BEDA / Os Santos Inventados, Mas Reais

São Jorge, visto na Lua

Hoje é dia de São Jorge, comemorado com um feriado na cidade do Rio de Janeiro. Assim como São Sebastião se tornou um outro padroeiro da Cidade Maravilhosa, ambos santos teriam vivido na mesma época e contexto, com referências parecidas , ainda que duvidosas quanto às suas existências. A principal característica é que teriam sido soldados romanos do Imperador Deocleciano. Enquanto o primeiro teria se recusado a perseguir e a matar os Cristãos, o segundo teria se alistado para defender e levar conforto aos perseguidos religiosos que, na visão do Império, se constituíam em opositores à organização política, já que transferia a autoridade suprema do Imperador para um opositor da Província da Galileia.

São Jorge (em grego: Άγιος Γεώργιος; romanizÁgios Geṓrgios; em latimGeorgius; entre 275 e 280 — 23 de abril de 303), também conhecido como Jorge da Capadócia e Jorge de Lida foi, conforme a tradição, um soldado romano no exército do Imperador Diocleciano, venerado como mártir cristão. Na hagiografia, São Jorge é um dos santos mais venerados no Catolicismo, na Igreja Ortodoxa, bem como na Comunhão Anglicana. É imortalizado na lenda em que mata o dragão. É também um dos Catorze Santos Auxiliares. No cânon do Papa Gelásio (+496), São Jorge é mencionando entre aqueles que ‘foram justamente reverenciados pelos homens e cujos atos são conhecidos somente por Deus’” (Wikipédia).

Aliás, essa última frase serve para tudo, principalmente quando algo não pode ser provado por testemunhos factuais. Diriam que é questão de . A justifica quase tudo, na verdade. Não desdenho dessa característica humana que faz com que as pessoas suportem as piores agruras. O fato de alguns dos santos chegarem a condição de santidade pelo martírio em nome de algo intangível, invisível a olho nu, é um um dado que me interessa bastante, já que percebo poucas coisas, mas desconfio de muitas outras, por puro sentimento de identificação ou “intuição”.

No caso tanto de São Jorge da Capadócia como de São Sebastião, torturas e execuções ajudaram a enaltecer suas trajetórias através dos fins trágicos. A imagem alegórica do santo sobre um cavalo branco, matando um dragão (representação do Mal) sendo morto por sua lança, o transformou em uma figura mítica, bem afeita as mais variadas acepções fantásticas. A crença humana o fez ser visto até na Lua.

Ainda assim, foram construídas apocrifamente biografias que tentam validar suas existências e atuações. Tanto um quanto outro são santos militares, sendo que a adoção de São Jorge como padroeiro da Inglaterra, assim como de Portugal, talvez justificasse o furor que empregavam na luta para derrotarem os povos que defendiam seus territórios invadidos.

São Sebastião, flechado amarrado a um carvalho.

São Sebastião, acusado de acobertar e auxiliar cristãos perseguidos, foi condenado a ser executado preso a um carvalho símbolo de força moral e física, como o atesta a sua expressão em latim, robur. Segundo alguns relatos, ainda que ferido de morte, teria se dirigido ao Imperador para confrontá-lo, sendo espancado até a morte, tendo o seu corpo jogado em nos esgotos de Roma. Foi adotado como padroeiro da cidade do Rio de Janeiro por um evento histórico: em 20 de Janeiro de 1567, os portugueses e seus aliados — o grupo indígena rival dos Tupinambás, os Temiminós — destruíram a colônia francesa incrustada na região.

Ambos os mártires acabaram por representar vários personagens no fenômeno do crescimento da adoção do Cristianismo como a religião entre os soldados romanos. Mais tarde, a Igreja Católica Romana adotou a formulação de divisões militares romanas na organização de sua estrutura. São Jorge, no Brasil, começou a ser identificado no sincretismo religioso afro-brasileiro, com Ogum da Umbanda, o poderoso guerreiro, dono do ferro e do fogo, que defende a lei e a ordem.

São Sebastião, mais recente, com o movimento LGBTQIA+. Segundo o pesquisador norte-americano Richard Kaye, PhD pela Universidade de Princeton e professor no Hunter College de Nova York, apresenta-o como um soldado “muito amado” pelos imperadores romanos de seu período, que o queriam sempre por perto. O autor insinua que o santo poderia ter sido, mais do que guarda pessoal, amante dos imperadores (publicação da BBC).

