Sessenta E Três

Antes de mais nada, devo ressaltar que recebi autorização para divulgar a imagem acima. Estou da maneira que gostaria de ficar a maior parte do tempo. Quando me coloco (des)vestido dessa forma, volto a ser o mesmo garoto que passava os dias despojado de coberturas que denunciam um sujeito que obedece às leis invisíveis porém poderosas de como devemos estar trajados. É claro que não passa de uma ilusão. Uma mentira que sei que é mentira e não fere a ninguém.

O pior é quando as pessoas não apenas sabem que a mentira é óbvia, mas para alcançarem o que querem, as aceita ou transforma essa mentira em algo possível e, portanto, ainda que improvável, a usa para justificar os seus atos. Coletivamente, isso pode gerar situações em que a Democracia, para dar um exemplo, pode ser estiolada feito carne charque. Uma frase popular resume esse recurso: “me engana, que eu gosto!” — algo que quem se apaixona também entende.

O que me leva a uma constatação deste tempo que me exaspera. Por dois motivos: porque sou pai de mulheres e porque pertenço ao gênero que está matando as mulheres, por serem mulheres. Não são poucas as vezes (tantas quantas ocorre um feminicídio ou tentativa de…) me sinto despedaçado. Sempre em nome do amor e, nesse caso, de um amor mortal. O que é uma contradição em si. O amor deve ser direcionado à construção da leveza, do bem querer. Ainda que a quem ame, deseje partilhar a vida com outra pessoa, Se ama, a deixe livre…

O Patriarcado — o sistema sob o qual a Sociedade brasileira desenvolveu fez tanto mal ao homem quanto faz mal à mulher, pelas mãos daqueles que se acham superiores apenas porque carregam um pedaço de carne entre as pernas. E que por ele as fêmeas da espécie devem ter respeito como se fosse uma fonte natural de potência. Sujeitos que se consideram fortes, mas não aguentam nem fisicamente, nem psicologicamente, o peso da desigualdade que sofrem as mulheres.

Outro estigma sob o qual vivemos é o do péssimo legado que a Escravidão deixou para todos nós como cidadãos de um país que até hoje vive a desigualdade racial de tal maneira que se torna premente que as políticas de reparação sejam implementadas. Caso contrário, nunca curaremos as várias chagas que nos levam a uma situação quase irresolúvel. Acho estranho quando dizem que não há guerra no Brasil. O número de mortos nos conflitos por armas de fogo, armas brancas, acidentes automobilísticos é tão grande quanto das guerras civis pelo mundo ou guerras por território como no Oriente Médio ou Europa (sabe aquele lugar que se julga desenvolvido?)

Acho que esperavam (quem suportou ler até aqui) que eu fosse falar sobre festa e felicidade por chegar até este quadrante. Estou ficando velho, sem dúvida, mas não sou daqueles que dizem “no meu tempo”, como se fosse um tempo marcado no passado. O meu tempo é AGORA e, portanto, não posso deixar de me posicionar como estou fazendo. Agradeço a atenção para quem chegou até esta última linha. Acho que é permitido para quem é do grupo dos 60+.

Sobre Pragas*

“Eu sei que tem muita gente gostaria de um Corona Vírus para apimentar a nossa vida de perigo. Não precisamos. Vivemos em um País com péssimo Saneamento Básico, causador de doenças endêmicas; crescimento de mortes por Dengue e Chikungunya; a volta da Paralisia Infantil, Sarampo e da Tuberculose, por falta de vacinação, resultado de pura ignorância estimulada pelas Redes Sociais – assim como “adquirimos” este desgoverno –, que cogita diminuir a assistência aos doentes de AIDS, que resultaria no aumento de casos de doenças oportunistas, principalmente daquelas que se aproveitam de pessoas que não se previnem ou estão desassistidas por políticas públicas de saúde deficientes.

O portador de AIDS normalmente se cuida, toma precauções e se medica convenientemente, segundo mostra estudos recentes. O comportamento de risco geralmente se dá por parte daquele que se considera eleito pelos deuses, geralmente “homens” socialmente aceitos como acima de qualquer suspeita – os piores – que transmitem a doença às esposas, alheias a vida dupla de seus companheiros. Para piorar, a base de tudo – a Educação – que desenvolve cidadãos mais conscientes e aparelhados de conhecimento para sanear a Sociedade de lixo mental e desinformação, está sendo alvo de um processo silencioso e paulatino de desmonte. O desinvestimento nessa área se inicia desde a infância, com a retirada de verbas para creches.

