Eu sou um macho da espécie Homo sapiens. E sou feliz por ser um macho, gosto de ser másculo e amar como um homem. Está tristemente enganado quem acredita que o macho deva ter como prerrogativa oprimir a fêmea de sua espécie para se sentir funcional. E por me sentir tão bem e ciente da minha masculinidade, posso me dar o prazer de cumprir tarefas que alguns não atribuiriam a um homem, como estender calcinhas no varal. Fiz isso hoje, antes de sair para trabalhar e, repentinamente, me senti muito bem, quase realizado. Quem as vestem atualmente, muitos anos antes usavam fraldas…
Passei a tarde de hoje a lavar e estender roupas de cama, mesa e banho — camisas, blusas e peças de uso pessoal, como cuecas, calcinhas, sutiãs e meias, muitas meias. A tarefa mais desgastante foi reunir os pares, todos misturados em uma grande barafunda. Dificilmente consigo encontrar imediatamente a meia e a sua exata correspondente. Por experiência própria, sei que muitas se deslocam para a dimensão paralela onde se refugiam sempre que podem. Essa rebeldia das meias, já foi cantada em verso em prosa por todo o mundo, inclusive por mim. A surpresa se deu quando a primeira meia que separei, solitária desde então, começou a conversar comigo, quando faltava vários pares a serem reunidos.
— Oi! Oi! Meu amigo, você não vai me colocar para secar logo? Quero aproveitar o sol um pouco…
— Eu a conheço! Já fiz um texto tendo você como personagem – “Hoje, carreguei as estrelas em minha mãos…”…
— Bonito, mas e o meu caso? Você não vai encontrar o meu suposto par neste cesto… Ou ele está em outro ou ainda será lavado… Ou…
— Já sei! Foi para a Dimensão das Meias!… – Ri, pensando que fazia piada.
— Ah, então você já sabe sobre isso?
— Hã? Então, esse lugar existe realmente?
— É claro! Mas apenas algumas meias conseguem penetrar nesse universo paralelo. Muitas vezes, por puro acaso. Eu, não quero. Estou bem por aqui.
— Que impressionante! O estranho é que são sempre apenas uma das meias do par que escapam para lá…
— Somos meias de um par, mas somos autônomas, independentes umas das outras. Somos sociáveis. Gostamos de nos relacionar com outras roupas, com vários pés que nos calçam. Crescemos com a experiência do toque da pele humana. Captamos a energia que vibra de suas auras. Faço a festa aqui nesta casa. Estou sempre mudando de pés.
Imediatamente lembrei das quatro mulheres da casa, que vivem trocando de pares de meias entre elas…
— Eu pensei que vocês apreciassem a parceria constante…
— Não! Nós, meias, gostamos de bagunça compartilhada…
— Percebo certa ironia de sua parte, Meia Estrelada…
— O que você está ouvindo pelo fone?
— Música? Conhece?
— Sim, meu caro! Suas filhas ouvem muita música! Qual o tipo de música que ouve?
— Todos os tipos: Pop, Ópera, Jazz, Rock, MPB, Instrumental… Sou eclético…
— Como você, nós não nos prendemos a essa à organização que os seres humanos querem nos impor. Essa falsa regularidade que vocês querem dar à vida. Por nós, mudaríamos de pares sempre que possível, para trocar experiências. Não nos importamos com o tamanho, cor ou textura. Eu por exemplo, sou louca para sair com uma meia fina…
Enquanto conversávamos, eu continuava a separar os pares para pendurar no varal. Ao término, sobraram três pés de meia sem par, incluindo a Estrelada. O seu par realmente não se encontrava entre elas.
— Eu não disse? Pode me colocar junto com as outras duas. Tenho certeza que elas não se importam, ao contrário. Eu as conheci no troca-troca da máquina de lavar. Oh, loucura! Vou adorar passar esse tempinho ao sol com elas… Ah, agradeço o papo!
Eu a posicionei como ela pediu e continuei a estender roupas até bem depois desse interessante diálogo. Vez ou outra, passava em frente da Estrelada, mas ela parecia estar dormindo sob o contato aconchegante dos raios solares do inverno. A Estrelada, apesar de sua atitude independente, não percebeu que a falta de seu par poderia condená-la ao ostracismo. A não ser que o estilo das minhas filhas mude e elas comecem a usar meias que não combinem o padrão. Talvez, este texto as ajudem nessa decisão…
A voltar da academia, ao passar por uma rua próxima de casa, ouvi o seguinte bordão apregoado pelo alto-falante de um pequeno caminhão: “Temos bambu! Bambu para varal! Dois Reais cada um! Trocamos também por Tele-Senas vencidas ou baterias de carro usadas!”…
Passei pelo caminhãozinho. Na carroceria constavam parrudos bambus, uns vinte, de quatro metros cada, pelo menos. Há muito tempo que não via esse tipo de material, um dos mais ecléticos que existe. Ainda mais aqui, em São Paulo, mesmo sendo este, um bairro de periferia.
Senti vontade de comprar pelo menos uma vara de bambu, que eu não sei em que poderia usar, mas pelo menos ficaria em algum canto do jardim, como um exemplar raro de um tempo que passou…
Lembrei-me das taquaras de bambu que eu usava em minha meninice para várias finalidades, da confecção de pipas a cercas e, obviamente, varais. Houve tempo em que a maior parte dos paulistanos vivia em casas térreas e qualquer casa tinha quintal. Erguíamos a corda do varal em um ponto central para que recebesse uma maior incidência dos raios solares. Quando havia brisa, quaisquer lençóis transformavam-se em bandeiras brancas e coloridas, verdadeiras alegorias da liberdade.
Em tempo, Sílvio Caldas compôs uma das mais belas canções da nossa música, chamada “Chão de Estrelas”. A letra toda é um primor. Em certo trecho, ele cita:
“Nossas roupas comuns dependuradas
Na corda qual bandeiras agitadas
Pareciam um estranho festival
Festa dos nossos trapos coloridos
A mostrar que nos morros mal vestidos
É sempre feriado nacional”…
Eram outros tempos, de varais, de quintais, de morros pacíficos e não apenas “pacificados”… Será que a taquara ainda está a R$ 2,00? Provavelmente, não. Não são apenas as nossas referências numéricas que se movem na memória…