Uma Só Asa*

Eu, até os meus quatorze ou quinze anos, escutava muito mais músicas brasileiras do que estrangeiras. Corria o início dos anos 70. Era bastante fascinado pelas letras, que em conjunto com as belas melodias, compunham o meu acervo poético, para quem não tinha tanto acesso à literatura em versos para além dos livros didáticos do ginásio.

Entre os compositores que apreciava, Chico Buarque era um dos meus favoritos. As suas composições, falando das mulheres como se fora uma mulher, me influenciou grandemente. Eu, que apenas queria entender aquele ser que se expressa fortemente através de uma parte do corpo que os homens nem sequer imaginam o poder — o útero — o usei como referência em muitos aspectos. Quando ouvia “Com Açúcar, Com Afeto”, “Cotidiano” e “Sem Açúcar”, por exemplo, sabia que era apenas um contraponto, já que a minha mãe, minha referência imediata, não se parecia com aquelas mulheres aparentemente submissas. Mais recentemente, ao pesquisar “Mulheres De Atenas”, soube se tratar de uma passagem da peça teatral de Augusto Boal, de 1976, versando sobre uma mulher libertária — Lisa, Mulher Libertadora — que critica a sociedade patriarcal, em pleno Regime Militar.

Nos versos a seguir, que fiz para um projeto musical apenas iniciado, mas nunca levado adiante, tento me colocar no lugar de uma mulher. Espero que as minhas amigas sintam pelo menos um pouco representadas por eles. Se não, perdoe a intromissão nesse universo que tento compreender até sempre!


Uma Só Asa

Quem quer um anjo em sua vida, quem quer um amor?
Que caia do céu, direto para você, um anjo transgressor?

Um anjo caiu em meu quintal e foi assim
Uma luz, um estrondo… e um rapaz se ergueu
Entre a garagem coberta e o canteiro do jardim
De seus ombros largos, apenas uma asa, a outra se perdeu…

Quem quer um anjo em sua vida, quem quer um amor?
Que caia do céu, direto para você, um anjo transgressor?

Vestia uma roupa muito branca, quase transparente
Deixava entrever as formas de um corpo esguio
Jeito de menino-homem, com a sua asa pendente
Caminhando decidido, veio direto para mim, bravio

Quem quer um anjo em sua vida, quem quer um amor?
Que caia do céu, direto para você, um anjo transgressor?

Não tive medo, não pensei neste tempo doentio
Parece até que o esperava, o buscava em meu sonho
Não aguardava que fosse um anjo vindo do vazio
Mas senti que ele seria aquele ser que chegara risonho…

Quem quer um anjo em sua vida, quem quer um amor?
Que caia do céu, direto para você, um anjo transgressor?

Ao se aproximar, pegou em minha mão, que tremia
Beijou a minha testa e baixou os lábios até a minha boca
Apenas entreabriu a sua e soprou que me queria
Que já há algum tempo me observava e que chegara a nossa época…

Quem quer um anjo em sua vida, quem quer um amor?
Que caia do céu, direto para você, um anjo transgressor?

Perguntei sobre a asa que não trazia, a que havia sumido
Respondeu que começou a pensar apenas em mim e que caíra em casa
Já amputado, porém feliz, pois fora atendido em seu pedido
E dessa maneira, ganhei o meu homem, um anjo de uma só asa…

Quem quer um anjo em sua vida, quem quer um amor?
Que caia do céu, direto para você, um anjo transgressor?”

Imagem: Foto por Francesco Ungaro em Pexels.com

*Texto de 2015

Longo Mal Súbito*

Genival Jesus Santos (Arquivo pessoal)

ronco de motores rodovia movimentada
motoqueiro fantasma sem capacete
deve ser parado pária da sociedade
calção chinelos camiseta pobre
desce do cavalo se posiciona com respeito
aqui é autoridade autoritarismo
práticas de tempos passados
por chefes no poder incensados
não reclama não fala se cala
continua sem voz além das muitas na sua cabeça
tomo remédio olha as cartelas
não queremos saber você é fora da lei
eu só quero respeito não cometi crime nenhum
está sem capacete nós estamos protegidos com os nossos
somos senhores da vida e da morte
você deve aprender e quem nos observa também
fica assolado no chão nossas botas na sua canga
vamos aplicar a nossa sentença
culpado por ser brasileiro
sem rumo
sem ganho
sem profissão
para ganhar o pão
um verme como tantos outros
porque essa tortura?
queria voltar para a casa
vai para a nossa casa ambulante
receberá a lição estamos em guerra
contra quem nos interpõe
representamos o topo do poder
nunca mais repetirá a ousadia de contestar
mataram mais de vinte no Rio
um a mais ou a menos
não sou bandido sou trabalhador
tenho família filhos pai mãe primos
todos tem
ratos que se multiplicam
olha a nossa viatura
a chamamos de carro de dedetização
eliminamos pragas as degustamos com pimenta
me tirem daqui
me desamarrem
abram a caçamba
não sou lixo sequer indigente
sou gente
ah! meus filhos mulher não estou aguentando
me perdoem
não consigo respirar
estou deixando a escuridão
vou para um lugar sem luz
e sem resposta
mesmo sendo de Santos Jesus
até quando?

