O Carlos (Vila Madalena)

– Me paga uma cerveja?

Levanto os olhos do meu computador, onde escrevo o meu novo artigo e vejo Karl Marx… ou alguém muito parecido. A luz que vinha da janela do bar onde, num canto, eu tenho uma mesa cativa quase debaixo da pequena escada caracol, lhe emprestava uma aura de eternidade. Não o conhecia, mas lhe indiquei a cadeira à frente, sempre vaga para os meus encontros profissionais ou amigáveis. Chamei à Cíntia com a mão e pedi para que lhe trouxesse uma caneca com uma cerveja que eu gostava, artesanal.

– Bom dia! Como você se chama?

– Ah! Bom dia! Desculpa a falta de educação! Fico assim quando estou com fome… Meu nome é Carlos

– Quer comer alguma coisa?

– Oh, não! A cerveja já me basta como alimento… O senhor é escritor?

– Nada de “senhor”! O meu nome é Francisco. Sou escritor, sim…

– Desculpa em interromper o seu trabalho. Eu o vi de fora e fiquei fascinado por sua “ausência”. Como se fosse um pianista executando uma partitura em seu momento de transe.

– Gostei da sua imagem. Também escreve?

– De outro modo. Sou compositor, mas atuo apenas como músico. Lançar composições autorais no mercado do jeito que está – concorrido e parcial – é só para os mais fascinados pelo sucesso comercial… e que não se importam em fazer concessões. Prefiro tocar em barzinhos…

– Que instrumento toca?

– Baixo, guitarra, violão… o que estiver precisando.

– Sabe o que é interessante? O meu artigo é sobre a letra de uma música. Não é o caso de decifrá-la, mas interpretá-la. “O Quereres”, do Caetano

– Eu amo “O Quereres”! É quase perfeita! Dentre os vários versos, há um que até entendo o que Caetano quis dizer, mas não acho que não sejam tão opositores assim…

– É? Qual passagem?

– “Onde queres família, sou maluco / Onde queres romântico, burguês”…

– Por que, não?

– Olha, só um doido para querer formar uma família nos dias de hoje… E o romantismo é uma criação burguesa. Surgiu no Século XVIII, com a Revolução Francesa, ascensão da burguesia, da liberdade individual. Nada mais burguês, já que não estar preso às convenções é algo apenas reservado às classes econômicas mais aquinhoadas, que não precisam seguir regras. Já estão com a vida ganha… Trabalhador não pode transpor certos limites…

– Você fala bem… como um professor…

– Ah, não queria parecer professoral. Já dei aula antes de viver como instrumentista. Sou formado em Sociologia.

A cada frase terminada, Carlos pontuava tomando um pequeno gole de cerveja, como se quisesse economizar.

– Você deve andar na corda bamba. Ser professor ou músico não deve ser fácil… Mas olha quem está falando… Tenho que produzir bastante para pagar as contas. Às vezes, trabalho no automático. A dona do bar é minha amiga. Permite que ocupe esta mesa. Disse que dá uma um certo ar intelectual ao lugar. Na verdade, ela gosta da minha presença. Sempre que recebo uma visita, a pessoa se torna freguês.

Um belo rapaz se aproxima da minha mesa e se posiciona ao meu lado. Ao virar o rosto, ele me dá

uma bitoca.

Fala, querido!

– Tô indo para o apartamento, tá bom, Chico?

– Fica à vontade! Berenice está com saudade de você!

– E eu, dela! Ela melhorou das dores nas pernas?

– A mesma coisa… se puder, faça uma massagem nas suas pernas e pés, tá bom? Esse é o Carlos, músico. Estamos discorrendo sobre um artigo que tenho que entregar.

– Olá! Tudo bem?

– Sim! Prazer em conhecê-lo…

Matheus! O meu nome é Matheus!

– O prazer é meu!

– Até mais, Chico!

– Inté!

Trocamos outro beijo leve nos lábios. Logo após a saída de Matheus, Carlos sorriu e perguntou a quanto tempo conhecia o Matheus.

– A vida toda, dele…

Diante do olhar entre espanto e censura, expliquei.