Como estudante de História, parece que estou a ver acontecer no cotidiano uma representação de fatos antigos, de séculos passados, que julgava ultrapassados para este novo milênio. O que surge como exercício de distopia – uma das matérias preferidas de escritores – está sendo reeditado como obra de péssimo autor. Já estou a prever a procissão de hordas de convictos caminharem, por ordem superior, até a beira da Terra Plana para saltarem…”.

Este texto de 2020, em plena Pandemia de Covid-19, tentava identificar as circunstâncias que envolviam aquele moimento histórico. A nação, então, estava sendo capitaneada pelo Ignominioso Miliciano que ao final do seu (Des)Governo conspirou francamente para continuar no poder através de um Golpe de Estado. Após a sua saída, ainda tentou um último movimento com a invasão e depredação dos edifícios na Praça dos Três PoderesCongresso Nacional, Palácio da Justiça e Palácio do Planalto.

Passado o tempo, o surgimento da figura política do Ignominioso Miliciano deu ensejo para que outras personagens assomassem do submundo utilizando o caldo da subcultura reacionária que permanece por baixo da pele do brasileiro médio, criado num mundo de desigualdade como projeto político idealizado como natural. Nossa tradição escravista repercute sub-repticiamente nas mentes de todos nós e faz com que aventureiros com estratégias advindas de suas práticas em redes sociais as empregue como se discursassem para um público ávido para ser enganado, feito aquela namorada que sabe que o sujeito está mentindo, mas se entrega porque ele sabe mentir muito bem.

Mulher De Malandro

Vivemos uma época em que homens e mulheres não sabem onde colocar o desejo. Por mais que tenham se estruturado em torno de um arcabouço em que busquem responder de forma diferente à superestrutura patriarcal, escorregam em demandas internas que os movem em direção à irresponsabilidade comportamental em Sociedade. Não importa o nível social, o econômico (apesar das duas coisas se imiscuírem), o intelectual ou da capacidade de uma pessoa ser solidária ao outro em condição de fragilidade — o que poderíamos chamar de moral. Eu poderia também chamá-lo de solidário ou empático — compaixão.

Há muitas outras maneiras de acondicionarmos as características de alguém especificamente. Em uma figura pública — artista, política, esportista ou qualquer proeminência — jogamos sobre ela predicados que consideramos ideais. Quando esta entidade comete algum erro ou vai em sentido contrário ao que acreditamos, trai a confiança que desenvolvemos sobre o ser humano… por ser humano demais. Seres errantes sobre a Terra, somos seres que erram.

A notícia de que um homem eminente se deixou levar (até prova em contrário) por seus impulsos primitivos, jogando por terra uma construção idealizada sobre a sua personalidade — homem preto, professor acadêmico de carreira fora do País, defensor dos direitos dos despossuídos, pensador estudado, que chegou à alta administração do País — como se fosse a definição completa do sucesso de alguém que se colocou acima das expectativas de sua raça e/ou nacionalidade. Correndo o risco de referendar o uso de frases antigas que reafirmam preconceitos arraigados advindos do útero brasileiro — o Escravismo.

Nunca deixamos de vivenciar, mesmo depois da suposta abolição da escravidão, a estrutura escravista como modelo básico do desenvolvimento da sociedade brasileira. Passa pelo Patriarcado como alicerce, a condução de nossos caminhos pessoais em todos os níveis — psicológicos, principalmente — não deixando de penetrar no arcabouço mental de quaisquer homens (e muitas mulheres), de todas as raças. Ainda que se eduque bastante, que busque fugir dos paradigmas impostos pelos preconceitos, poderão vir a sucumbir a desejos mais rasos, mesmo que tente reprimi-los de todas as maneiras.

Ou pode surgir outra explicação. O sujeito nunca deixou de ser uma pessoa que deu vazão aos seus impulsos e tudo o que fez foi construir em torno de si uma superestrutura que o colocasse à vontade para exercer o seu poder de abusador. A favorável visão externa o colocaria à salvo de tal maneira que a forma como envolve as suas vítimas a fazem duvidar de que estivessem sendo abusadas: “ele sempre muito gentil com todos, não creio que tenha cometido essas faltas”. Aqui, está o escritor a se colocar de acordo com o conhecimento que tem da alma humana como matéria de criação.

