02 / 04 / 2025 / BEDA / Serra Do Mar*

Fico sempre encantado quando subimos para o Planalto ou descemos para o Litoral, ao passarmos pela Serra do Mar, onde podemos encontrar ainda parte da Mata Atlântica preservada.

Ao mesmo tempo, resta sempre o assombro ao saber que, para alcançar o interior do País, Homens do passado venceram tremendos obstáculos em nome de viver uma vida nova…

Um caminho feito de sangue, suor e lágrimas, que o tempo escondeu sob o azul celeste do céu e sobre o verde da mata.

*Texto de 2016

BEDA / ACADEMIA

Os dois se conheceram na academia do bairro. Os olhares furtivos de ambos pelo “shape” que chamavam a atenção de todos pela proporcionalidade – nada de excessos, as linhas sinuosas e insinuantes nas medidas certas para pousar os olhares e serem admirados. Os detentores desses corpos exemplares foram chamados pelo diretor da academia, amigo dos dois, para ilustrarem um pôster de propaganda. Chamados para as fotos, obviamente se reconheceram, apesar de nunca terem trocado palavras. A ideia era que posassem fazendo as séries que os mantinham como ideal de forma física.

As fotos seriam produzidas após o fechamento da academia. Demorou por duas horas, mas a alegria genuína por estarem juntos no mesmo ambiente fez com que parecessem minutos. Risos brotavam de seus lábios como se fossem velhos conhecidos. Os olhos de ambos percorriam cada detalhe dos músculos construídos à base de muita dedicação, equilíbrio alimentar, força mental com um viés mistura de encantamento e desejo. O suor escorria fácil, porque não simulavam os exercícios, mas faziam a série completa. Era da natureza de suas rotinas.

Tudo aconteceu como se seguissem um roteiro previamente escrito. Ela pediria um transporte pelo aplicativo, mas ele se ofereceu para levá-la em casa. Quando chegaram em frente ao destino dela, ao se despedirem, os beijos nos rostos desviaram-se facilmente para as bocas. “Me leva para onde quiser…” – disse ela. Ele sorriu, lhe dando uma bitoca. “Vamos para a minha casa, tudo bem?”. Sorria de orelha a orelha, enquanto ela mandava mensagem para a mãe, dizendo que iria dormir na casa do namorado. Não esse, mas o outro que a sua mãe contava como seu futuro genro.

Mal invadiram a sala de estar de sua casa, ela o agarrou de uma maneira que ele sentiu a força física de sua companheira de paixões. Arrancaram as roupas, quase as rasgando, bocas a esquadrinharem cada parte dos seus corpos, sentindo as texturas, o sangue a preencher as veias expandidas, os membros ressaltados, as mãos poderosas a se segurarem mutualmente como os pesos que levantavam em séries seguidas. Fizeram todas as posições que moldaram os seus músculos de uma maneira que chegaram para além da “falha”. Mútuo prazer que os deslocaram para outra fase de desenvolvimento. Decidiram ali que ficariam juntos.

A mãe dela não gostou nada, nada, quando a sua filha anunciou que estava perdidamente apaixonada por um companheiro de academia. Disse que o admirava já há algum tempo e que tudo havia conspirado para que ficassem juntos. A mãe sabia que a sua filha era determinada, a ponto de ter superado com tenacidade o sobrepeso. Os 30Kg acima dos parâmetros ideais foram sendo retirados durante dois anos de uma rotina que foi muito penosa no início, mas que depois se tornou tão prazerosa que não precisava de incentivo, pois era como se vivesse para a atividade física resistida.

Ele era um homem sozinho. Ele foi deixado pela namorada que pretendia que fosse a sua futura esposa. Havia cinco anos. Seu único prazer era se desafiar na Academia a realizar proezas de força e resistência. Sua dedicação angariava simpatia por ser calado e sorridente. Resistia ao assédio de moças e moços sempre com uma palavra de ternura que o tornava mais atraente. Querido por todos, foi o administrador da academia, seu amigo, que desenvolveu a ideia do pôster, com segundas intenções. Várias vezes o aconselhou a abrir o coração para outra pessoa. Encontrou na figura da bela moça a chance de que isso acontecesse. Ficou feliz quando tudo se precipitou favoravelmente. O casal se tornou um chamariz incrível para a academia do bairro, a ponto de ele pensar em abrir outra unidade.

Passados dois meses, o pessoal começou a estranhar a ausência da companheira do casal às sessões de exercícios na academia, realizadas sempre na parte da manhã. Ao ser questionado, o moço disse que ela havia decidido ficar um tempo descansando, atarefada com as reformas da casa que começara há pouco. Três meses mais, as perguntas redobraram de frequência, principalmente pela falta de fotos na rede social, no que ela era bastante ativa.

O certo é que após o término da reforma, ela estava se sentindo bem em não se sentir pressionada em ir para a academia todos os dias, apesar do prazer. Havia engordado um pouco, mas seu companheiro disse que ela estava linda daquele jeito. O sexo continuava incrível, o trabalho em home-office não a obrigava a se arrumar, a não ser em reuniões em que precisava se maquiar e ajeitar o cabelo. Alguns repararam em seu rosto mais arredondado, perguntando se ela estava grávida, ao que respondia somente que estava feliz. Não saía mais tão frequentemente. O seu companheiro fazia o supermercado na volta do expediente. De vez em quando, saíam para a um rodízio de pizza ou de comida japonesa no “dia do lixo”.