– Ele é meu filho. Ele sempre me chamou por meu apelido. Nos cumprimentamos com selinhos desde que ele era bem novinho. Gostava de beijar todo mundo. A mim, minha ex-mulher… os tios, primos…

– Ele tem um porte atlético! O que faz?

– Estuda Direito. Fica um pouco comigo, um pouco com a minha ex-mulher e o pai biológico dele. Mas é a mim que considera como pai e assim me chama quando quer conversar sobre algo mais íntimo.

– Quantos anos ele tinha quando você se casou com a…?

Ella, com dois “eles”… Estávamos namorando e ela anunciou que estava grávida. Logo, providenciamos os papéis. Eu sempre quis me casar! Apesar de acalentar o sonho de ser escritor, eu trabalhava com comércio exterior, acredita? Ganhava bem… até que…

Inesperadamente, fiquei emocionado. Não esperava que a velha história ainda me tocasse daquela maneira. Mesmo sendo tão clichê…

Matheus tinha 14 anos e percebeu que a mãe estava se comunicando frequentemente com um tal de Raul, como ouviu chamá-lo. Ciumento, me falou sobre ela estar namorando pelo telefone, marcando encontros. Ao interpelá-la, me confessou que estava tendo um caso com o sujeito. Perguntei a quanto tempo. Respondeu que quando me conheceu, tinha acabado de romper com ele. Gostou de mim. Eu parecia ser cara legal, além de estável financeiramente. Achou que talvez o esquecesse… Preciso também de uma cerveja…

Sinalizei para a Cíntia para que nos trouxesse mais duas canecas. Carlos rapidamente tomou o que restava da primeira. Com os seus olhos de pensador alemão parecia me ouvir com um ar de real tristeza, como se fosse um velho amigo.

– Foi então que fez a revelação que me derrubou. Ella havia tentado ainda mais uma vez voltar com Raul. Saíram, foram prá cama e ela engravidou. Quando revelou sobre a gravidez, Raul disse que não se importava… Ela que tirasse! Pai e mãe religiosos, sem nenhuma outra opção, me usou. Foi a melhor coisa que poderia ter feito. Mesmo iludido por considerar Matheus meu filho natural, nunca me separaria dela. Estava apaixonado por minha família. Só ocorreu a separação porque voltou a encontrar a quem sempre amou. Raul havia se separado da esposa, deixando a casa para ela e o casal de filhos, irmãos do Matheus.

– Nossa! Que história! E Matheus, com quem ficou?

– Tivemos que contar tudo com muito cuidado, mesmo porque Raul queria conhecer o menino. Apesar de tudo, era seu direito, assim como era direito do Matheus saber. Mas menti quando disse que sabia desde o início não ser seu pai biológico. Mesmo porque, era estéril…

– Caramba! Até nisso mentiu?

– Sim e não! Sempre tentamos ter outra criança. De fato, era mais um desejo dela do que meu. Após a revelação, procurei fazer um exame que constatou a minha esterilidade. Quando Matheus soube de tudo, ficou desesperado. Disse que queria ser meu filho, não daquele sujeito que nem conhecia direito. Como já tinha 14 anos, apesar dos apelos da mãe, ele escolheu ficar comigo. A Berenice, nossa auxiliar, nos ajudou muito. Com a ausência tanto dos meus pais quanto os de Ella, que morreram quando Matheus ainda era pequeno, ela representou muito bem o papel de avó. Nós a amamos como tal!

– E quando mudou de atividade?

– Quase ao mesmo tempo em que ocorreu a separação. Acho que precisava de uma sacudidela para mudar. Dei sorte de ter conhecidos que me indicaram para a realização de artigos na área de comércio exterior. Gostaram de meu estilo menos pomposo para explicar o funcionamento do mercado, esse ser invisível. Logo, estava escrevendo sobre outros assuntos.

– Que legal! Nunca imaginei que teria uma manhã tão inspiradora apenas porque desejei matar a minha sede! Você é foda, Francisco!

– Pode me chamar de Chico! Nunca havia contado essa história para ninguém de maneira tão aberta! E para quem nem conhecia. Foi a cerveja mais bem paga que banquei! De repente, me senti aliviado!

