Ritos

Rito

Maria é feliz por ser mulher.
Crê que nasceu para sê-lo.
Cumprir as potencialidades,
abraçar as possibilidades,
viver as idades do viver…

Maria nasceu para amar
e para amar ser o que é,
em seus diferentes estados.
Sente-se tão confortável
em seu corpo feminino,
que apreende o mundo que a rodeia
como extensão de sua pele.

Passa as mãos por seus cabelos
matizados pelo tempo –
mais um rito de passagem –
que cumprirá sem regras.
Como se vê com serena
e fresca maturidade,
serão tingidos
da cor de sua percepção.
Ou não…

O espelho a devolve
nostálgica,
a se lembrar dos outros ritos
pelos quais passou:
aprender a ler,
explorar,
sair da casa – interior – soltar-se
do umbigo, o cordão.
E voltar…

Amou a primeira menstruação –
desejada como se fosse um presente divino.
Foi a última, entre irmãs e amigas,
a sentir a quentura do sangue
a descer da origem do mundo.

Mais tarde,
decidiu conhecer o sexo –
mais tarde do que quem a conhecia imaginasse –
por mais libertária que se mostrasse.
Queria que não fosse por acaso.
Ainda que amorosa,
não amava quem a fez conhecer
a saborosa dor do prazer.
Escolheu aquele que, depois,
a deixasse em paz…

Outro rito de passagem: trabalhar.
Tornar-se senhora de si.
Lutar por seus direitos e de outros.
Congregar,
unir,
entender as diferenças,
esvaziar as ofensas,
ultrapassar-se…

O rito definitivo
não foi se apaixonar
ainda que tenha sido intensa.
Nem mesmo casar,
apesar de importante.

Mas gerar –
receber em terreno fértil
a semente que plantou –
fecundar a vida,
multiplicar a força do existir,
vestir de roupa nova
um antigo espírito.
Embalar o pequeno corpo,
alimenta-lo,
vê-lo crescer,
ensinar o peso
e o significado das palavras.

Esse rito não representou a simplificação
do mundo material e do além-Terra,
nem a vaidosa reprodução
de vitórias e mazelas.
Mas a criação de nova realidade –
como mulher, possuir o Universo…

Madame

Madame

Don era chefe em uma repartição pública. Sempre simpático, era admirado por seus comandados. Todos apreciavam a sua habilidade em controlar situações adversas. Charmoso, conseguia com sorrisos obter melhores resultados do que a palavra dura usualmente utilizada como traço de comando. Chamava bastante a atenção das mulheres, mas nunca ultrapassou os limites da sociabilidade padrão. Muitas, buscavam atrair o seu olhar. Para Ana, justamente a mais discreta, reservava a sua palavra mais carinhosa. Não foi difícil misturarem as linhas de conexão e se apaixonarem. No entanto, ambos eram casados.

Ainda que não quisessem levar adiante uma aproximação mais íntima, o destino colaborou para um vínculo definitivo ao serem escolhidos para um congresso de gestão pública em Brasília. Longe de casa, o mútuo desejo se fez sentir feito fogo no Cerrado seco. Os dois se surpreenderam por serem absolutamente vorazes no sexo. Casaram seus corpos feito música romântica na voz de Roberto Carlos – o côncavo e o convexo. As jornadas de reuniões e palestras burocráticas eram compensadas por noites de entrega a fantasias sequer imaginadas quando estavam com seus parceiros habituais. Foram quatro dias que se encerraram com lágrimas, antes da viagem de volta.

Combinaram uma agenda de encontros para quando voltassem a São Paulo. Não conseguiriam ficar sem algo que não tinham antes, mas que se tornou absolutamente imprescindível. Descobriram-se maiores, expandidos para além de parâmetros conformes a que sempre obedeceram. O mais interessante é que seus respectivos companheiros também se beneficiaram em suas relações pessoais. A partir daquele momento em diante, os momentos de encontros íntimos ficaram mais prazerosos e aguardados com ardor. Durante os dias de semana, as horas de almoço e finais de expediente estavam reservados aos amantes.

Os bons gestores conseguiram levar adiante suas vidas duplas de maneira discreta, mas com afinco e prazer. Adão, o marido de Ana comemorava intimamente o fogo redivivo de início de matrimônio, sem vincular nenhum outro motivo do que uma fase oportunamente benfazeja. Já, Janaína, esposa de Don, desconfiou de tanta paixão no ato sexual. Gostou bastante da nova versão do homem sempre muito comedido, apesar de carinhoso. Porém, sabia que algo mais estava acontecendo. Nunca foi ciumenta, porém esperou um momento de distração para conseguir acessar o celular do marido e obter as informações que precisava para ter certeza das escapadas de Don.

