Em um relacionamento, o que devemos buscar no outro? O que nos falta ou o que nos acrescenta? Qual a base de avaliação que temos para dizer o que nos falta? Qual o parâmetro para dizermos que algo nos foi acrescido com aquela pessoa que queremos ao nosso lado? Desejamos a calma da estabilidade conformada ou a trepidação de uma convivência sempre em evolução para o desconhecido? Desejamos a paz dos mortos ou o calor da ebulição dos vivos? Devemos viver a dualidade do ser – prazer e dor – ou a unidade de Ser e nos perdermos no Todo, sem identidade?
Todas essas perguntas e muitas outras, eu me fazia quando garoto, principalmente quando eu comecei a crer, por volta dos dezesseis ou dezessete anos. Eu me tornei vegetariano, decidi ser celibatário e abdicar dos prazeres do mundo. Eu nunca havia experimentado o sexo e, para mim, parecia ser natural não experimentar. Cria que evitaria me envolver em uma espiral de problemas que todos viviam sem solução aparente.
Ter família, trabalhar para sustentá-la, abrir mão de projetos individuais para projetar-se no mundo em busca de sustento, parecia não ter sentido para mim. Eu havia me tornado um monge sem hábito. Experimentava reunir palavras de todos os tempos e lugares, personagens que procuraram a Luz, livros que ensinavam o Caminho, as várias faces do Saber dos Mestres – Cristo, Buda, Confúcio, Maomé, os filósofos de todas as tendências – e erigia uma crença individual baseada na intuição pessoal, que me eram confirmadas principalmente nos momentos de solidão. Ficar sempre sozinho, fechado em meu quarto, apavorava a minha mãe. No entanto, também gostava de jogar futebol, ir ao cinema, assistir programas de televisão, ouvir música, escrever, desenhar e ler tudo o que caia em minhas mãos. Quem sabe onde encontraria o novo conhecimento que me revelaria a mim?
Quando fui visitar o Seminário de Agudos onde, eventualmente no futuro, eu faria a preparação para me tornar frei franciscano, não esperava que fosse ali que encontraria outra resposta… O resto da história, este pai de família, casado oficialmente há 30 anos, completados hoje, ainda está a contar. O caminho que tomei, foi o caminho que tomei e não exercito o jogo do “se”. Não me arrependo de nada. Festejo a vida. Beijo a face do Tempo e anseio me encontrar preparado para seguir além, quando for o tempo…
Há tempos não encontrava Léo. Eu havia perdido o seu contato por todos os meios possíveis por dois anos. Porém na semana passada recebi um e-mail dele, informando que estaria em São Paulo por esta semana. Ficamos de nos encontrar na Paulista, em frente ao Reserva Cultural e passamos uma cálida tarde deste verão atípico a prosear, na Prainha. Amigo querido de faculdade de Jornalismo, éramos dois trintões ainda buscando espaço naquela atividade de destino incerto diante das novas plataformas da informação, “cada vez mais pontuada por opiniões pessoais e conspurcada por posicionamentos ideológicos deturpados…” – frisei, ao comentar sobre as dificuldades da profissão. “Não foi sempre assim?” – contrapôs Léo. Ele sempre foi muito mais cerebral do que eu e devia ter razão…
De início, perguntei por onde ele havia andado por todo aquele período. Respondeu que foi morar em Santa Catarina. Para explicar porque havia sumido das redes sociais, disse que havia se casado… quer dizer, se unido à uma jovem. “Essa circunstância o impediria de se comunicar com os amigos?” – retorqui. Léo baixou enigmaticamente a cabeça, fechou os olhos e quando os abriu, se passou a desfiar sua história recente.
Em uma viagem que fez para o Sul, disse, conheceu T…. “Era atriz e trabalhou no ‘Hair’…” brincou. Na verdade, T. era uma atriz que começava a se tornar conhecida por participar de uma novela global. Inicialmente, lhe dei os parabéns por estar com a bela “tigresa de unhas negras e íris cor de mel”.
