
Eu gostava de desenhar desde pequeno. Tinha habilidade razoável em passar para o papel imagens que via em gravuras, livros e gibis. Estes últimos me atraíam bastante. Adorava ver as revistas do meu primo aos quatro ou cinco anos e criava histórias de acordo com a sequência dos quadrinhos. Os desenhos da TV me ajudavam a verbalizar a fala de cada personagem.
Em determinado momento, entre cinco e seis anos, comecei a desenhar letras, fascinado por aqueles símbolos estranhos que representavam saberes interditados para mim. Fui estimulado pelas tarefas da escolinha infantil da esquina da rua onde morava, na Penha. Como modelos de meus desenhos, utilizei latas de manteiga que meu pai usava como repositórios de pregos, parafusos, arruelas, tachinhas e outras peças, com as quais fazia seus reparos.
Para agradar à minha professorinha, transcrevi-desenhei as palavras para o caderno de brochura onde ensaiava as primeiras letras de forma. Como não tinha noção de separação ou parada, as palavras seguiram como num trem cargueiro, umas grudadas nas outras, do início de uma página até virem “descarrilhar” no final da seguinte. Eu me lembro de ter feito umas duas ou três “trilhas”. Quando mostrei à mestra da “Rainha da Paz”, arranquei lágrimas inesperadas e ganhei um beijo no rosto. Melhor recompensa não haveria.
Como meu aniversário é em outubro e a lei estipulava que apenas com sete anos poderia entrar no curso regular, a minha vontade de começar a escrever e a ler efetivamente foi adiada, o que não impediu que começasse a interpretar as palavras, ainda que precariamente. No início dos seis anos, no entanto, passamos uma temporada no norte da Argentina, acompanhando o meu pai que permaneceu na casa da minha avó por quase um ano. Provavelmente, fugindo da perseguição política em época de AI-5, imposto pelo Regime Militar. Tive que aprender a falar outra língua, apesar de parente do português. Vivíamos em condições precárias e estímulos parcos. Não me lembro sequer de um livro ou revista que tenha visto naquele período.
Quando voltei ao Brasil, aos sete, fui matriculado no Primário e tive contato com o Caminho Suave das palavras. Apesar de falar mais espanhol que português, em pouco tempo li todas as histórias do meu primeiro livro e comecei a querer mais. Minha mãe, percebendo esse pendor, começou a comprar gibis, então os artigos “literários” mais baratos disponíveis. Porém, também gostava de histórias mais complexas, sem figuras. Minha imaginação era sempre mais fantástica que qualquer coisa que visse. Na segunda série, fiz o curso em duas escolas diferentes, com livros diversos. Em um mês, devorei o do segundo semestre e, na prova de leitura, ganhei visto de “Excelente” em linda letra cursiva da professora. Desejei escrever daquela maneira.
Na Canuto do Val, havia uma biblioteca. Conheci Monteiro Lobato, Júlio Verne e outros, além de livros sobre fatos extraordinários da História. Esses e os de Ciências passaram a ser do meu mais íntimo interesse. Foi uma época de intensa leitura e aprendizado acelerado – lançamento definitivo na minha aventura como leitor.
Um pouco mais adiante no tempo, comecei a escrever pequenos contos e a fazer versinhos para namoradas imaginárias. “Hey, Jude” ganhou uma versão adocicada que não mostrava para ninguém. As minhas historinhas tinham o meu irmão menor como ouvinte cativo e pude perceber desde cedo o quanto a Palavra é encantadora. Desde então, sou encantado pelo poder do Verbo…
Participam também desta Maratona:
Ale Helga | Cilene Mansini | Fernanda Akemi | Mari de Castro | Mariana Gouveia | Lunna Guedes
Acho prazeroso descobrir os caminhos dos olhos de cada leitor… acho delicioso apreciar como se orientou esse começo e como evoluiu até esse tempo que é ontem e hoje, até porque vivemos um eterno regressar, como dizia Eliot.
bacio
O meu olhar de curioso nunca deixou de estar presente. Sou um eterno aprendiz…
Que legal! Eu romantizo muito o caminho de cada pessoa e daí vou lá perguntar só pra sentir o prazer de ouvir uma boa história, bem melhor que a minha, inventada, claro!!! Impressionante o seu caminho! Não tenho lembranças bem específicas dos meus 6 anos, são mais vagas. Em resumo: quadrinhos, acho que comecei com eles; meus pais sempre me presentearam com livros quando podiam, minha mãe me comprava diários todo ano numa loja bonita e eu roubava livros da biblioteca do meu avô, enciclopédias, na verdade. Só mais tarde roubei uma coleção do Aluísio Azevedo.
Sobre latas de manteiga: apesar de não comer manteiga ( não gosto do sabor), eu gosto das latas, das cores. Elas tb ficam lindos vasinhos pra suculentas e cactos.
Belíssimo texto!
Não sei se por ser importante para o desenvolvimento de minha aprendizagem, até hoje consumo manteiga com gosto de palavras novas…