– Olha, preciso ir ensaiar! Eu vou me apresentar junto com uma cantora ótima, na próxima quinta-feira. Lá no Bar do Pereira, conhece? Vai lá me visitar! E sempre que tiver chance, virei aqui com segundas intenções…

Após engolir de uma vez um pesado gole de cerveja, testemunhei o sisudo Karl Marx a rir desbragadamente. Saiu, caminhando rua abaixo. Há 1 Km, ficava o Bar do Pereira. Vila Madalena confirmou que continuava a ser um país incrível!

Imagem ilustrativa do Bar São Cristovão, na Vila Madalena.

Perdão Pela Modernidade*

Neste texto pessoal, uma carta, mas que encarei como profissão de fé, baseado nas leituras que efetivei ao longo de anos, eu respondi ao meu pai – Odulio Ortega – acerca de uma postura parcial quanto à visão da História. Encalacrado em uma visão antiga da qual não conseguia se desviar, ele me acusou de dar voz aos seus adversários políticos, enquanto eu tentava colocar a minha posição quanto ao desenvolvimento dos fatos que então demonstravam, segundo eu pensava, o caminho errado que a Esquerda tomava à época, em 2012*. Havia percebido que o sentido adotado por ela resultaria no enfraquecimento das possibilidades de entendimento entre um ideário e outro, podendo causar, como veio a acontecer, na divisão do País. Sempre soube que sem cotejar visões antagônicas para o exercício político, não haveria futuro para a nossa precária Democracia, de alguma forma atacada de um lado e de outro na tentativa de impor como único. O meu afastamento crítico ainda assim não impediu que seis anos depois pudesse antever o mal causado pelo viés à Extrema Direita que veio afligir o Brasil nos últimos quatro anos. Apesar de no primeiro parágrafo eu ter citado a miscelânea messiânica que ele empregava ao se posicionar, eu igualmente escolhi estabelecer uma postura mais ligada à religiosidade, muito frequente em minhas manifestações pessoais.

“Permita-me inicialmente analisar a maneira como o senhor mistura sistemas de governo com ideários econômicos e religiões com crenças, considerando, inclusive, o estabelecimento de critérios absolutamente pessoais de percepção da realidade como fatos históricos estabelecidos em letras impressas de jornal, derrubando exaustivos estudos de historiadores, antropólogos, arqueólogos e estudiosos sociais que decretaram que os chamados autóctones aqui encontrados, na verdade massacraram os antigos moradores da terra, que por sua vez, chegaram do norte em ondas migratórias que atravessaram o estreito de Bering, que fica entre a Ásia e o Alaska, provavelmente por uma ponte de gelo criada na última era glacial.

O que isto quer dizer? Que nenhuma etnia pertence originalmente ao lugar em que vive, considerando retrospectivamente o tempo de uma forma mais extensa, contado não em dezenas ou centenas, mas em milhares de anos, olhado de uma maneira mais abrangente, como estabelece, aliás, a visão espírita, em que a vida se desdobra em papéis vivenciados em ciclos de “nascimento” e “morte”. Sempre é bom lembrar que nem mesmo Alan Kardec propôs algo original, já que a milhares de anos, o Hinduísmo contempla a existência em diversos planos. Assimilação.

A espécie humana é originária da África, fato determinado por pesquisas feitas com base no DNA mitocondrial, e de lá, avançou continente afora até a Ásia e a Europa, onde fatores ambientais moldaram exteriormente a sua estrutura física, adaptando-se aos requisitos necessários à sobrevivência ao meio. Além disso, considera-se que, como o Homo sapiens, o Homem de Neardenthal chegou a alcançar algum sucesso nesse intento, mas a nossa espécie acabou por suplantar a esta última como a mais apta e inteligente para prosseguir a jornada, a incorporando em eventuais cruzamentos ou até aniquilando-a. Adaptação.