Numa conversa com as minhas filhas, defensoras das minorias e de causas sociais, elas objetaram a minha opinião sobre um vídeo em que garotos pretos referendam posicionamentos de um ativista branco de extrema-direita. No cerne de suas posições, umas das mais caras passavam pelo racismo e pela misoginia. O que faz com que aqueles rapazes defendam essas pautas? Coloquei que, para mim, era o fato de se considerarem pertencentes ao gênero masculino, antes de se considerarem pretos. Essa condição talvez seja tão forte que obliteram o viés preconceituoso ao tipo de ideologia exposta. Sorridentes, quase ouço de fundo a fala dos subjugados pedindo benção ao “Sinhozinho”.

Outra consequência do efeito que o caso de abuso causou a mim foi de eu começar a vigiar a minha própria atuação como homem, pai, amigo, esposo. De que maneira eu poderia estar agindo que pudesse estar sendo interpretado como avanço indevido ou não autorizado ou até uma agressão? Eu gosto de mulher, para além da ordem sexual, eu a admiro como o gênero superior na relação da espécie. Dessa maneira, tenho que deixar claro que as minhas condutas devam carregar demonstrações desse respeito.

No trabalho, um jovem rapaz que cuidava do telão de led para a projeção do evento estava tendo dificuldades com o aparelho transmissor. Até que conseguiu arrumá-lo. Perguntei se era algum cabo defeituoso, ao que ele respondeu: “Não, gosta de apanhar, que nem mulher de malandro”. Quase que imediatamente, perguntei por que ele achava que mulher de malandro gosta de apanhar. Ele não soube responder. Obviamente, ele ouviu essa expressão (que já repetira várias vezes na mesma idade dele) do pai e/ou amigos, colegas de trabalho ou escola.

Eu contra-argumentei que sendo mulher de malandro, a mulher saberia que se revoltasse, vivendo numa estrutura fragilizada, poderia até ser morta, como aliás tem acontecido em todos os níveis econômico-sociais quando a mulher tenta obter a sua independência. O Patriarcado faz tanto mal à mulher (que é vitimada por ser mulher), quanto ao homem. Vítima e algoz, filhos, amigos e parentes sofrem com a violência no lar, no trabalho, na rua. Começa pela palavra, pode terminar no punhal ou na arma de fogo. No mínimo, pode matar biografias até então ilibadas…

BEDA / Fernanda Young*

Em 2019* escrevi: “Precisamos sempre confirmar a beleza, mesmo que haja momentos que não a toquemos. Como o crepúsculo de hoje, após dias nublados, ainda que nos faça lembrar que nosso país esteja a arder em chamas. Para Fernanda Young.”

Parece que após os eventos inaugurados um ano antes, em que por uma série sortilégios e atividades subterrâneas ligadas às instituições comandadas por asseclas, ascendeu um movimento que jazia no esgoto da Sociedade brasileira e que eclodiu feito vulcão de dejetos ideológicos, vindos diretamente de nossa tradição de País a ser o último a declarar o fim da Escravidão, oficialmente.

Formas de aprisionar parte da população continuam em atividade e quaisquer iniciativas que visam desmontar o sistema escravista — agora mantido através de baixos salários — são atacados por todos os lados, incluindo setores supostamente independentes, em tese, como a imprensa “oficial”. Para os que escapam do que seja correto, restaria a prisão, mas ela é utilizada para encarcerar a população mais diretamente afetada pelo Sistema.

Na época do enunciado acima, a notícia do passamento de Fernanda Young me deixou um tanto abalado, aliado ao fato de estar cada vez mais surpreso ao perceber o quanto boa parte de nossa população tinha abraçado ideias tão antiquadas que deixariam George Orwell estupefato por ver as suas previsões serem demonstradas, ao estilo de 1984, de forma tão canhestra. Pessoas como Young, sensíveis, inteligentes, antenadas, sofreram muito durante o tempo que o Ignominioso Miliciano percorreu a vida brasileira com as suas ações de cunho fascista.

Mas a sua presença em liberdade continuou a estimular a propagação da ignorância como algo a ser elevada à condição de predicado a ser comemorado. E então, seguidores dessa tática de desmonte da sanidade como linguagem atraente para tantos, com a mentira como mantra comandante das estratégias de suporte, mais novos e preparados para atender às expectativas daqueles que preferem “tiro, porrada e bomba” em vez de argumentos cabíveis para a intermediação de conflitos, se sobressaem. Temos percebido esse fenômeno acontecer ao observar os novos candidatos às próximas eleições municipais de 2024.

Fernanda Young não merecia ver o que aconteceu após o dia 25 de Agosto de 2019, dia de sua partida. Talvez tenha sido o único benefício de vermos uma das vozes mais incisivas da nossa geração nos deixar órfãos de seu talento.