Umbaúba, Sergipe, em 26 de Maio de 2022 – dois anos depois da morte George Floyd em outro Hemisfério e outro “não consigo respirar”…

*Poema produzido em 2022, sob os auspícios de tempos obscuros.

Nomes De Ruas

Era costume, em tempos idos, nomear ruas e logradouros utilizando referências baseadas em funções, topografias, acontecimentos, entre outras justificações – Curtume, Ladeira Porto Geral, Rio Tietê, Congonhas etc. Bem novo, eu me lembro de ler um poema de Mário de Andrade – que dá nome à Biblioteca Municipal de São Paulo, chamado de “A Serra Do Rola-Moça”, que dizia respeito a um acidente que vitimou uma jovem senhora.

“Ali, Fortuna inviolável!
O casco pisara em falso.
Dão noiva e cavalo um salto
Precipitados no abismo.
Nem o baque se escutou.
Faz um silêncio de morte,
Na altura tudo era paz …
Chicoteado o seu cavalo,
No vão do despenhadeiro
O noivo se despenhou.

E a Serra do Rola-Moça
Rola-Moça se chamou.”

Tudo era mais poético e vibrante. Com o desenvolvimento das cidades, a burocratização das relações, passou-se a usar nomes de personalidades políticas, artísticas, administrativas, históricas e outros. Com a construção de condomínios, para atrair compradores, em já vi um bairro inteiro surgir com o nome de Parque Higienópolis em plena Barra Funda.

No entanto, há circunstâncias que trabalham para criar nomes interessantes. Numa avenida perto de casa – Inajar de Souza, um jornalista – há um empreendimento que está sendo anunciado como Mundo Apto. Pronto! Viajei naquele nome. Um mundo apto a ter uma tendência, uma capacidade natural ou adquirida para realizar qualquer coisa. Obviamente que apto é uma abreviação de apartamento, mas se houve intenção do criador em revelar funções múltiplas com um nome incrível ou mesmo que não tenha sido intencional, o resultado foi inspirador.

A minha rua era numerada – 2 – já que o bairro se formou através de um loteamento de uma antiga fazenda. Depois, chamou-se Santa Bárbara, passou para Arara Azul (nome de pássaro, como outros da região) até assumir definitivamente um nome próprio, de um professor, pelo menos.

Em caminhadas para ir à academia, comecei a passar em frente de uma passagem curta e estreita que houveram por bem dar o nome de uma pessoa que tive que pesquisar para saber de quem se tratava. Manoel Lino de Aveiro Vasconcelos foi um comerciante da região da Vila Nova Cachoeirinha. Dono de uma padaria no bairro, Vasconcelos chegava em casa de carro, na rua Monte São Martinho (onde mora meu irmão), quando foi rendido por pelo menos quatro assaltantes. Os bandidos obrigaram o comerciante a entrar no imóvel. A vítima estava acompanhada da mulher e do filho. O padeiro levou um tiro no peito ao tentar defender a mulher de uma agressão durante o assalto. Ele não resistiu ao ferimento e morreu. Os criminosos fugiram, mas posteriormente foram identificados e presos. 

Este texto deveria parecer mais leve, mas grandes nomes de instituições, praças, avenidas, ruas e outros logradouros sofreram violências e foram para as páginas da História justamente por isso, como Tiradentes, enforcado e esquartejado, pela Inconfidência Mineira e o mártir Frei Caneca, fuzilado por ser líder da Confederação do Equador, por exemplo. Ser executado por tiros deveria ser uma situação anômala, principalmente fora de uma guerra. Porém, tem se tornado cada vez mais prosaica na guerra invisível que é viver sob um Sistema que tem os bens materiais como égide de satisfação e signo de sucesso, em que grande parte da população viva em estado de precariedade e desequilíbrio social, ideal… para gerar conflitos na Sociedade.