“Meu amigo, foi paixão à primeira vista! Desbundei! Ela também gostou de mim! O fato de ser de outro lugar ou talvez por minha personalidade mais calada, diferente da maioria dos seus amigos de teatro, veio a trazer certo frescor aos relacionamentos que já havia tido. A sua postura agressivamente aberta, inversa a minha, imediatamente me cativou. Logo, estávamos a fazer planos para o futuro. Uma loucura!”
Conforme Léo falava, maior era a minha incredulidade. Aquele não parecia ser o cara que conheci na faculdade, controlado ao extremo. Um tipo que sempre evitou se apaixonar pelas colegas de classe, namoros gostosamente inconsequentes ou, minimamente, “amassos” inocentes com amigas mais próximas. Certamente, T. devia ser alguém muito especial…
Continuou: “Logo, conheci os seus outros namorados…”. Nesse trecho, derrubei a cerveja na mesa. “Fiquei amigo de quase todos, mas um deles se sentiu ameaçado em sua posição de primazia e tinha razão para isso, porque assumi esse posto, como acontece até hoje…”.
Léo olhou para mim com um sorriso de quem sabia que provocava um efeito tal qual uma singularidade no espaço-tempo. “Com T., apesar de ser mais nova do que eu, aprendi muita coisa sobre o amor (também o físico) que me transformou em outra pessoa. Aquele Léo que você conheceu, posso afirmar, morreu…
Quase chegava a ouvir a voz de Gal ou Caetano:
“Com alguns homens foi feliz, com outros foi mulher Que tem muito ódio no coração, que tem dado muito amor Espalhado muito prazer e muita dor…”.
Léo: “Em poucas semanas, estávamos morando juntos. Consegui trabalho no jornal local e, quase ao mesmo tempo, devido ao seu talento e à boa sorte que lhe dei, segundo ela diz, T. obteve um pequeno papel em um filme feito por lá, numa produção carioca. Os produtores e diretor, o A.W. a adoraram, não somente porque fosse realmente uma bela mulher, mas também, posso garantir, por ser muito talentosa…”.
Ao término da última sentença, me senti muito mal por um pensamento fugidio, fruto de puro preconceito, mas que não verbalizei para o amigo…
“A minha relação com a T. foi se aprofundando mais e mais, porque além de amante e amoroso companheiro, respeitava minha opinião, inclusive sobre o seu processo artístico. Igualmente, passou a estimular o meu desejo de escrever. No ano passado, cheguei a publicar alguns contos em cadernos literários… Quanto ao meu afastamento, foi uma opção pessoal, pois me sentia livre e decidi me desvencilhar dos liames que me prendiam ao antigo eu. Desculpe não ter entrado em contato antes, mas tudo foi tão rápido e impactante que não tive cabeça para mais nada… Atualmente, moramos no Rio, onde ela está gravando a novela. Ficaremos uns três dias em Sampa. Viemos analisar a oferta de sua participação em um filme”.
Tomou um longo gole de cerveja e, como a encerrar o seu relato, disse que estava feliz, amava a sua companheira e que estava atento aos possíveis novos amores de T. para que ela não se ferisse com pessoas que quisessem somente usá-la.
Pensei em perguntar tanta coisa ao Léo, mas qualquer questão que formulasse talvez o ofendesse de alguma maneira. Percebi que não estava preparado para lidar com um assunto tão delicado sem parecer preconceituoso e decidi apenas aproveitar a companhia do Léo que, por amor, transformou a sua visão de mundo, em que a tigresa podia mais do que um leão.
Passamos a conversar sobre antigos colegas e conhecidos, também sobre política, futebol e trabalho. Senti certo receio em relatar qualquer coisa que tivesse como tema relacionamentos interpessoais. Ele havia ultrapassado várias etapas as quais eu ainda estava preso.