Mulher bem informada e de opiniões fortes, a palavra “escapadas” formulada antes, seria contestada por ela. Advogada, não considerava a instituição do casamento uma prisão, mas apenas um contrato social, importante para assegurar direitos, apenas. Sabia que quando não houvesse mais condições de continuar um relacionamento sem as mínimas bases de sustentação, o melhor seria dissolver o acordo. Ainda assim, Janaína, carinhosamente chamada de “Madame” por Don, uma brincadeira em contraponto ao nome dele, o amava muito. Percebeu que o encontro dele com a nova parceira o deixara mais aberto e um homem melhor.

Madame deixou aflorar uma fantasia que teve o cuidado antecipar em sua mente antes de a revelar a Don. Não buscou explicação para ela. Somente queria realizá-la. Não sabia como o seu companheiro reagiria, todavia como parecia cada vez mais desenvolto em sua nova faceta, a pediria. Certa noite, Don chegou mais tarde. Exibia o sorriso novo que havia surgido nos últimos tempos, que o deixava ainda mais sedutor. Madame sabia que voltava de um encontro com a outra. Jantaram, e entre goles de vinho tinto, foi direto ao assunto. Disse que sabia que ele tinha um relacionamento com alguém da repartição (jogou verde). Imediatamente, o rosto de Don adquiriu feições que em questão de instantes ora pareciam de surpresa-espanto, ora de pura estupefação sobre a pele de cera.

Casal sem filhos, eram os melhores tios que existiam. O casamento havia chegado naquele ponto em que a estabilidade se confundia com mesmice, marcados por momentos festivos e tristezas pontuais. Madame era uma mulher firme e inteligente. Sua postura não comportava grandes arroubos e ele amava o porto seguro que representava. A chegada de Ana em sua vida, tornou tudo muito mais emocionante. E agora, isso… Sem sequer conseguir balbuciar palavra, olhava para Madame e tentava captar em seu olhar qual seria sua estratégia. Estaria armando uma vingança? Continuou mudo por mais alguns instantes, enquanto ela mantinha o rosto impassível. Don moveu sua mão em direção ao bolso do paletó e retirou o celular. Desbloqueou e o entregou à Madame.

Ela o apanhou e calmamente correu os arquivos de fotos. Percebeu uma pasta em que aparecia uma bela mulher de olhos claros e cabelos negros. “Muito interessante…” – balbuciou. “Nenhuma foto dela, nua?…”. “Para que?”. “Gostaria de saber se tem o corpo melhor que o meu…”. “Você sabe que não ligo para isso”. “Talvez… saberei se a ver nua.”. Don pediu o celular de volta e acessou os arquivos bloqueados. Abertos, entregou o aparelho de volta. Madame observou detidamente cada uma das fotos. Chegou a mordiscar os lábios algumas vezes. Desviou o olhar um instante em direção a Don, sorriu e desferiu: “Ela é linda!… Um dia quero conhecê-la mais de perto…”. Passado mais um minuto, devolveu o celular e completou: “Por enquanto, não. Quero ir com você nos mesmos lugares onde os dois se encontram. Se quiser continuar casado comigo somente lá e então transaremos. Se assim decidir, há outra condição – não diga nada a ela… qual o seu nome, mesmo?…”. “Ana…”. “Além disso, quero que seja vista mais vezes com você”.

Don não argumentou. Jantou calado e passou o resto da noite deitado no sofá, pensando, onde adormeceu. Pela manhã, perguntou a Madame se poderia ir de encontro a ele na hora do almoço. Ela respondeu afirmativamente. Já no escritório, mandou mensagem para Ana, informando que não poderiam estar juntos naquele dia, pois almoçaria com a esposa. Ao meio dia, desceu até o saguão do antigo prédio do centro da cidade, onde encontrou Madame. Saíram de carro e foram até um flat. Cumprimentou os funcionários que estranharam a presença da nova mulher. Já no apartamento, mal adentrou, Madame desceu o zíper da calça do marido e o chupou como nunca fez, muita excitada. Don respondeu com igual paixão e ali, junto à entrada, provavelmente tiveram a melhor foda desde o início do casamento.

A partir daquele dia, Don passou a alternar seus encontros sexuais entre Ana e Madame. Enquanto Madame sabia de Ana, Ana desconhecia que Don trazia sua esposa para o local que considerava só deles. Essa circunstância excitava muito a Madame. Verdadeiramente, se sentia a outra. Quando isso não fosse mais um estímulo, já havia lhe passado pela mente certas variações. Um dia, chegaria o momento de incorporar a presença do terceiro vórtice do triângulo no mesmo espaço. Porém, ainda não… Don ainda estava aprendendo a se libertar de certas amarras e se quisesse que desse tudo certo, conversaria com Ana antes. As mulheres saberiam se entender…

BEDA | O Segundo Assassinato de Marielle

ARMA
Vamos nos amar ou nos armar?