O Senhor Vasconcelos ter vindo a nomear uma travessa pela qual pouca gente sequer preste atenção no nome tem a ver com o prestígio local que angariou como comerciante conhecido. Seus usuários são pedestres que se encaminham ao terminal de ônibus, ao centro comercial ou quando voltam para a casa. Estão pensando em tanta coisa que talvez nem percebam que estejam pisando no chão. Não fosse eu um arqueólogo das pequenas coisas, jamais saberia que aquele foi um homem com o qual já havia cruzado umas três vezes ou que já vira sair de casa, uma vez. A travessa, se tanto, a atravessei apenas em uma ocasião.

BEDA / Dia Do Amor

Eu nunca cri no Amor. Ou melhor dizendo, nunca cri no Amor romântico. Sem sair do lugar comum, um exemplo da força do Amor senti vibrar em minhas fibras através da Dona Madalena, minha mãe. Ela foi importante para entender que havia essa energia que impulsiona as rodas da História. Mas não, não sou daqueles que acreditam que “Amor, só o de mãe”*. Duas ou mais pessoas podem desenvolvê-lo de forma salutar, sem o envolvimento de sentimentos negativos que surgem no rescaldo do incêndio que podem provocar se não forem conscientes. Ainda que a “consciência” total do que sentimos tenha significados múltiplos que desconhecemos conscientemente.

Ouço o meu Grilo Falante quase urrar de tanto rir, mas SEI que sem o Amor sequer existiria seres humanos caminhando pela face da Terra. O poder do Amor é tão grande que tanto Ódio espalhado não prevalece e cause a extinção da espécie humana. Tenho por mim que grãozinhos dessa energia tem impedido que montanhas de maus sentimentos produzidos a esmo progridam em proporção geométrica e destruam continentes inteiros num átimo.

Porém, a contradição maior reside justamente na instituição o Dia do Amor. Contido nas 24 horas do dia 14 de fevereiro – Dia de São Valentim – quando se comemora o Dia dos Namorados na Europa e Estados Unidos. São Valentim originalmente foi um Bispo da Igreja Católica que celebrava casamentos clandestinos. Viveu no Século III, marcado por seguidas guerras. O Imperador Cláudio II proibiu o casamento de soldados, supondo que sem ter famílias para quais voltarem, tornavam-se melhores combatentes. Preso e condenado à morte, Valentim recebia cartas e flores de pessoas agradecidas por tê-las unidas com a benção divina. Acabou por se apaixonar pela filha cega de um carcereiro. Milagrosamente, a fez enxergar novamente. Em 269 D.C., a 14 de fevereiro foi executado, deixando uma carta para seu objeto de amor romântico se despedindo com a frase: “De seu Valentim”. Em 496, o Papa Gelásio o declarou Santo. A intenção era que seus feitos fossem recordados, incentivando a união de casais. Talvez, na tentativa de aumentar o rebanho de fiéis. Duvidam?

O interessante é que o Amor, em sua concepção mais profunda, nunca foi o principal motivo para a união dos casais no decorrer do desenvolvimento da Sociedade. Outros interesses entravam na conta de pessoas que buscavam a associação familiar. Talvez, nas classes econômicas menos abastadas o interesse romântico perdurasse sobre o material, mas certamente nas classes mais aquinhoadas e nos setores dirigentes, o Amor atrapalhava mais do que ajudava. Não era incomum que nessas esferas os acordos propusessem que relacionamentos independentes fossem aceitos para satisfazer ao sentimento de mútuo pertencimento por Amor. Alguns diriam que a Paixão, ingrediente que embaralha o entendimento das pessoas, estimula o aumento da frequência cardíaca e acelera a velocidade da corrente sanguínea – sintomas desequilibradores de ordem física – seja mais preponderante em detrimento da atração pela beleza espiritual da parceria.

Não tem como quantificar nas forças envolvidas num relacionamento, quais são mais ou menos relevantes. O que sei é que a mulher, parte “fraca” no elo engendrado no Patriarcado, encontrou maneiras de fazer prevalecer os seus desejos e preferências em vários níveis, incluindo o sexual. Não foi incomum (assim como não é) que filhos de vários homens fossem e sejam de outros progenitores fora da equação matrimonial tradicional, ou por lado, é um dado mais tradicional do que não.