O aumento da inteligência humana, propiciada pela capacidade plástica de nosso cérebro, supõe-se ter sido estimulada por consumo de proteína animal. Para isso, o homem passou a caçar os outros seres viventes que o cercavam, chegando a extinguir algumas espécies contemporâneas de então, como o Mastodonte. Consequentemente, se hoje em dia podemos escolher entre ser onívoro ou abster-se de não participar ativamente da cadeia alimentar, preferindo o Vegetarianismo, como eu optei em determinada época da minha vida, terá sido simplesmente porque construímos uma capacidade ímpar de julgarmos e escolhermos o melhor para nós, graças a um nosso antepassado ousar enfrentar e matar outros animais para comê-los. Assim, ampliamos a nossa quantidade de ligações neurais, possibilitando-nos o domínio sobre a Terra e de tudo que caminha sobre ela. Superação.

Civilizações se ergueram e se desmoronaram, da África à Europa, da Ásia ao Oriente Médio e até na América Pré-Colombiana, com Maias, Incas e Astecas, estas cruelmente especializadas em sacrifícios humanos oferecidos aos deuses. Quando os portugueses e espanhóis invadiram esta terra, aproveitaram-se das várias animosidades existentes entre as diversas tribos aqui estabelecidas, dominaram o território, mesmo sem a presença massiva de homens. Se a sociedade naturalista dos indígenas era assim tão evoluída, porque sucumbiu tão facilmente ao oferecimento de bugigangas e destilados? Se fosse moralmente assim tão capacitada, porque se ofereceu tão ingenuamente à imolação religiosa levada adiante por catequizadores supostamente bem intencionados e não o contrário? Ainda assim, os que sobreviveram á escravidão e às novas doenças, acabaram por adentrar pelo sertão ou acabaram por miscigenar-se aos invasores, formando um povo diferente, que viria a adotar pelos dois ou três séculos seguintes o Tupi-Guarani como língua usualmente empregada no dia a dia.  Acomodação.

Por essa perspectiva, eu creio que devemos aceitar que nós, seres humanos, sempre evoluímos entre os escombros de construções precárias e de corpos dados á sanha do conquistador de ocasião. Nossa aptidão deverá o de sempre buscar a luz no caminho, tentando fazer uma verdadeira revolução pessoal que nos fortaleça a ponto de resistirmos eticamente aos assaltos perpetrados pelo egoísmo e então chegarmos ao equilíbrio entre Corpo e Espírito. Revelação.

A chamada “Modernidade nome dado a um processo atual, portanto, é circunstancial. Foi moderno o homem sair da África rumo às outras terras para sobreviver; foi moderno o Homo sapiens sobrepujar ao Homem de Neardenthal, por sua adaptabilidade ao meio; foi moderno o surgimento de civilizações que dominaram a outras, bem como foi moderno as suas quedas; foi moderno o homem cruzar os oceanos e chegar às praias ensolaradas onde os seus habitantes não previram que ali estavam os seus algozes; sempre foi moderno o homem escravizar a outros homens; sempre foi moderno o homem explorar a força de trabalho de outros homens, em seu próprio benefício. Mas o que pode realmente ser chamado de suprema modernidade, acima de todas as coisas, em todos os tempos, e faz com que o homem transcenda a sua humanidade é o ato de perdoar a outro homem, apesar do suposto mal imposto a ele por seu próximo, e ainda assim amá-lo, apesar disso.

Perdão pela Modernidade.”

Memorabilia*

Na foto mais antiga (final dos anos 70), Fofinha está no meu colo, meu irmão humano, Humberto, do lado. Na mais recente, de 2012, Domitila e Frida estão comigo.

O passar do tempo é algo que não se pode apreender, mesmo que o registremos com fotos, sons, imagens em movimento e outros quesitos de memorabilia. Sempre será difícil captar a intensidade dos sentimentos e emoções envolvidos na revelação de um fato ou época que já passou. Ainda que haja testemunhas, costuma-se obliterar detalhes e deixar escapar minúcias. Mas algo ainda há sempre de se perceber na construção da memória — colunas, tijolos, plantas e irmãos — de todas as formas.

