Entulho*

Quando eu era mocinho, faziam “bulling” com o meu nome, Obdulio, o relacionando com bagulho, com entulho ou embrulho. Como gostava dele, por ser incomum, segurava a onda numa boa. Hoje, sei que a questão do entulho é muito mais importante que qualquer brincadeira com nomes e que corremos o risco de sermos todos engolidos pelo lixo, de nos tornamos apenas bagulhos.

É muito comum encontrarmos aqui na Periferia locais onde são despejados entulhos – restos de materiais de construção, móveis velhos, utensílios indesejados de todos os tipos. Esses objetos são depositados nas calçadas e esquinas (feitos despachos), muros e jardins das nossas ruas e avenidas. Essas ações, normalmente, não são realizadas por seus (ex)proprietários, mas por intermediários que recebem um dinheirinho para descartá-los. No entanto, quem paga até vem a imaginar, pelo pouco valor envolvido e veículos utilizados (muitas vezes, carroças de tração humana), o destino que será dado ao seu entulho. Porém, a partir do momento que o entrega, não quer mais saber para onde será encaminhado… Não deve ser incomum ocorrer de o sujeito ver a sua própria privada, onde sentou tantas vezes ou o sofá, onde deitou outras tantas, jogados no caminho para pegar o seu ônibus ou atrapalhando a passagem de seu carro…

Essa questão de nosso lixo é, para mim, primordial para identificarmos a quantas anda tanto o nosso nível educacional institucional como o familiar e, antes de tudo, da nossa consciência particular e coletiva. Reflexo direto do que somos como povo, especulo que não merecemos representantes melhores do que temos, mesmo porque é em nosso seio que eles surgem. Escolher aqueles que tem genuína preocupação com a Ecologia tem sido a minha preocupação nas últimas eleições. Se há representantes que, em vez de fazerem promessas mirabolantes, simplesmente se comprometerem com a efetivação de uma Educação de qualidade, bem como o saneamento básico irrestrito, terá o meu apoio.

Da Educação ampla, se desenvolvem os instrumentos para o conhecimento que leva quem a detém, a melhorar a sua vida e de todos ao redor; a de desenvolver a consciência de que temos responsabilidade coletiva com o bem comum; a entender de que a nossa casa não termina no portão para a rua; que o meio ambiente vem a sofrer com o nosso descaso; que, sem sabê-lo saudável, ficaremos (como estamos) igualmente doentes.

Quando falo em saneamento básico, o relaciono à preservação de mananciais, com o tratamento total de nossos esgotos, com a consequente oferta de água potável para todos, o que diminuiria bastante o gasto com a Saúde, já que o uso de água de qualidade evitaria o surgimento das doenças mais comuns, mas não menos graves, por serem endêmicas. Um povo educado valorizaria a geração de energia limpa, eficiente e de oferta quase ilimitada, como a solar e a eólica e veria com desconfiança a ideia de reserva de mercado para combustíveis fósseis que favorecem mais a uma empresa sob a direção de homens que manipulam números dentro do País, enquanto guardam outros fora dele, acima dos interesses da nação.

Eu sei que este possa vir a parecer um pronunciamento partidário, mas desisti de deixar de me colocar à parte das principais discussões que envolvem o nosso modo de vida, para além da observação dos pequenos (apesar de definidores) detalhes da vida cotidiana. Política é a arte da convivência e as pessoas a tem transformado na arte do confronto.

O dono do espelho quebrado terá sete anos de azar, assim como todos que jogam lixo na rua, assim como todos nós, que vivemos neste País. Enquanto isso, utópico, fico a lutar pela salvação pelo Sol, a favor dos moinhos de vento…

*Texto de 2015

Mar Vermelho*

Tarde, quase noite,

saí para pescar no mar vermelho

do céu…

Por entre retas paredes de corais

e rochedos de formas estranhas,

balançava a vegetação

ao sabor do vento acidental…

Por fim,

quando já alcançava

o seu refúgio final,

consegui capturar,

através do olhar,

a estrela do mar continental…

Poema de 2017, baseado na imagem registrada em Indaiatuba no início da Primavera.