Eu já escolhi em quem votar. E, principalmente, escolhi em quem não votar – um, entre todos. Ou seja, qualquer que seja o/a seu/sua oponente, caso chegue ao segundo turno, voltarei contra Jair Bolsonaro. Esse senhor talvez seja a pessoa mais despreparada para chegar ao cargo mais importante da Nação já visto. O que é incrível, visto o péssimo rol de candidatos que se apresenta para esta eleição e outras que já tivemos.

Não sabe nada sobre Economia. Não sabe nada sobre Educação. Não sabe nada sobre Saúde. Não sabe nada sobre relações humanas. Não sabe nada sobre governar. Talvez saiba algo sobre mandar, acostumado que está a ser obedecido por tropas sob seu comando: “Atirem, matem, recarreguem, atirem!”. Fala como um atirador. Acertas vários alvos. Balas perdidas, faz vítimas a torto e a direito. Seus apoiadores urram de satisfação se atinge um “malfeitor”, apesar dos vários corpos de inocentes jogados lado a lado.

Prometeu equipar com poderosas armas de fogo os combatentes de crianças de 8 anos de idade com fuzis nas mãos. “Nossas” crianças contra as “deles”. Nada de criar uma sociedade igualitária pela educação de qualidade, estimular a inclusão de brasileiros ao mercado de trabalho, diminuir a desigualdade. Não. Vamos matar todos que estão do “outro lado”. Talvez seja a guerra tão sonhada por generais ociosos que creem na revolução pela violência – equalizar pela eliminação, o diferente.

É homofóbico, saúda a família tradicional e o casamento entre heterossexuais como instituição – já fez isso três vezes. Nada contra. Parece gostar de mulher, mas não da mulher – misógino. Racista, avalia pessoas por arroba. Disse ter Deus no coração e professa o ódio como base de atuação. Ódio que atingirá a todos que não seguirem a cartilha do “marchar, continência, obediência cega, botas limpas, visual limpo e insuspeito”. Nada de educação sexual para as novas gerações de crianças que, com cinco anos de idade, já “aprendem” a fazer sexo em vídeos explícitos em seus celulares, no recesso de seus lares.

A sociedade brasileira, depois de anos de desenganos, está doente. Quer um remédio amargo, “nova” fórmula, mas tão antiga quanto a história da humanidade. O século passado passou, contudo, corre nas veias de velhos preconceituosos e jovens que desejam uma velha ordem, com cara de novidade. Os criminosos de dentro e fora do governo estão exultantes com a possibilidade de que tudo piore. Quem não sabe o que já aconteceu neste País, quer apostar no quanto pior, melhor. Ver o circo pegar fogo é o desejo de todo palhaço assassino.

Em outubro, Marielle poderá ser executada novamente, em público, à luz do dia, em uma emboscada que está sendo armada por todos nós, brasileiros. A mulher que representa as minorias (em direitos atendidos), será fuzilada mais uma vez. Eu, que não professo posicionamentos da esquerda partidária, reverencio a história dessa mulher. Sua memória de luta será aviltada, de novo. Nessa oportunidade, os autores do crime estarão armados de títulos de eleitor.

Participam do BEDA: ClaudiaFernandaHanna LunnaMari

Balada

Globinho
Face luminosa da lua…

Filas se formam para adentrar à bolha. Desejosos por perderem os sentidos, embalados por batidas em RPMs cada vez mais acelerados, seres vivos entregam seus corpos às frequências-repetitivas-circulares. Em meio às ondas sonoras, luzes psico-estroboscópicas não permitem que se formem pensamentos, apenas reações. Conduzidos por substâncias lícitas e ilícitas, civilizados repetem antigos rituais coletivos tribais-gentis.

Mantras eletrônicos-aliciantes se sucedem em cascatas no salão de cima a baixo, lado-a-lado, para-dentro-para-fora, em frenesi que transcende o indivíduo e assume proporção de tsunami mental. Por instantes, pode-se sentir reverberar a presença do amor químico, entre suores e salivas. O mundo vibra como substância etérea. Visita à face oculta da lua.

Tudo é espontâneo, permitido, nada é sem sentido. Entregar-se a si e a outra pessoa é satisfatório, natural. Sexo sem penetração. DJ é Deus, reverenciado como tal, a ser contemplado com chupadas das meninas e meninos mais entregues, enquanto outras línguas pronunciam cânticos-grunhidos-gemidos ritmados em resposta à condução do maestro do som oscilante.

Depois de horas, exangues, fruídos personagens retiram-se do ambiente onde oraram enlevados pelas seitas pagãs-dionisíacas do movimento, em estertores de membros e cabeças. Voltam à vida comum, social-insaciável em consumação de pensamentos encadeados-ordenados em números e proporções, regras e utilidade civil… até que chegue o próximo sábado.