… há uma diferença. Mas nem tudo o que podemos fazer deve ser feito. Não faltam ocasiões nas quais nos arrependemos de realizar o realizável, mesmo que aparentemente inofensivo. Para mim, é fácil cometer poesia, já que eu vejo tudo como se a vida escondesse certa trama poética. Mas materializar essa poesia em palavras pode redundar apenas em poesia ruim.
Eu, quando criança, tinha sonhos com um tema recorrente – peixes. Sonhava tanto com peixes a nadar que pensei em construir um laguinho artificial assim que possível. Já antecipava o prazer que sentiria ao ver os peixes se movendo de um lado para o outro por entre pedras e limites… Esse “pormenor” já tornaria o meu sonho menor. Perguntei-me: por que tentar conter um sonho dentro de um laguinho? Por que os meus sonhos não poderiam circular por todos os mares?
Eu, no entanto, poderia objetar que no lagos, nos rios ou nos oceanos abertos, eles enfrentariam o perigo e a morte a cada palmo, enquanto estariam protegidos em meu cantinho sintético… Como sou um ser composto basicamente um tanto de “porém” e outro tanto de “talvez”, contraponho de mim para mim mesmo que os seres somente podem alcançar as suas plenas potencialidades estando livres para realizá-las, ainda que por breves momentos. E, a meu ver, esse instante máximo equivaleria a toda uma vida de platitude.
Outrossim, devemos tomar cuidado para que um sonho não seja derivado apenas de um desejo pueril, com consequências funestas, se concretizado. Com o tempo, mais experientes, talvez consigamos perceber quais os sonhos que devam ser colocados em prática e quais aqueles que se restrinjam permanecer exclusivamente no plano dos sonhos, portanto eternamente belos e perfeitos.
“Hoje faz cinco meses que meu ano terminou. Prevíamos o fim do mundo. Para alguns milhões, realmente a vida acabou” — escrevi em Agosto de 2020, exatamente há um ano. As minhas atividades profissionais cessaram totalmente e poucas coisas me davam alento naquele momento. Uma delas foi o de estar fazendo um curso com a Lunna Guedes — Narrativas Na Primeira Pessoa — que me ocupou a cabeça enquanto extraía da editora da Scenarium o que pudesse me oferecer de seu conhecimento sobre a escrita. O texto a seguir, de meados de *Junho de 2020, é o resultado de um exercício de Texto Narrativo Descritivo em que reproduzo um diálogo com a minha mentora.
Lunna, quando me perguntou, ontem: — Cadê o senhor? Fugiu? — apenas pude lhe falar que aconteceu algo inesperado. O meu dia foi mais nublado do que outros — estas horas sem fim, grudadas umas nas outras, em que os horários não se impõem como antes: manhã, tarde e noite.
— Meu caro, no meu caso, tenho conseguido me organizar. Tenho sido muito produtiva.
— Acho incrível quando diz que consegue a organizar a loucura. Eu, não. A novidade é que tenho sonhado muito. Dizem que sonhamos sempre. Mas, ultimamente, tenho me lembrado dos sonhos. Outro dia, sonhei que estava na Coréia do Sul, em viagem. Em outra ocasião, que eu era uma mulher e estava grávida. Muitas vezes, me apresento nu diante de muita gente vestida, mas a agir de maneira natural. Assim como todos não parecem se incomodar com minha nudez.
— Pelo áudio, percebi que não estava bem…
— Se posso ressaltar um efeito é que acordei sem me recordar do que sonhei. Acho que meus canais se fecharam. Ou minha memória obliterou os acontecimentos sonhados e a realidade se fez mais pesada do que costumeiramente.
— Porém, de modo geral, se sente melhor?