*Texto de 2012

Clariceando Em Dia Nublado E Frio De Outono

Clarice, marcada…

“… E é inútil procurar encurtar caminho e querer começar já sabendo que a voz diz pouco, já começando por ser despessoal. Pois existe a trajetória, e a trajetória não é apenas um modo de ir. A trajetória somos nós mesmos. Em matéria de viver, nunca se pode chegar antes. A via-crucis não é um descaminho, é a passagem única, não se chega senão através dela e com ela. A insistência é o nosso esforço, a desistência é o prêmio. A este só se chega quando se experimentou o poder de construir, e, apesar do gosto de poder, prefere-se a desistência. A desistência tem que ser uma escolha. Desistir é a escolha mais sagrada de uma vida. Desistir é o verdadeiro instante humano. E só esta é a glória própria de minha condição.

A desistência é uma revelação.

Desisto, e terei sido a pessoa humana – é só no pior de minha condição que esta é assumida como o meu destino. Existir exige de mim o grande sacrifício de não ter força, desisto, e eis que na mão fraca o mundo cabe. Desisto, e para a minha pobreza humana abre-se a única alegria que me é dado ter, a alegria humana. Sei disso, e estremeço – viver me deixa tão impressionada, viver me tira o sono.”

Esses são alguns dos exemplares e imensos parágrafos que encontramos em “A Paixão Segundo G.H.“, de Clarice Lispector. Ontem, quando fui buscar “AS Ondas“, de Virginia Woolf, encontrei o magro livro que contém excertos de contos de Clarice Lispector. Eu tenho uma sessão de livros escritos por mulheres, além das autoras da Scenarium, expostas juntas aos seus pares de selo em outra prateleira. Tinha várias outras opções para escolher, mas um pouco mais cedo vi e ouvi a maravilhosa Fernando Montenegro interpretando uma passagem de “Um Sopro De Vida“, me impactando de tal maneira que quis “claricear” o dia nublado e frio de outono. Produzido em 1981, pela Editora Abril Educação como suporte de estudos à realização de vestibulares, foi muito bem estruturado com Sumário, Biografia, Cronologia Biográfica, uma lista com Obras da Autora e textos selecionados de “Perto Do Coração Selvagem“, “Laços De Família“, “A Legião Estrangeira“, “A Paixão Segundo G.H.“, “Uma Aprendizagem Ou O Livro Dos Prazeres“, “Felicidade Clandestina“, “Onde Estivestes à Noite?” e “A Hora Da Estrela“.

A edição apresenta um panorama das várias épocas em que foram produzidas, ainda que a obra de Clarice seja atemporal (Do Estado Novo ao Novo Estado, à espera de um mundo melhor); uma cronologia-histórico-literária; características da autora (Em busca do selvagem coração da vida); verificação dos conteúdos; exercícios de de fixação; atividades de criação; livros para consultas e bibliografia consultada. Ou seja, um estudo completo que ganha autonomia para além da imersão nos escritos. Elaborada por Samira Youssef Campedelli e Benjamin Abdala Jr., na época em que fiz o vestibular para a Faculdade de História da USP, poderia tê-lo utilizado se o tivesse em minhas mãos. Mas não me lembro dela. A capa está marcada por caneta. Por dentro, está rabiscado à lápis de cor com nomes em letra de forma, como quando alguém aprende a escrever. Não duvido que eu a tenha recolhido de algum lugar por aí, em missão de salvamento.

Entre as suas páginas, encontrei uma folha com indicações de grandes autores brasileiros com resumos de obras de cada um intitulada “Resumos Especiais” Reunião“, de Drummond de Andrade; “Iracema“, de José de Alencar“; “Memórias Póstumas…“, de Machado de Assis; “Sagarana“, de Guimarães Rosa e “São Bernardo“, Graciliano Ramos. Produzida pelo Curso de Vestibulares MED, me recordei que eu não tinha condições financeiras de fazer esse ou qualquer outro dos “cursinhos” que naqueles tempos floresceram à sombra da deficiência que as escolas começaram a apresentar já nos anos 70 com a reestruturação da Educação promovida pela Ditadura. Um projeto contínuo de controle ideológico da didática do ensino, impedimento da discussão sobre a produção do conhecimento, da análise dos problemas sociais brasileiros e da censura sobre as áreas criativas e culturais.