Algo mais assombroso me incomodava – pelo brilho nos olhos do Léo quando falava de T., senti que também poderia me apaixonar por ela… Ah, como eu gostaria saber tocar um instrumento…
Dezembro… luz do sol… calor… mês de festas… Preto no branco, quase não há o que comemorar, a não ser termos sobrevividos a um ano tão doloroso quanto um ferimento à faca. Em tempos em que cada termo ou imagem passa pelo escrutínio ideológico, essa metáfora, por mais inocente que pareça, indicaria pendores aleivosos. Pelo sim, pelo não, não precisa ser faca, então. Vamos dizer que tenha sido tão doloroso quanto o espancamento de um ser inocente com barra de ferro apenas para não tê-lo por perto. Este ano se encerra com dúvidas e incredulidade muito maiores do que quando começou. Fiz previsões para este ano da graça de Vinte Dezoito. Foram publicadas em uma das Revistas da Scenarium Plural – Livros Artesanais. Eu as reproduzirei aqui, até o seu final. Errei muito. Não queria acertar o que acertei.
Por hora, resta aludir às imagens em P&B – tema desta edição do “Projeto Fotográfico 6 On 6” – que consiste em postar seis imagens comentadas publicadas no sexto dia de cada mês, por autores convidados por Lunna Guedes. As fotos em preto e branco são, para mim, estranhamente mais atraentes que as coloridas. Talvez, uma influência direta do fato de ter assistido meus programas favoritos em TVs P&B até meados de 1982, quando minha mãe juntou o dinheiro que tinha e que não tinha para comprar uma TV Colorida para assistirmos a Copa da Espanha.
Ao passar pelo Museu da Diversidade, instalado na Estação República do Metrô de São Paulo, encontrei essas palavras em um dos vários quadros com dizeres espalhados pela parede externa do pequeno e expressivo espaço de resistência da liberdade de ser. Traduz de forma exemplar como somos manipulados para viver por padrões que engessam nossa expressão humana. E como nossos sentidos – físicos e infra-ultra-físicos – se entregam à estereótipos confortáveis e padronizados para interpretar o mundo que nos rodeia.
A luz do sol inclinada na hora do crepúsculo, banha o vale e sua casas. Entre elas, a minha, que se sente calorosamente atravessada. Como o personagem de “Beleza Americana”, que assiste o passeio de um saco plástico ao sabor do vento, eu me perco em devaneios para formar imagens que se diluem em linhas costuradas pela imaginação. O registro fotográfico apenas arranha na superfície a viagem para o tudo ou nada do que vislumbro…
A imagem acima é um atestado do que coloquei acima, sobre preferir tons mais sombreados em contraste com a brancura dos corpos. Neste caso, de cravos vermelhos. O que eventualmente tenha se perdido em cor, ganhou em consistência – peso seria uma boa palavra – quase como se as delicadas pétalas fossem revestidas de ferro.
Normalmente, voltamos de madrugada – eu, meu irmão e nosso auxiliar – dos eventos em trabalhamos na produção com nosso equipamento de som e luz – esta, idealmente colorida. Dia desses, quando choveu tanto em São Paulo que vários trechos da Marginal foram alagadas com as águas do Tietê, passamos transversalmente, a salvo por pontes do Corredor Norte-Sul. Registrei esta ilustração noturna que logo se configurou, como caçador de imagens, em uma das minhas favoritas desde sempre.
Este portão de uma residência aparentemente abandonada é quase um portal do tempo. Não posso ver construções como essa sem reconstruí-las como à época de seus esplendores funcionais. Esta, acima, se localiza no início da Francisco Matarazzo e não duvido que tenha feito parte do patrimônio do próprio Comendador, como quase tudo no vale que a avenida que carrega seu nome, percorre. Esse portal dá entrada a uma pequena vila bastante descaracterizada, com linhas mais retas-modernas-pobres do que as belas-esféricas-sinuosas do passado. As primeiras, preferi cortar da foto.