Gerado no Pathos, a voragem do desejo, ao qual frequentemente chamam de Amor, torna tudo muito confuso. Tanto que as regras do relacionamento monogâmico obedecem a critérios que tentam preservar a estrutura da Sociedade intacta diante de algo que não obedece a regramentos. Quando a pele ou o olhar ou ambos interferem no arranjo “ideal”, os contratos ficam em perigo de serem cumpridos. Leis foram criadas para impedir que os seres humanos, animais sociais, saiam por aí se confraternizando uns com outros, de múltiplas etnias, de diferentes crenças, novos e velhos, gêneros e identidades diversas em profusão. Talvez, caso ocorresse essa supressão dos sentidos controlados com multas, prisões e, a depender da Cultura, até a morte, não chegaríamos até aqui… o que poderia até ser bom, diante do que temos hoje como constituição social.

*Eu era ainda bem jovem e, um dia, ao subir para o ônibus que me levaria para casa, encontrei um tipo muito mal-encarado sentado na última vaga livre que ficava em um banco duplo. Ele estava de cabeça baixa e eu não tive coragem de pedir licença para me sentar junto à janela. O que até hoje se mantém de forma indelével em minha mente é uma tatuagem disforme feita em seu braço, em tinta azul, o qual um coração perfurado por uma flecha, indicava uma frase logo abaixo: “Amor, só de mãe!”.

Imagem: Foto por Designecologist em Pexels.com

Participam: Danielle SV / Suzana Martins / Lucas Armelim / Mariana Gouveia / Roseli Peixoto / Lunna Guedes / Alê Helga / Dose de Poesia / Claudia Leonardi

BEDA / Acordado

2014

O registro fotográfico acima data de exatamente nove anos. Usuário compulsivo de cabelos compridos – por influência do Movimento Hippie, que nunca me deixou -, eu os usei mesmo depois que começaram a escassear pouco a pouco. O que me conferia um ar de poeta rebelde Beatnik, o que não deixou de ser semente do Flowear Power. Os beatniks, surgiram na esteira do final da Segunda Guerra Mundial. Os hippies enfrentavam os horrores da Guerra do Vietnã como podiam, com protestos, estilo de vida alternativo e cantando que a força da flor venceria o canhão.

Nascido no início dias Anos 60, fui arrebatado desde pequeno, ainda que não tivesse exata consciência do que queriam expressar, assimilei o visual de cabelos revoltos como bandeira de minha postura de um sujeito que se sentia inadequado para viver a sequência de eventos a qual a Sociedade chamava de Vida. Eu achava totalmente estranho que não houvesse alternativas à “aquilo”. O meu cabelo despenteado sempre foi símbolo, para mim, de minha inconformação e inconformidade.

Porém, houve um período em que desbastei os cabelos e comecei a parecer um sujeito normal. Por volta dos 17, encetei pelas filosofias orientais e percebi que a paz que procurava tinha que vir de dentro para fora. Estava decidido em caminhar pelas sendas do autoconhecimento e evitar interagir com os “seres humanos comuns”. Ali, eu percebi o claro sinal da vaidade a qual considero a minha ruína. É difícil escapar às conformações mentais de quem está encarnado. Lutava arduamente para que ela não se expressasse de maneira tão forte.

Exteriormente, aparentava a humildade de um monge, em roupas e postura. Não queria chamar a atenção de nenhuma maneira. Na escola, passei a sentar com a “turma do fundão”, o que chamou muito mais atenção para mim, já que a minha voz sequer era ouvida. Não deixou de haver identificação com os sujeitos que eram bem mais interessantes do que a falange estudiosa. Também já havia notado o quanto a escola, principalmente aquela dos Anos 70, tentava enquadrar todos na mesma forma, para torná-los bons e obedientes cidadãos pagadores de impostos. Apesar de ler muito, deixei de estudar com afinco a maioria das matérias. O que fez com fosse reprovado em Química duas vezes.

Dando um salto no tempo, já casado e com três filhas, voltei ao estilo mais solto, de quem não tinha nada a provar. Mesmo porque, a minha alma inquieta eu sei que continuará a me colocar à prova nas demandas que me mobilizam profundamente. E com a certeza que posso pagar para ver. Hoje, acordado, ao olhar pelo espelho o meu rosto marcado pelo tempo, pelos brancos a tomarem conta da paisagem, percebo que estou preparado para sofrer a decadência que se aproxima – consequência direta de estar vivo – benção que nos reserva o Tempo.

2023

Participam: Danielle SV / Suzana Martins / Lucas Armelim / Mariana Gouveia / Roseli Peixoto / Lunna Guedes / Alê Helga / Dose de Poesia / Claudia Leonardi