— Acho que sim. Ao contrário de outras manhãs, decidi ficar em silêncio. Realizei as tarefas caseiras mudo e surdo, sem falar com ninguém. Não ouvi noticioso por qualquer meio. Sequer quis ouvir música. Os únicos sons que alcancei foram os latidos das minhas companheiras peludas. De vez em quando, pediam carinho e eu soltava vocábulos e inflexões de nosso léxico particular. O que me deu alento foi a marcação da aula que teria com você, agora à noite, sabendo que seria a melhor coisa que me aconteceria no dia…
Vou à padaria — prosaicos pãezinhos recém-saídos do forno iniciariam o meu dia na casa vazia. Mesmo depois de acordar, visualizar-responder às mensagens, caminhar, só me é dada à luz dos olhos depois de um gole de café, com pão e manteiga — homenagem aos meus primeiros cinquenta anos de vida com mamãe. Seu rosto marcado e cabelos prateados ainda passeiam por trás das minhas retinas dez voltas em torno do sol depois de cumprir a nossa sina…
No retorno aos muros de meu recolhimento, um anónimo bêbado insone, àquela hora da manhã tropeça em si mesmo, lata de cerveja à mão, olha para todos os lados, como se esperasse alguém chegar, um abraço a lhe abraçar… Seria a esposa, um amigo, irmão, um filho, ninguém? Apenas o próximo fantasma a lhe assombrar? Um pai sem filhos? Um filho sem pai? Um dia dos pais sem paz, sem par, sem possibilidades-passos-pessoas a lhe aguardar?…
Eu me projeto em sua condição. Porém, só me embriago de sonhos. Acordado, carrego à mão o nada ser, o nada a acontecer, o nada gestar… A não ser versos sem rima, arrítmicos, textos-tropeços em palavras tísicas, quedas em si-abismo…
Mas sou pai… num país de filhos e pais mortos, sem cerimônias de adeus… Não consigo escapar ao presente e ébrio de insensatez, compadecido, lanço ao desconhecido: Bom dia, pai! Ele sorri desdentado e ainda que talvez tivéssemos a mesma idade, responde: Bom dia, filho!…
Saio à rua para buscar alimento no mercadinho próximo. Como o meu cérebro vive em constante tempestade temporal, viajo para muito antes e imagino a dificuldade que os primeiros homens enfrentavam para conseguirem se alimentar. O perigo à espreita do caçador que eventualmente fazia as vezes de caça. Em muitas situações, nada mudou depois de centenas de milhares de anos…. Viver era (é) conseguir fugir dos dentes da besta fera por trás de cada tronco de árvore da floresta ou nas esquinas das cidades.
Alheios a isso, os meninos da Periferia empinam pipas neste final de Julho. Logo mais, Agosto trará a volta às aulas. Eles desejam espremer até a última gota a vontade de alcançar a Lua no firmamento. Tentam dominar a mecânica do voo. Fazem rasantes, sobem velozmente, exercem o desejo permanente de voltarem à essência da qual somos feitos — sonhos.
Ao caminhar pela tarde-quase-noite, quando a luz ainda se espraia pelo céu e a Lua quarto-crescente surge plena de promessas, presencio outros meninos e uma menina, a melhor de todos, jogando na quadra esportiva. Vestem camisas de times de fora. O dito “País do Futebol” transformou-se um entreposto vendedor de mitos. Jogar pelo prazer do jogo não é suficiente.
A vontade de se tornar estrangeiro é o maior objetivo. A Pátria, apenas uma referência distante… Tão distante, que vestir um dia a camisa do País em que nasceu é apenas mais um troféu na carreira de quem nem se iniciou. Por causa de alguns ídolos, milhões vendem as suas almas de criança, enquanto a Lua participa como simples testemunha semicircular, a pairar solene e indiferente.
No dia seguinte, estou no Centrão, a andar por ruas em que hotéis baratos são usados por amantes refugiados e prostitutas usam como posto de trabalho. Observo um senhor que caminha com dificuldade, a apoiar os seus passos curtos com uma bengala. Através de uma alça pendurada no pescoço, carrega uma tela vazia recém-comprada, a fazer contrapeso. Especulo que seja pintor. Concebo que aquele plano vazio será transformado por seu talento em realidade sonhada e o identifico como um igual a mim…
Logo mais, me descolo por baixo da terra, serpente em meu ninho, e chego à Paulista. Através das torres de vidro, as luzes camuflam a presença da Lua. São reflexos enganadores do espírito empreendedor de seres humanos de todas as eras. Um dia, o ciclo se completará e salvaremos o planeta de nossa presença. Nossos companheiros animais, sobreviventes a nós, olharão para as sucessivas fases da Lua, sem especularem como é refletida aquela luz perene que um dia fez sonhar os outros bichos que os aprisionavam. A Lua será, tão somente, um corpo inominável…
Eu diferencio Nostalgia de Saudade. A primeira palavra designaria um sentimento vago e abrangente de lembrança, um tanto melancólica de uma determinada época ou circunstância. A segunda, para mim, significaria um sentimento mais específico quanto à pessoas ou lugares, normalmente inspiradora e alegre. Porém, saudade também é bastante utilizada para designar sentimentos amargurados de solidão quando ao objeto de afeição. Por isso mesmo, é comum que confundamos as definições, mesmo porque são sentimentos imbricados, ainda que Saudade seja um idiomatismo da língua portuguesa. Nesta postagem, posto momentos específicos que me trouxeram boas lembranças e, nesse caso, a nostalgia se apresenta contagiada pela saudade.
