Durante muitos anos usamos Kombis como meio de transporte dos nossos equipamentos de som e luz. Meu irmão e eu nos afeiçoamos a elas, apesar de sua difícil dirigibilidade. Esta, na imagem acima, é a Tigresa, mas já tivemos a Gertrudes, a Bailarina, a Tímida… nomes gerados por algum detalhe ou outro como a placa, o “jeito” ou o “comportamento” da Kombi. Sim, porque de certa maneira, elas tinham “personalidades” diferentes. Parece algo meio fantasioso, mas apenas quem teve uma Kombi, sabe do que estou falando. Enfim, esse modelo de veículo participou da vida do brasileiro de tal maneira que quem conviveu com ela, ficou marcado por sua existência e convivência atribulada, mas sempre saudosa. Identificada com a capacidade de sobreviver ao tempo com resistência e denodo, a data de hoje se refere ao primeiro dia de sua fabricação em 1957, na Fábrica da Volkswagen em São Bernardo do Campo-SP.
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Kombis Ou Pães De Forma
“Eu e a outra em minha vida — a velha Matilde — que nos trouxe até o alto da Aldeia da Serra, em evento da Ortega Luz & Som“: foi a legenda que coloquei para identificar esta imagem, de 2013. Kombis tem tido uma participação importante durante toda a minha vida. Produzida de 1950 até 2013, muitas delas continuam circulando por aí. Meu irmão e eu temos duas, utilizadas em nossas atividades profissionais — a feia Tímida e a linda Tigresa.
Quem conhece esta última não deixa de admirar a sua elegância felina. Sim, essas carrocerias parecem todas iguais, mas a depender do ano de fabricação, conservação e “personalidade”, são diferentes. As denominações em outros países se diferenciam igualmente. São conhecidas como Hippie Bus, Hippie Van, Volkswagen Bus, Volkswagen Campmobile, Volkswagen Microbus, Volkswagen Samba, Volkswagen Transporter, Volkswagen Westfalia e Volkswagen Pão de Forma, em Portugal, o meu preferido. Justamente porque a Kombi está diretamente ligada ao meu ganha-pão.
Quando garoto, foi a Gertrudes (a qual em empurrei muito) que papai dirigia que carregava os recicláveis que coletávamos nas ruas. O Sr. Ortega preferia se deslocar para os bairros mais sofisticados porque o lixo era bem melhor em variedade e quantidade. Foi lá que angariei uma parte de minha biblioteca, além de vinis, revistas raras, álbuns de figurinhas e brinquedos. Mas eram os livros que me faziam “perder tempo” quando separava o que seria vendido ou não. O prejuízo não foi pouco. Aprendi a valorizar aqueles objetos com capas duras (ou nem tanto), títulos e páginas como se fossem seres vivos. Mesmo rasurados, os preservava da aniquilação.
Na Ortega Luz & Som, depois de anos utilizando a locação de transporte alheio — normalmente caminhões — para o deslocamento de nosso equipamento, compramos a nossa primeira Kombi — Bailarina. Peruas (outro nome pela qual é conhecida no Brasil) tem a tendência de apresentarem folga na direção. Quem não consegue “pegar a manha” em sua condução, pode até bater. E a Bailarina fazia jus ao nome. Inquieta, apenas o Humberto conseguia manobrá-la. Matilde, a da foto, chegou depois de cinco anos e ficou conosco outros cinco.
Com a chegada da Tigresa, após breve convivência das duas, ficamos apenas com a última. Porém, como fomos multados por ser de passageiros, imprópria para transporte de equipamentos, adquirimos a Tímida, que como o nome indica, além de fechada (furgão), demorou a engrenar em nosso relacionamento mecânico-pessoal. Porque, da mesma forma que nos devolve em eficiência e praticidade, também pode dar dor de cabeça quando enguiça. Ao mesmo tempo, suas peças são facilmente encontradas (a depender da idade) e não são complicadas de serem consertadas.
Para mim, a personalidade da Kombi é feminina — robusta, confiável, corajosa e, quando preciso, impetuosa. Mesmo quando está mecanicamente no limite, sempre entrega o serviço. Apenas uma vez, chegou e saiu do local do evento em cima de um guincho. A exceção que confirmou a regra. Tudo isso, vivencio e continuo a vivenciar sendo passageiro. Não dirijo. Creio que não tenha a habilidade para tal, como a maioria das pessoas pareça acreditar ter. Do alto de uma Kombi, vejo as barbaridades que os motoristas, na condução de suas extensões existências em forma de motor e cheiro de combustível, cometem. Por enquanto, conseguimos chegar e voltar a bordo de nosso veículo preferido. E não vejo (ou não quero ver) o prazo final para que esse relacionamento venha a terminar.
