BEDA / Minhas Amantes*

maria do arouche lembro pouco
cor de entardecer em dia fechado
babá gostava manipular meu saco
era muito novo ainda conectado
com vida antes de chegar ao útero
via fantasmas no corredor
andava parapeitos
namorava amiga morte 
chama cama de estrelas
meu avô logo cortou nosso laço
engatei com maria da penha
cresci em liberdade peripécias
fazia tudo que queria
sem compromisso apenas gozo
não me importava mas amava
parece outra vida
deixei porque fui para longe
bárbara encontrei fiquei anos
achei nunca terminaria paixão
bater bolas contra a bunda
na parede na cama no chão
sonhava era santa
eu gritava entusiasmo feito gol
comi duas mesmo lugar
épocas diferentes não se conheceram
provaram minha torpeza
primeira nunca disse amor
segunda entreguei ao melhor amigo
altíssima alternativa cabelo a la garçon
conheci maria tenente
olhos verdes amedrontavam
nunca toquei sequer abraço
somente olhares lenço sujo de sangue
ideal ilusão perfeição eternidade
somente entregou irrealização
nunca esqueci sempre amarei
era bonito atraía sem esforço
fiquei com duas anas
a santificada bem mais tempo
servia a muitos depois que deixei
ainda trepei muitos anos muitas vezes
outra ana loura sonhadora
disse gostava de mim
sou de ninguém de alguém sequer
pertenço a mim vivo apaixonado
maria maria noiva meu amigo
usei muito a língua
toques debaixo da mesa
deus ausente como navio negreiro
biologia estudo profundo casou
la bergman foi intenso durou verões
veros versos não comunicados
alcancei seu corpo debaixo avental
desilusão me jogou fora entulho removeu
tati e amiga quis as duas
na mesma casa não lembro
tanque velho nos fundos
bebi demais vomitei desmaiei
eternas amigas
re fez história brilhou minha vida
pintura de mulher ensinou
nova posição bicicleta outra noiva
nunca a beijei 30 anos passados vi passar
não a chamei
augusta andrógina cheia
altos baixos travesti do centro
aos jardins comi da boca a bunda
noites infindas
vitória era inocente puta
jacaré cocou 7 vezes não pagou
vamos fazer neném?
paguei sempre às vezes só olhava
efigênia irmã mais rodada
velha não envelhecida
elixir da juventude atual virtual presencial
dá a todos os gostos versátil
sempre que posso como sem proteção
maria antônia antônimo passado conturbado
duas caras que se antepunham
hoje vive calmaria comi atrás
em palco plateia teatro
verediana angélica cecília amores livres
simultâneas especiais brigava com uma
encontrava com outra consolação
agitadas corcoveavam 
suava para satisfazer queria ser notado
elas não se importavam tinham
quem quisessem quando queriam
estranho estrangeira maria paulista
ama sem identificar despreza sem qualificar
retilínea beleza sem cor amo desamo
volto a amar amante inconstante ferina
amável indigna perfeita anomalia
amante infiel amo fielmente a sem nome
aprendi amar foder amar trepar amar lamber
amar bater amar puxar amar chupar
amar rápido amar lento amar alento
amar beber amar comer amar orar
amar chorar amar sorrir amar gritar
amar brigar amar voltar sem voltar amar
amantes de hotéis baratos abençoados por santos
centrais laterais três corações zardoz 
córregos regos monte carlo sempre haverá
são francisco finalmente total sentido
sem chance nascer outra vez
eterna paixão que se fez
sagrada porque acabou.

*Poema de 2021

Imagem de 2016 — Guanabara (1941), em plena Pauliceia Desvairada, é uma escultura de João Batista Ferri, embelezando o Centro Histórico de São Paulo, outra amante postada frente à sede da PrefeituraEdifício Conde Francisco Matarazzo.

Participam: Danielle SV / Suzana Martins / Lucas Armelin / Mariana Gouveia / Roseli Peixoto / Lunna Guedes / Dose de Poesia / Claudia Leonardi / Alê Helga


Cedo

Acordo…
Logo, me levanto…
Sinto os pés no piso, a procurar os chinelos…
Antes que os alcance, me invadem sensações
inesperadas, mas conhecidas…
Em meu corpo, quente, tremores…
Na alma,
gelo
e medo…

Cedo,
cedo à minha incapacidade de lutar
contra aquele sentimento de impotência,
tão particular quanto evidente…
Sozinho que estou,
ninguém saberá o que passo…
Ainda que estivesse rodeado por muitos,
mesmo assim, me sentiria só,
a beber a água suja do fundo do poço…

Neste dia de verão,
voltarei para a cama,
a tremer de frio n’alma…
Fecharei as janelas,
cerrarei as cortinas,
cobrirei o meu corpo com pesadas
mantas…
me manterei quieto,
como se quisesse voltar
para o útero de minha mãe…
Talvez, renasça em algum momento…