De início, não via vinculação entre as duas imagens que estão expostas lado a lado. No entanto, a primeira, originalmente em P&B, representa um auto-retrato sem tanto apuro técnico, pois desenhava bem espaçadamente naquela época, ao contrário de anos antes, quando cheguei a me imaginar desenhista e até, pintor. Nada impede que possa me tornar um, algum tempo adiante. A segunda, devido à falta de luz, sombreou naturalmente. Contribuí com um pouco mais de escuridão. No desenho, o queixo é menos largo e o nariz menor do que se tornaram. O rosto, mais preenchido em suas linhas. O olhar, é de espanto. Espanto que carrego até hoje, talvez com os olhos espremidos de quem pensa demais. Além do que relacionei em comum, nos dois registros, uso óculos. Ao contrário do que diz a música, eu nasci de óculos, ainda que tenha começado a usá-los apenas a partir dos 12 anos…
Eu gostava de desenhar desde pequeno. Tinha habilidade razoável em passar para o papel imagens que via em gravuras, livros e gibis. Estes últimos me atraíam bastante. Adorava ver as revistas do meu primo aos quatro ou cinco anos e criava histórias de acordo com a sequência dos quadrinhos. Os desenhos da TV me ajudavam a verbalizar a fala de cada personagem.
Em determinado momento, entre cinco e seis anos, comecei a desenhar letras, fascinado por aqueles símbolos estranhos que representavam saberes interditados para mim. Fui estimulado pelas tarefas da escolinha infantil da esquina da rua onde morava, na Penha. Como modelos de meus desenhos, utilizei latas de manteiga que meu pai usava como repositórios de pregos, parafusos, arruelas, tachinhas e outras peças, com as quais fazia seus reparos.
Para agradar à minha professorinha, transcrevi-desenhei as palavras para o caderno de brochura onde ensaiava as primeiras letras de forma. Como não tinha noção de separação ou parada, as palavras seguiram como num trem cargueiro, umas grudadas nas outras, do início de uma página até virem “descarrilhar” no final da seguinte. Eu me lembro de ter feito umas duas ou três “trilhas”. Quando mostrei à mestra da “Rainha da Paz”, arranquei lágrimas inesperadas e ganhei um beijo no rosto. Melhor recompensa não haveria.
Como meu aniversário é em outubro e a lei estipulava que apenas com sete anos poderia entrar no curso regular, a minha vontade de começar a escrever e a ler efetivamente foi adiada, o que não impediu que começasse a interpretar as palavras, ainda que precariamente. No início dos seis anos, no entanto, passamos uma temporada no norte da Argentina, acompanhando o meu pai que permaneceu na casa da minha avó por quase um ano. Provavelmente, fugindo da perseguição política em época de AI-5, imposto pelo Regime Militar. Tive que aprender a falar outra língua, apesar de parente do português. Vivíamos em condições precárias e estímulos parcos. Não me lembro sequer de um livro ou revista que tenha visto naquele período.
Quando voltei ao Brasil, aos sete, fui matriculado no Primário e tive contato com o Caminho Suave das palavras. Apesar de falar mais espanhol que português, em pouco tempo li todas as histórias do meu primeiro livro e comecei a querer mais. Minha mãe, percebendo esse pendor, começou a comprar gibis, então os artigos “literários” mais baratos disponíveis. Porém, também gostava de histórias mais complexas, sem figuras. Minha imaginação era sempre mais fantástica que qualquer coisa que visse. Na segunda série, fiz o curso em duas escolas diferentes, com livros diversos. Em um mês, devorei o do segundo semestre e, na prova de leitura, ganhei visto de “Excelente” em linda letra cursiva da professora. Desejei escrever daquela maneira.
Na Canuto do Val, havia uma biblioteca. Conheci Monteiro Lobato, Júlio Verne e outros, além de livros sobre fatos extraordinários da História. Esses e os de Ciências passaram a ser do meu mais íntimo interesse. Foi uma época de intensa leitura e aprendizado acelerado – lançamento definitivo na minha aventura como leitor.
Um pouco mais adiante no tempo, comecei a escrever pequenos contos e a fazer versinhos para namoradas imaginárias. “Hey, Jude” ganhou uma versão adocicada que não mostrava para ninguém. As minhas historinhas tinham o meu irmão menor como ouvinte cativo e pude perceber desde cedo o quanto a Palavra é encantadora. Desde então, sou encantado pelo poder do Verbo…