Em seis meses readquiriu o tamanho de antes, mas o companheiro não parecia se importar. Talvez fosse o contrário. Ela se sentia a mulher mais amada do mundo. O seu carinho era desmedido e ela havia percebido que a sua dedicação anterior era motivada para atender ao estereótipo do “mercado”. Até que decidiu limpar uma cômoda antiga, que achou muito bonita, mas em mal estado. Ao limpá-la, esvaziou as gavetas e encontrou a foto de uma moça numa delas. Seria a antiga namorada dele, da qual tanto falou nas longas conversas que tiveram? Possivelmente…

Logo, percebeu que a aparência dela era bem similar à sua atualmente. Rosto arredondado, o mesmo tom de sua cor de pele, pernas grossas, quadril abaulado, peitos avantajados. Por sua mente começaram a passar tantas possíveis explicações, mas uma principiou a envenená-la: e se ele me incentivou sem perceber a me transformar em alguém que ele amava?”.

O seu comodismo se devia em boa parte à postura desprendida de seu amado. Ele repetia que não importava como estivesse a sua aparência, o importante era a energia que os envolvia. Acreditou nele, então e desde o início. Mas como conseguiria permanecer tranquila ao chegar do passado essa imagem materializada que a colocava como um simulacro da sua antiga namorada? Ao mesmo tempo, com ele, se sentia feliz e sem cobranças para que seguisse a atender um perfil que era obtido com sacrifícios que a depauperavam emocionalmente ainda que trouxesse certa satisfação.

Olhou mais vez a foto e a rasgou. Seria o suficiente?

Foto por Ivan Samkov em Pexels.com

Participação: Lunna Guedes Mariana Gouveia / Claudia Leonardi Roseli Pedroso / Bob F.

BEDA / Bárbara

Bárbara era Bárbara…
Já devia desconfiar que barbarizasse
a minha vida.
Eu, feito o Império Romano,
me supunha inexpugnável.
Mas bastou que os seus olhos
me invadissem o espírito,
para me desestruturar o corpo e a mente.
As minhas defesas desarranjadas
cederam aos seus incríveis movimentos
no palco de guerra.
Não esperava que passadas tão simples,
avanços coreografados quadro a quadro
fossem sinônimos de requintada arte
de vencer obstáculos construídos
com esmero durante uma existência inteira —
de forma morna, segura, seca, estéril…
Meus toscos soldados da moralidade
caíram feito moscas, um a um.
Subjugado, tanto quanto seduzido,
sabia que a minha dolorosa prisão
um dia acabaria com gosto de retorno
sempre possível-impossível ao cativeiro.
A guerra tem esses altos e baixos,
entradas e saídas…
derramamento de sangue, suor, lágrimas,
o suficiente para baixá-los
e observar por onde eu piso…
Se voltar a reerguer as minhas defesas,
já saberei que neste deserto,
quanto menor o invasor
mais hábil a sua ação…
Mas não há mais tempo, tempo meu…
Não amaldiçoo o momento
em que me rendi,
nem as batalhas que sentia perder
a cada vez que venci.
Nunca me senti tão vivo enquanto morria…

Poema participante de BEDA: Blog Every Day August

Denise Gals Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Lunna Guedes / Bob F / Suzana Martins Cláudia Leonardi

BEDA / Abertura

você diz que quer fazer a minha mente se perder
a cada palavra expressa do seu desejo
partes de mim respondem excitadas
atinge o meu peito que arfa em comoção
aguardada mas nunca esperada de tão rara
abre um sorriso na minha cara
e isso é mais do que sorte
gosto de beijar como pelas ondas a areia
e de ser beijado como pelo vento o mar
em fluxo e refluxo
de entrar e sair
de me deixar e me encontrar
seguir pela estrada aberta
até aquela praia deserta
onde nos deitaremos no arenoso manto
o sal a nos santificar
o sol a nos invadir em calor e luz
nós mesmos a nos devassarmos
a nos preenchermos
de silêncio ofegante
banhados de suor
e alegria por estarmos vivos
enfim serenos e plenos
em nome da paixão
do gozo
e do corpo santo
amém…

Foto por Asad Photo Maldives em Pexels.com

Participante do BEDA: Blog Every Day August

Denise Gals / Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Lunna Guedes / Bob F / Suzana Martins / Cláudia Leonardi

BEDA / Mulher De Parar O Trânsito*

Estávamos no carro… em mão contrária a ela — que parou, enxugou o suor da testa e olhou em nossa direção. Eu me senti diretamente atingido por seu olhar. De repente, me vi intimidado pela força da cena que presenciávamos. Atrás de si, se estendia uma fila imensa de automóveis, que esperavam que ela se movesse tão depressa quanto possível, dada a sua condição. A mulher talvez tivesse quarenta anos, mas as mechas de cabelos brancos e desgrenhados denunciavam mais. Era magra, devia pesar uns 55 quilos e carregava pelo menos 200 quilos de papel, papelão, lata e plástico… na imensa carroça que puxava. Na verdade, como vinha do acentuado declive da primeira parte da Gal. Penha Brasil, sua tarefa — até aquele momento, em que chegava à parte plana — tinha sido segurar o peso na descida.

O movimento de automóveis naquela hora da manhã desse sábado estava bem intenso, tanto para subir quanto para descer… mas, a lentidão na mão para baixo era provocada por ela. No entanto, não se ouvia qualquer buzina impaciente, nem sequer um semblante tenso nos motoristas que a seguiam. Ao contrário: os paulistanos daquele pedaço da Zona Norte pareciam estar totalmente solidários àquela cidadã, que carregava o seu sustento pelas ruas irregulares. Imaginei que não se sentissem tão diferentes dela, em suas jornadas pessoais para ganhar o pão com o suor do rosto. Quiçá, não se achassem tão corajosos para enfrentar uma tarefa tão dura…

*Texto constante de REALidade, livro de crônicas lançado pela Scenarium Livros Artesanais, participante de BEDA: Blog Every Day August

Denise Gals / Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Lunna Guedes / Bob F / Suzana Martins / Cláudia Leonardi