BEDA / Scenarium / Sexton, De Obscuros Tons

Sexton
Anne Sexton

Anne, tenho tido um contato mais assíduo com sua poesia nos últimos dias. Inspirado por um dos seus poemas — Mãe — que versa sobre a possibilidade de redenção em sua vinculação com aquela que a jogou ao mundo das pessoas grandes como uma estranha, algo inventado, ou vacilação quando outro alguém está tão vazio como um sapato, imaginei enveredar por um caminho lírico no relacionamento que tinha com o meu pai. Nossa conexão com eles foi igualmente difícil. Não consegui. De nossas almas machucadas, você serviu mel e lenitivo, eu destilei rancor…

A mulher uterina pariu palavras de obscuros tons e claras presenças – versões fidedignas da dor de ser. E de deixar de ser, a versar sobre as mulheres que estiolam suas juventudes em camas de casal-modelo, em amores-pantomimas. Talvez fosse sua voz real, quando disse sobre o companheiro de uma delas, que o deseja aleijado ou poeta, ou ainda mais, solitário, ou, às vezes, melhor, meu amado: morto. Porém, quando ele a deixou, não suportou.

Seus transtornos, suas viagens químicas, seu afogamento em si, quando queria apenas assumir sua própria personalidade — ultrapassar nascimento e criação — pai e mãe. Essa que a gerou e a acompanhou íntegra-integral, poética e materialmente, sonho e permanência transversal pela mãe que se tornou — caminho leitoso.

Cantou às mulheres que violam as leis patriarcais. Cantou às ousadas e insubordinadas que, como você se atrevem a viver. Que ultrapassou o doce peso de ser mulher, que adejou com todas as suas asas para se tornar a poeta peso-pesado, a cantar para a ceia, para o beijo, para a correta afirmação…

Quis morrer em noite estrelada. Sorveu como ar puro de quem queria viver, o gás venenoso que respirou dentro da fera furiosa da noite, engolida pelo grande dragão, cuspidada vida sem bandeira, sem ventre, sem grito, vestida com a pele de sua mãe. Como a retroceder o seu corpo para o útero dela, depois de revisar sua existência em versos. Foi premiada entre os poetas por saber confessar depressão, suicídio, isolamento, desespero, intoxicação e morte — aplaudido espetáculo de quem se desintegra em praça pública.

Anne, necessária, tão nova em minha vida e já tão influente. Saiba que viverá em mim, tanto quanto no coração de quem mergulha fundo nos meandros de nossa absurda existência. Que sua dor seja baliza de quem se permite adoecer e se curar. Mulheres assim de morrer não se vexam. Eu tenho sido desta casta.

In:
Missivas De Agosto
https://scenariumplural.wordpress.com/2019/08/21/sexton-de-obscuros-tons/

BEDA / Uma Só Asa

Eu, até os meus quatorze ou quinze anos, escutava muito mais músicas brasileiras do que estrangeiras. Corria o início dos anos 70. Era bastante fascinado pelas letras, que em conjunto com as belas melodias, compunham o meu acervo poético, para quem não tinha tanto acesso à literatura em versos para além dos livros didáticos do ginásio.

Entre os compositores que apreciava, Chico Buarque era um dos meus favoritos. As suas composições, falando das mulheres como se fora uma, me influenciou grandemente. Eu, que apenas queria entender aquele ser que se expressa fortemente através da associação do cérebro a uma parte do corpo que os homens nem sequer imaginam o poder – o útero – o usei como referência em muitos aspectos. Quando ouvia “Mulheres de Atenas”, “Com açúcar, com afeto”, “Cotidiano” e “Sem açúcar”, por exemplo, sabia que era apenas um contraponto, já que a minha mãe, minha referência imediata, não se parecia com aquelas mulheres aparentemente submissas.

Nos versos a seguir, que fiz para um projeto musical apenas iniciado, mas nunca levado adiante, tento me colocar no lugar de uma mulher. Espero que as minhas amigas se sintam pelo um pouco representadas por eles. Se não, perdoe a intromissão nesse universo que tento compreender até sempre.
Anjo
Uma Só Asa

Quem quer um anjo em sua vida, quem quer um amor?
Que caia do céu, direto para você, um anjo transgressor?

Um anjo caiu em meu quintal e foi assim
Uma luz, um estrondo… e um rapaz se ergueu
Entre a garagem coberta e o canteiro do jardim
De seus ombros largos, apenas uma asa, a outra se perdeu…

Vestia uma roupa muito branca, quase transparente

Deixava entrever as formas de um corpo esguio
Jeito de menino-homem, com a sua asa pendente
Caminhando decidido, veio direto para mim, bravio

Não tive medo, não pensei neste tempo doentio

Parece até que o esperava, o buscava em meu sonho
Não aguardava que fosse um anjo vindo do vazio
Mas senti que ele seria aquele ser que chegara risonho…

Ao se aproximar, pegou em minha mão, que tremia
Beijou a minha testa e baixou os lábios até a minha boca
Apenas entreabriu a sua e soprou que me queria
Que já há algum tempo me observava e que chegara a nossa época…
Perguntei sobre a asa que não trazia, a que havia sumido
Respondeu que começou a pensar apenas em mim e que caíra em casa
Já amputado, porém feliz, pois fora atendido em seu pedido
E dessa maneira, ganhei o meu homem, um anjo de uma só asa…

Quem quer um anjo em sua vida, quem quer um amor?
Que caia do céu, direto para você, um anjo transgressor?”