A Coragem Ou Flávio Migliaccio

Outro dia, partiu um dos atores mais emblemáticos de minha garotice ˗˗ Xerife ˗˗ que representou o Flávio Migliaccio. Adorava vê-lo viver aventuras ao lado de Shazam, também conhecido como Paulo José. Os dois andavam de cidade em cidade com o caminhãozinho-trambolho-geringonça conhecida como Camicleta (caminhão com bicicleta). Eu os encontrei na novela O Primeiro Amor, de 1972. Eu era noveleiro. Aliás, na nossa TV PB Bandeirante 14”, gostava de assistir novelas, filmes, séries, desenhos ˗˗ tudo o me fizesse sonhar ˗˗ ou, de certa maneira, me desviasse do cotidiano duro que vivia na periferia da Zona Norte.
Enquanto corria o mundo, a dupla mais incrível que já vi, se metia nas situações mais complicadas e acabava por resolvê-las das maneiras mais inusitadas e atrapalhadas possíveis. Na visão do menino, Shazam e Xerife eram maiores que a própria vida. Quando a série acabou, não me conformei. Mas já compreendia que as coisas mudam. Que mudar é viver.
Eu estava mudando. Por volta dos meus 12 anos, ao mesmo tempo que comecei a usar óculos, troquei de escola. Inaugurei um novo mundo de relacionamentos e vivências. Fui ficando cada vez mais ensimesmado. O ser introspectivo, apreciador de aventuras fantásticas, começou a escrever sobre a transcendência do ser sobre o amor. De certa maneira, queria transcender a algo que não conhecia. Queria me tornar luz sem me jogar na escuridão da dor de amar. Hoje eu sei que não há como alcançar uma coisa sem passar por outra. Na realidade, tinha a ilusão de aprimorá-la, expandi-la e me tornar puro amor.
Na periferia, via passar Shazans & Xerifes a todos os momentos. Muitos, em vez de Camicletas, usavam carroças puxadas a cavalo. Por aqui havia ainda estábulos e ferreiros para ferrar cavalos. Gostava dos cavalos, mas não aceitava a maneira como eram usados. Via crescer a minha indignação com o ser humano ˗˗ ente que deseja se assenhorar de tudo ao seu redor, sem pedir permissão. Em determinada época, preferia não pertencer à espécie humana.
Aos 16 anos, estava pronto para morrer. Se acontecesse, receberia a morte com a curiosidade típica que sempre me acompanhou. A minha expectativa é que estivesse consciente ao conhecê-la. Com 17 anos, mais uma mudança. Tomei contato com a busca pela iluminação real. Não a fátua ˗˗ egoísta e vaidosa ˗˗ que nos afasta da verdade. Porém aquela que nos posiciona para além de nós. Isso me ajudou a sobreviver fisicamente.
Passei a ter respeito pela vida, mas principalmente pela procura das melhores condições para que ela pudesse se expressar em todas as suas potencialidades. Ao mesmo tempo, compreendi que somos proprietários dos nossos veículos e percebi crescer em mim a responsabilidade de deixar o meu corpo-veículo mais apto a me carregar, pelo maior tempo possível, para me levar para onde quisesse ir, até desligá-lo quando não quisesse mais usá-lo. De alguma maneira, sem conseguir identificar o que me dava prazer em viver, boicotei a mim mesmo e quase morri duas vezes.
Consegui superar essa fase de me deixar morrer, graças ao amor. Mas há momentos que cansamos. Atualmente, parece que vejo acontecer as mesmas coisas que vivi há 50 anos. As mesmas personagens, travestidos de novos, sendo representantes do que é velho e ultrapassado. Xerife, cansado de guerra, corajosamente quis cometer um último ato de protesto contra o desrespeito ao artista e à arte. De corpo envelhecido, mas de espírito jovial, sabendo que dificilmente voltaria a atuar, decidiu libertá-lo. Preso à gravidade cada vez mais opressora, respirando o ar cada vez mais venenoso do País, representou o papel do eterno rebelde com causa, defensor dos fracos e oprimidos ˗˗ morreu-se ˗˗ para se perpetuar como o herói simples e imortal que fez todo mundo sorrir.