BEDA / Brisa Vento Ventania

quando percebi a brisa se aproximar
tocando arvoredos balançando folhas
beijando flores espalhando perfumes
vi que inspirava gentes expirava beleza
ainda bem que meus versos não buscam rimar
e já há algum tempo decidi não mais remar
ao contrário da correnteza
deixei a janela aberta
entraram vento ventania raios solares
derrubaram prateleiras venceram patamares
queimou a minha pele com sopros flamejantes
tornou significados ocultos em claros significantes
acrescentou desejares subverteu pareceres
mostrou que eu queria o que não imaginava querer
como advogar inocência se perdi por vontade o senso?
agora ouço estrelas mergulho em águas profundas
sem tanques de oxigênio para respirar um hiato
sinto o meu coração bater fora do peito
os meus olhos não enxergam o horizonte imediato
suspira por um futuro do pretérito imperfeito
saudade de algo que de acontecer não tem jeito
mas vivo o desejo que me consome
e essa falta também é viver
talvez a faceta mais intensa do meu ser.

Foto por Harrison Haines em Pexels.com

Denise Gals Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Lunna Guedes / Bob F / Suzana Martins Cláudia Leonardi

BEDA / É Pau, É Pedra

PAU
Tronco de meu limoeiro-rosa, que morreu depois de 30 anos

Por vezes, eu me sinto como uma pedra, que colhida da terra, moldada pelo fogo, é arremessada em direção à água pela mão do Destino. No arco que descrevo no ar, sinto contra mim o vento que acaricia o meu contorno áspero e, assim, sinto o prazer fátuo de ser livre para cair. Quando finalmente encontro a água, produzo círculos concêntricos, que serão a minha obra suprema na vida, tanto quanto efêmera. Aos poucos, as linhas cada vez mais tênues que se ampliam e desaparecem, o suficiente para ser testemunhadas por poucos. Logo, a pedra que sou, repousará no fundo do lodo, esperando o momento que será resgatada de volta ao lar estável, para ser novamente lançada ao ar ou realizar outra tarefa. Talvez, nobremente, construir uma casa. Como o pau, que serve de arrimo. Antes, foi planta. Morta, torna-se pau – alavanca ou lenha. Ao final de tudo, tudo o que aprendi é que tudo e todos cumprem os seus ciclos sob a abóboda celestial, sendo uma pedra ou um tronco que se desenraizou.

Redemoinhos, Rodamoinhos, Remoinhos, Moinhos

Careca

Hoje, perdi um grande amor – os escritores são pródigos em perder histórias e amores – todos os dias. Ao passar a mão pela cabeça desnudada, com os poucos cabelos quase ao rés (máquina 2), dia de calor intenso, sinto o suor a umedecer a pele da palma e lembro dos redemoinhos da vasta cabeleira que portei durante décadas. Desde garoto, fui adepto dos fios longos, ainda que não os penteasse, por questão de princípio. Fui perdendo os cabelos ao longo do tempo, influência direta da ascendência calva de meu pai. Ultimamente, como foco de resistência, tenho adotado a barba um tanto mais pronunciada, quase sempre desgrenhada.

Meus redemoinhos ficavam (ficam) em três pontos, no cimo, e atrapalhavam o penteado mais comportado. Segui suas desorientações. Certa ocasião, ouvi alguém chamá-los de remoinhos. Procurei saber e descobri que também é uma forma de nomear essas zonas tempestuosas em nossas cabeças. Eu os imaginava como sorvedouros de ideias. Seria uma das possíveis explicações para eu viver a criar histórias vindas do nada ou inspiradas por palavras soltas ou circunstâncias as mais simples imagináveis – temas de amor, vida e morte.

O meu cérebro, logo ali, abaixo dos pelos, se transformava em moinho de ventos e pensamentos, gerando viveres e sonhos – esfarelados, amalgamados, reconstruídos – e jogados no papel. Certa ocasião, decidi parar de aceitar que meus rodamoinhos pessoais deixassem de tragar histórias. Quis criar vivências reais, com pessoas reais. O sofrimento igualmente tornou-se real – não fingido – doloroso e cru, ventos contrários. Em contrapartida, o amor ganhou solidez e riqueza – ventos favoráveis. A caneta de lado, quase não mais serviu ao propósito de transformar tudo em ficção. Cria que isso balizaria minha existência. No entanto, quase morri…

Porque somente a realidade ou pelo menos a realidade que nos impõem, é prerrogativa da existência. Como no Cosmos, a matéria escura – algo supostamente ausente – tem o condão de explicar a união da matéria mensurável. Precisamos – eu preciso – sonhar a vida. Escrever gera esse movimento. Apesar de meus redemoinhos estarem invisíveis, pelo efeito da calvície, ainda têm o poder de absorver e regurgitar energia. Metaforicamente, ainda balanço a cabeleira ao vento e absorvo, com cada vez maior paixão, a vitalidade de existir.