Não precisei dos cursinhos para entrar na USP, mas o dano causado à Educação pelo projeto militar, acabou por tornar gerações inteiras imunes à grandiosa beleza da obra produzida por Clarice Lispector. Uma das maiores escritoras do mundo que, nascida na Ucrânia, preferiu escrever em Português, enriquecendo a Língua e a Literatura brasileira.

Maratona Literária Interative-se de Maio

Alê Helga / Lunna Guedes / Mariana Gouveia
Roseli Pedroso / Isabelle Brum

Garota De Programa*

Ricardo se sentou, pediu duas cervejas ao garçom e, sem muitos rodeios, disse a Carlos, mirando diretamente nos olhos do amigo:

– A sua namorada é uma garota de programa!

Carlos, sustentando o olhar, após alguns instantes, respondeu:

– Você quer dizer uma “senhora” garota de programa, não é mesmo?

Ricardo, agora surpreso, retorquiu:

– Você já sabia?

– Quando a conheci, ela foi franca comigo, me contou que aquele era um trabalho como outro qualquer e aceitei o fato normalmente.

– Cara, que surpresa! Não sei mais o que dizer!

– Não diga nada. Alguém mais, da nossa turma, sabe disso?

– Não, que eu saiba… Eu o conheço há tanto tempo e não esperava que você fosse capaz de tal desprendimento… Parabéns!

Na verdade, Ricardo não queria demonstrar a sua decepção diante da postura de Carlos. Ele julgava que o querido amigo não soubesse da atividade de Patrícia. Desde que aquela namorada aparecera na vida de Ricardo, se sentia meio que jogado de escanteio. Ficou ressabiado com o fato dela parecer tão perfeita, com a sua postura de “lady, seu corpo de sereia, seu perfil de modelo”, como já dissera várias vezes. Uma mistura de inveja e ciúme assomara de tal forma que buscou saber tudo sobre a “rival”. Começou a segui-la sempre que possível e essa perseguição terminava sempre no momento em que ela adentrava à porta do hospital onde dizia que prestava plantão médico. Certo dia, porém, Ricardo decidiu esperar até que a residente saísse. Qual não foi o seu assombro quando, meia hora depois que a viu entrar, testemunhou Patrícia sair do prédio? Tomado de certa comoção, a seguiu até que a viu entrar em uma das mais badaladas casas de prostituição de São Paulo, bem perto do hospital. Quase radiante, gritou dentro do carro: “Eu sabia!”…

***

No momento da revelação, Carlos se sentiu como que apunhalado pelas costas, tanto por Patrícia, como por Ricardo, que evidentemente havia demonstrado contentamento de lhe dar aquela notícia. Não pediu provas ao amigo. Intimamente, intuía alguma coisa. No entanto, formalmente, não sabia de nada. Já havia a deixado algumas vezes no hospital onde disse que prestava residência, mas estranhava o fato dela estar escalada para fazer plantão quase toda a noite. Ao mesmo tempo, se sentia tão abençoado por ter visto surgir àquela deusa em sua existência. Patrícia não era apenas linda, mas igualmente bem-humorada, carinhosa e elegante, física e mentalmente. Por isso, mesmo depois de começar a suspeitar sobre as peculiaridades da situação, não pretendeu ir fundo em suas dúvidas. Quando se perguntava como se dera um encontro tão especial entre o dois, de si para si, jogava fora todas as aparentes contradições para viver a felicidade de estar com ela. Quando respondeu ao Ricardo daquela forma, não quis dar o braço a torcer ao amigo que sempre insinuava que uma moça como aquela não poderia existir assim, sem nenhum defeito. Depois da conversa entre ambos, logo que pode, se despediu de Ricardo e ligou para a Patrícia, marcando um encontro para logo mais à tarde. Segundo ela, à noite, faria plantão.

***

– Por que você não me disse que era garota de programa?

