia em São Paulo ainda não vivia a segunda onda. Provavelmente nem tivesse saído da primeira. Numa das casas remanescentes de uma vila, naquela pequena rua de Santana, bastante movimentada por ligar duas vias principais, Raul não via como conseguiria sobreviver a mais um dia. Nos últimos dias, a sensação que tinha era de que, a qualquer momento, seu coração pararia de bater, após de desembestar em seguidos galopes. Sentia-se oprimido, como se um paralelepípedo repousasse em seu peito. Quando a noite chegava, sua alma parecia querer sair do corpo, como se procurasse por outro hospedeiro, ao qual nunca encontrava. Ou talvez apenas quisesse fugir. Sem coragem para caminhar até o quarto, se deitava no sofá ainda cheio de pelos do Miau, seu gato-amigo que partira dias antes, após 14 anos de mútua convivência. De alguma maneira, ele sabia que quando isso acontecesse, perderia o resto de motivação que tivesse para se acordar todos os dias.
Em março, quando os esforços para impedir que a Covid-19 fizesse mais vítimas do que o sistema de saúde pudesse suportar e o governo municipal e estadual impuseram o fechamento do comércio, fábricas, serviços não essenciais, escritórios e setores culturais, Raul, que vivia a andar pelo fio da navalha, percebeu que os próximos meses seriam difíceis. Com o otimismo preventivo de um depressivo em negação, achava que em três ou quatro meses tudo voltaria ao normal. Quando agosto chegou e se lembrou do aniversário da namorada que o deixou em plena crise existencial, pensou em se matar para fazê-la se arrepender por ter se mudado para a casa de seu melhor amigo (ou que acreditava ser). Naquele momento Miau o olhou nos olhos e o fez mudar de ideia. Por ele, todos os dias pela manhã passaria pelo corredor de pedras amarelas no chão que saía de sua porta, ultrapassaria pelo pequeno portão e caminharia pela ilha central da Avenida Braz Leme por uma hora e meia, única atividade que lhe sobrara, além de ir ao mercadinho ou a padaria.
Seu trabalho, de professor universitário de Ciências Humanas lhe faltou logo depois. Sua empregadora, um dessas faculdades de baixas mensalidades, próxima de onde morava, o demitiu juntamente com vários outros colegas. Arredio, não utilizava as redes sociais. Foi o que bastou para se fechar cada vez mais. A possibilidade que se precipitava no horizonte era a de voltar para Bragança Paulista. Porém, seu pai estaria lá, vivo, o lançando em lembranças feito redemoinho que o afogava como se estivesse a acontecer naquele mesmo instante e não vinte anos antes ou mais. Agora, quase ao final do ano, imaginava a profunda agonia que o mês de dezembro representava. Decidiu pôr fim a sua agonia de barco preso em mar sem fim de calmaria. A decisão serenou seu coração. Raul se sentiu leve como quase nunca pelo tempo que a sua memória alcançava. A noite cálida o convidava à morte bem-vinda.
A fome assomou inesperadamente e, quase feliz, preparou duas fatias de pão integral com banana e requeijão, seu lanche favorito. Sentia que poderia se satisfazer sem se recriminar por se servir de pequenos prazeres. Sentiu-se pacificado com o rumo que dera a sua existência — extingui-la. Após comer, colocou o CD do Zeca Baleiro para tocar. Morreria ao som da música do maranhense. Munido do frasco de sedativos para depressão, se sentou no sofá preferido de Miau. Na mesinha lateral, junto a um copo d’água, se serviu de uma generosa porção de comprimidos, ao som de “Telegrama”, que parecia brincar divertidamente com a sua tristeza:
“Eu ‘tava triste tristinho
Mais sem graça que a top model magrela na passarela
Eu ‘tava só sozinho
Mais solitário que um paulistano
Que um canastrão na hora que cai o pano
‘Tava mais bobo que banda de rock
Que um palhaço do circo Vostok”…
Antes que chegasse os sedativos à boca, esperou os versos seguintes, que pareceu se divertir a sua situação:
“Mas ontem eu recebi um telegrama
Era você de Aracaju ou do Alabama
Dizendo nego, sinta-se feliz
Porque no mundo tem alguém que diz
Que muito te ama
Que tanto te ama
Que muito, muito te ama
Que tanto te ama”…
Sabia que seu amor não era mais seu e que nunca receberia um telegrama dela dizendo que o amava. Esperou mais um pouco, até chegar a sua parte favorita:
“Por isso hoje eu acordei com uma vontade danada
De mandar flores ao delegado
De bater na porta do vizinho e desejar bom dia
De beijar o português da padaria”…
Talvez por estar com todos os poros à flor da pele receptiva, os últimos versos lhe trouxeram uma ideia. Era dono da sua vida, assim como da sua morte. Sabendo que daria fim aos seus dias de qualquer forma, decidiu esperar. Ele cumpriria o ritual de despedida de uma maneira simbólica. Como há muito tempo não acontecia, um sono profundo o brindou como a uma lufada de vento morno. Guardou os comprimidos. Não precisaria nem mesmo do único do qual se servia todas as noites-madrugadas-insones para levá-lo de si. Adormeceu…