Imigrantes andinos (2017)
Das personagens que encontramos por aqui… Todos os povos têm chance de se expressar culturalmente em Sampa, onde encontramos pessoas de todas as origens, de todos os tipos, de todos os cantos do Brasil e do mundo. Quem disser que esta terra não acolhe e não congrega quem aqui chega, está mentindo e quer criar a ideia de um separatismo que só é professada por alguns, uma absoluta minoria. Afinal, quem, entre a maioria de nós que vivemos aqui, não descende de povos de outros lugares?
Dona Georgete (2018)
Dona Georgete, primeira da direita para a esquerda, que comemorava os seus 90 anos, sentou-se com suas amigas de frente para a pista e viu a juventude dançar… Não acho que fosse com inveja. Pela retrospectiva apresentada na festa, concluo que ela não tenha ficado devendo em nada quanto às possibilidades que a vida apresentou a ela e agora apenas aprecia com prazer o ciclo a se completar…
Escada inventada por Santos Dumont (2017)
Este modelo de escada foi inventado por Santos Dumont. Cada degrau cabe apenas um pé. Ela é propícia para passagens estreitas, além de muito interessante para supersticiosos. Em se colocando o primeiro degrau para o pé direito e o último para o pé esquerdo, sempre o pé direito será aquele que iniciará o passo, ao descer e subir. Ela está instalada num palco suspenso de um buffet, onde trabalhei bastante. Quanto a Santos Dumont, é mais conhecido como um dos primeiros a desenvolver um modelo de avião e foi o criador do relógio de pulso. O sujeito era um gênio!
Dulce & Chiquito na gaiola (2016)
Quem está solto? Quem está preso?…
As calopsitas (que já partiram) passeiam pela gaiola a se sentirem seguras, mesmo com a aproximação de supostas predadoras (uma delas também já partiu). As plantas do jardim estão cercadas para que elas não sejam prejudicadas por invasores. Na verdade, se tivermos a clarividência necessária, nós, os animais humanos, não estamos em situação muito diferente. Da mesma forma, nós nos imaginamos protegidos por grades nas janelas, portas e portões de ferro… O que diferencia uns prisioneiros de outros? O que é liberdade?… Desde quase sempre, somos seres presos a uma estrutura em que somos mercadores da vida e da morte. Porém, para além do jogo das aparências, alguns dizem que existe um mundo livre de todas as amarras e condicionamentos…
O estudante de Educação Física, no Clube Spéria (2010)
Iniciei em 2009, aos 47 anos, o curso de Educação Física, na UNIP. Formei-me Bacharel em 2013. Neste registro, faço uma das etapas da sequência pedagógica do salto à distância, neste caso, com o auxílio de plinto (plataforma de madeira), na aula de Atletismo do Profº. José Luis Fernandes, mestre do Ensino e da Vida.
O menino passarinho e seus companheiros de salto (2016)
Em 13 de Abril de 2016, esta turma que está comigo na foto, vivemos juntos a experiência de saltar a 12.000 pés. Eu, que costumo apreciar as nuvens e o céu com os pés bem fincados no chão, cheguei um pouquinho mais perto dos meus objetos de culto. Do alto, vi os veículos, as casas, os animais, estradas e rios diminuírem de tamanho, até voltarem a crescer. Foi a primeira vez que saltei, mas tudo pareceu estranhamente familiar, já que quando era garoto, a experiência de voar era constante, em sonhos…