Comboio

C

carreadouro passeio de formiga rua de cafezal
corro por entre alamedas virgens de passos meus
violentadas pela indiferença com a qual inauguro mais uma visita
que terá de diferente nessas casas geminadas de famílias iguais?
o céu divisado por um olhar enviesado de sol inclemente
que invade janelas descortinadas e lambe portas fechadas
convidando ao não e ao talvez quem sabe haja
um mar particular quartos e histórias de dilúvios e aluviões
de minas auríferas platinas ou cristais
ou lama açude seco areia movediça pasto duro
salas de piso de antigos tacos que soltam e revelam relevos incongruentes
onde um dia crianças brincaram
indelicada a vida tripudia em vez de grandes planos urde mínimas ilusões
carrega no quengo concomitâncias com o sofrimento dos escravizados
o que era imposto antes agora não apenas é aceito
assim como é desejado – quero que me comprem – me consumam
um motivo para viver para beber para comer para querer para dever
porque eu não me basto como fogo me alastro e destruo o que vem
pelo caminho pelo desvio pelo sentido direção e chegada sem fim
permissão para fenecer expirar todo o ar dos pulmões enxarcados de vazios
desencarno os pés nas pedras hirsutas e candentes de sons inaudíveis
como vozes surdas e suspiros partidos intuo que perguntem
que será que sou
quem estou?

O

onde está que não responde?
dedicação de dez anos me usou fui útil agora passei
página virada curva fechada some no horizonte
o barulho das ondas na arrebentação parece se apequenar
em minha memória de sóis poentes e brisas mornas
areia macia pés de bailarina arcos impossíveis
manobras abissais nesses momentos dançávamos as mesmas notas
o último encontro únicos membros tantos quartos desocupados
eu dormia no catre ao som das trombetas de jéricó
d. pedro que levantava a espada e penetrava no âmago da liberdade
prazer que gemidos confirmavam eu ao telefone
enquanto me engolia edição de fotos que esbravejava
o golfinho como testemunha
mergulho abaixo às aguas transparentes da tarde que morria noite
a lua enluarava como se predissesse que não seria apenas o fim do mundo
mas também dos sonhos de eternidade amor em terna idade
houve momento em que pensou que iria morrer
a imensidão a cercando pouco a pouco como se o céu caísse em si
enquanto os seus olhos esverdeados se agigantavam
rompendo nuvens fendendo camadas alcançando
a derradeira circunferência de onde não mais voltaria
pedi para que lhe visse passar ao menos
tripudia de minha distância enquanto aumenta a dissensão
se transfere para outra dimensão e fico aqui
neste ponto em reticências…

M

mulher que bebeu de minhas melhores emoções refestelou-se
fui intenso fui imenso diante de seu corpo nu mais crescia
mais me apetecia jogar-me do alto do abismo
estive apaixonado uma vitória sobre minhas defesas ao chão
prendeu-me seu sorriso desbocado sem dentes naturais
feito prótese que o tempo tratou de compor mas amava
porque estava você a me beijar debruçada entre as minhas pernas
provando-me entre soluços de choro sentido estávamos finando
em cada tempo que imaginávamos recomeçar
foi como uma descida de um avião sem asas partidas em pleno voo
em dor espiral expirávamos em fogo e riso da lembrança do fauno
com os cascos sobre o balcão que disse: “ele está lá encima”
enquanto a banda marcial executava hinos pátrios
foi assim que adentrou ao átrio
com saltos altos que ouvia desde o corredor
eu a recebi à base de beijos línguas serpenteando seu hálito de cerveja
para tomar coragem de invadir a minha vida de vez
na segunda incursão do dia revelou o presente do primeiro encontro:
“eu amo você!” enquanto pensei ela não precisa de mim para chegar ao ápice
queria estar ali mesmo que somente como expectador
da performance da artista dedicada ao monólogo
o meu corpo como seu palco de atuação teatro moderno a plateia
como coator quase sempre contracenava sendo os outros que de mim saltavam
pelos poros em desespero de expressão como a gritarem – nós existimos!
comecei a sentir o poder do demiurgo
a corromper as minhas ações queria comer todo mundo
mas recuei me assustei como pode um ser empoderar tanto o outro assim?