Para Maerki, é importante ainda pontuar que São Sebastião “é o santo masculino mais retratado na história da arte”. “E a imagem clássica de seu corpo, seminu, resplandecendo beleza, se tornou simbólico. Historiadores e especialistas como Kaye veem nesse imaginário do corpo sendo retratado com um erotismo, uma espécie de propaganda do desejo homossexual”, analisa. Outra identificação ocorre por ele ser protetor dos perseguidos que defendem as suas causas.

Carrego a convicção que muitos fatos, mesmo que não sejam corroborados por provas científicas ou históricas, eles acabam por se tornar “reais”, pelos efeitos que causam na Realidade e como repercutem no imaginário das pessoas que com elas se identificam. Os documentos normalmente são apócrifos e no caso dos dois referidos santos, para assustar quem quisesse defender a fé cristã, foi decretado que não fossem referidas as biografias pessoais de cada traidor, mas sim as sevícias a que foram submetidos, com requintes de crueldade. De qualquer forma, estou aqui eu a discorrer sobre algo que carrega dúvidas quanto a sua origem, mas têm lugar no mundo. A mesma “fé” que eu trago que o que venha a escrever possa ser lembrado por quem me lê.

Participam do BEDA: 
Lunna Guedes / Alê Helga / Mariana Gouveia / 
Cláudia Leonardi 

Cidadão São Paulo

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Habito São Paulo. E São Paulo habita em mim. É um hábito. Maneira de se comportar e vestimenta. É personagem. Amiga controversa. Versão e contravenção. Mil estações (no mesmo dia). Temperaturas diversas. Temperamental. Rebelde. É aço e algodão. Passeio e trabalho. Muito trabalho. Trabalhosa.

Há cidadãos que conversam com ela. Sou um deles. Quase não obtenho resposta às perguntas que faço. Mas insisto em entendê-la. Talvez não seja o caso… Talvez seja um acaso viver aqui. Aqui ter nascido, filho de imigrantes, vindos de pontos diferentes do planeta. Talvez, destino operado pela conjunção astral, movimento das marés ou o caminho do mar – única saída para muitos… Vieram dar aqui. Nasci São Paulo.

Sou a cidade. Somos. Todos que a atravessam, feitos adagas na caixa do mágico, são São Paulo. A compomos. Possuídos, a possuímos. Filme de terror de Sessão da Tarde. À noite, renascemos. Amanhecemos para trabalhar. Somos transportados feito gado. Festejamos o suor e a chuva inesperada com praguejas. O sol é inclemente para quem não permanece nas ilhas de sombra e frio. E reclamam. Preferem o ar condicionado. São Paulo adora o artificial. Cria paredes pintadas de verde, a simular o verde que perdeu.

Seu rio já morreu. Dizem que renascerá. Eu não verei. Como não verei o Centrão revitalizado, os antigos prédios restaurados. As ruas como passeios e não como moradas. Das praças como lugar de lazer saudável, não usufruirei.  Contudo, também sou essa São Paulo necrosada. Sou como mosca, a voar em torno de corpos putrefatos, habitações que cercam solidões. E reproduzo. Mosquinhas que amam lamber de seu corpo em (de)composição. Veias-asfaltos expostas a seringas de borracha. Vício em cheiro de gasolina. Som de buzinas, arrancadas e freadas. Hip-Hop e Bolero.

Dia 25 de Janeiro, São Paulo completa mais um aniversário. Como Roma, o seu nascimento foi mítico. Os entes eram outros, porém. Há 464 anos, originais da terra e jesuítas de nacionalidades diversas se reuniram para sagrarem uma celebração mística em nome do mais improvável Apóstolo, dando início a uma jornada que ameaçou ser abortada tantas vezes, mas que se fortaleceu à cada episódio. Homens estranhos e estrangeiros naquele dia sacramentaram o nosso destino séculos antes de existirmos. Seres humanos foram oferecidos em sacrifícios de sangue e café. Esta cidade veio a forjar cidadãos mestiços que invadiram as entranhas do País em busca de sonhos fátuos e, no entanto, grandes o suficiente para gerarem uma Nação.

Comemorarei ser São Paulo. Porque não resta alternativa a não ser não ser. E outra coisa, não quero ser.