Patrícia abriu os seus grandes olhos verdes, ainda mais, e sentiu as pernas bambearem. Finalmente, Carlos descobrira o seu segredo. Sempre temera que isso se desse, mais cedo ou mais tarde. Nunca pretendeu enganá-lo, mas tudo acontecera de maneira tão urgente e imprevista – o encontro, a paixão, o romance – que não conseguiu revelar ao namorado o que fazia para ganhar a vida. Com Carlos, vira surgir o amor de uma forma inesperada. Ele não era um rapaz que se destacasse entre outros, fisicamente. Porém, o seu sorriso e sua postura desprendida, chamara a sua atenção aos poucos, em encontros fortuitos, aqui e ali, na padaria ou no supermercado do bairro em que ambos residiam. Foi dela a iniciativa de passarem da troca de olhares para a troca de palavras. Carlos demonstrou ser inteligente e bem-humorado. Rapidamente, percebera naquele cara, alguém que queria para si, como companheiro. Concomitantemente, não desgostava da vida que levava, das amigas que colecionara naquela profissão, de saber dos poderosos homens que a adoravam. E agora, isso!… Genuinamente emocionada, deixou escapar uma grossa lágrima sobre a pele delicada e não conseguiu dizer absolutamente mais nada.

***

Carlos estacionou o carro junto ao meio fio junto à discreta entrada do edifício. Os seguranças sorriram quando viram que se tratava do carro do marido de Patrícia. Os dois eram muito bem quistos naquela casa. A moça era uma funcionária exemplar e o rapaz, muito simpático. Patrícia beijou amorosamente o seu parceiro e recomendou que ele colocasse as crianças para dormir assim que chegasse em casa. Ele disse que teria uma reunião importante no dia seguinte e que iria dormir logo que possível e que sairia bem cedo. Talvez, antes que ela chegasse. Voltando para a casa, Carlos se deu conta do quanto se sentia venturoso por ter uma família perfeita – uma linda mulher e um casal de crianças saudáveis. Agradeceu a si mesmo pelo fato de ter passado por cima de preconceitos e sentimentos menores para dar a si a chance de ser feliz com a pessoa que amava. Carlos se lembrava constantemente do momento em que tomou a resolução de ficar com Patrícia, se ela assim desejasse. Com a alegre aceitação da namorada, tudo ficou mais fácil. Ela havia revelado que não poderia deixar o seu trabalho imediatamente e ele especulou sobre essa situação francamente perguntando sobre ganhos e condições de trabalho. Lembrou-se de como ficara verdadeiramente impressionado com o que auferia. Era praticamente o salário de um alto executivo. Percebera, ainda, que ela gostava do que fazia, e que aquilo não interferia no amor que sentia por ele, genuíno e vigoroso. Por acordo, decidiram que ela continuasse naquela ocupação até o momento que achasse conveniente. Lembrou-se da oposição de amigos e familiares com aquela relação, pois Ricardo divulgou a novidade para quem interessar quisesse. Carlos acreditou que quem gostasse verdadeiramente dele, o compreenderia. Com o afastamento de alguns dos velhos amigos, se juntou a novos, ligados ao mundo de Patrícia, muito mais divertidos. Após o casamento, com a ajuda financeira dela, montara uma pequena empresa de informática, que logo crescera com o talento que demonstrou para os negócios. Muito ajudou o conhecimento pela esposa de certas pessoas muito influentes. Com o tempo e a chegada dos gêmeos, os seus pais voltaram ao convívio do casal. Eles, semelhantemente, se apaixonaram por ela. A mãe de Carlos dizia sempre que Patrícia tinha uma classe natural e a considerava superior às moças que se relacionaram anteriormente com o filho. Esse fato confortou um pouco a ausência dos seus pais, que não aceitavam a profissão da filha. Mas aos poucos, com a vinda dos netos, a situação parecia se caminhar para um bom termo. Sim, ele era um homem afortunado! Noite alta, o carro que o conduzia de volta ao lar parecia flutuar acima do asfalto da cidade suja…

*Constante de uma das edições da Revista Plural, publicada trimestralmente pela Scenarium Plural – Livros Artesanais. A edição de Agosto intitula-se Mask, com textos sobre os atuais tempos pandêmicos e artigos especiais sobre o grafiteiro Banksy.

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