B

benditos os que amam amar é radicalismo posto em prática
caminho sem volta quem amou um dia amará
para o todo o sempre congelado no tempo será a sua história
tão preciosa quanto dolorosa tão aguda quanto plana
tão simples quanto confusa tão extrema quanto definitiva
feito o ponto final posto na última palavra da última página
de um livro incompreensível que o cupim comeu
feito james joyce caminhando no chão forrado de carvão incandescente
como prova de humildade intelectual
apenas que não ocorre intervenção da mente na paixão é doença cerebral
obliteração dos sentidos os sentimentos invadindo as texturas
e fibras orgânicas as transformando em vetores sinergéticos
para entregar à oblação oferta em sacrifício no altar do gozo
tão fátuo quanto viciante desejo de voltar a ter
a mesma sensação da primeira vez viagem sem volta
mas talvez o esquecimento intervenha e venhamos a percebê-la
como cicatriz que coça de vez em quando mais ou menos
de tempos em tempos feito o sangue que passa pelo coração
percorre o corpo todo atinge o cérebro e repercute em algum ponto
da pele dedos cotovelos peito costas barriga coxas e entre as coxas
nada que uma das mãos não resolva…

O

ondas do mar invadem o meu peito atravessando as vértebras
e banham o meu coração de saudade ainda que não acredite nela
como algo que denota falta mas é presença na ausência
quando os meus pés ultrapassam as linhas aquosas fronteiras
entre as matérias me integro me entrego me torno água
perfuro fluo seguro o ar fecho os olhos as três dimensões se dissolvem
me santifico batizado pelo sal renovado as avarias lavadas retificadas
as pancadas silentes dormentes silenciosamente se curam
abençoadas pelo sol clemente beijando a minha tez indígena embranquecida
eu sou transfigurado pelo elementos desde a areia para a areia
não persigo mais a redenção pessoal sou redimido pela falta pelo vazio criativo
prestes a ser preenchido de nadinhas maiores e menores incisivas perfurantes
duras feito diamantes ainda a serem lapidados tudo me interessa
ninguém me acolhe me sinto só com o tudo a me costurar o mundo nas costas
carrego feito sísifo de quinta categoria o peso que rola a montanha abaixo
me cristianizo ofereço a outra face para que o sistema me esbofeteie
organizo a minha dor uma de cada vez em uma fila da qual não vejo o fim
porque redivivas sorriem como bebês satisfeitos após a mamada
espero que adormeçam para que continue a subir o morro
e morrerei curioso para encontrar a substância ou a escuridão abstrativa
isso é encontrar ou se desencontrar?
sei que irei para alguma cadeia molecular de carbono
ou que talvez integre átomos que se perfaça em flor
definitivamente serei deus…

I

independência não existe fome sim dependemos de nos alimentarmos
para sobrevivência isso nos torna fracos se dispersos egoístas
unidos podemos fazer tudo como destruir o mundo que nos nutri
mas criamos estratégias de dependência dos mais fracos a um sistema
abjetamente os despossuídos se integram ao paraíso como serviçais
tocam mas não podem possuir
cheiram mas não podem comer
veem mas não podem desfrutar
alcançam de forma indireta a fruição da possibilidade
isca lançada servem aos senhores dos meios e dos fins
a terra inteira destruída em nome do poder de alguns
até esses dependem de que a ilusão perdure para que continuem
a serem mandatários no entanto se todos tivessem os mesmos recursos
o planeta não suportaria tamanha pressão sete gaias não aguentaria
a demanda da podre riqueza feita de guerras messiânicas
acionadas de forma mecânica
para o aumento do fluxo sanguíneo que alimenta a sociedade organizada…

O

ocasional o meu futuro o meu presente é solidificado
sou o que sou ainda que não me conheça por inteiro
estou em construção e desmantelamento
agrupamento e dispersão
desencaminhado e perseguido por minhas dúvidas e questionamentos
continuo em contínua inconstância traço de causa consequência coerência
cansado de não perseverar não vejo saída a não ser prosseguir a ser
observador da vida que passa passo junto perpasso par e passo
sonhando ser pássaro em revoada mas fazendo parte de um comboio
acorrentado a vagos vagões viajando em trilhos sem rumo aparente
sabedor de minha nossa exiguidade não me sinto perdido
a não ser em mim sem sins jardins jasmins e festins
não sou enganado porque não estipulo cláusula pétrea para nada y nadie
mas carrego um traço de inocência que me deixa surpreso com muita coisa
coisa é algo incomensurável indizível coisada se acredito
acredito que a vida é um milagre seja sob que forma for
sem aforismos ou regras apenas fruição
se oro é para o deus mudança transformação transmutação
locomovido em locomotiva desgovernada maquinista despersonificado
me sinto como se fosse uma novidade no universo sem encarnações anteriores
mas com um fim consciente num tempo indeterminado pelo destino
se pudesse nomeá-lo que nome daria:
sorte de principiante?

Foto por Jalitha Hewage em Pexels.com