30 / 03 / 2025 / Vida Que Segue

No último Verão, ela deu os seus derradeiros frutos. Atraiu pássaros, vespas, abelhas, as cachorras e outros seres que usufruíram do gosto especial das goiabas que caíam dos seus galhos já exauridos. Atualmente, pelo chão, o que resta são folhas secas e frutos ressequidos – bolinhas pretas como se fossem de gude. 

A velha goiabeira acompanhou a paisagem visual da família por múltiplas estações. Em várias ocasiões, de seus frutos, fizemos doces ou comemos direto do pé. Há alguns anos, formigas penetraram na base do seu tronco e beberam sua energia em forma de seiva. As providências que tomamos não foram suficientes. Após alguns períodos de eventual recuperação, quase que repentinamente, parou de respirar, emadeirando-se.

Bem perto, a mexeriqueira, apesar de verdejante, também havia deixado de frutificar. Podamos galhos e pequenos troncos, verificamos se havia alguma doença e aparentemente a planta não apresentava problemas óbvios. Apenas deixou de produzir frutos. Ontem, a Tânia me mostrou que surgira uma única mexerica, madura, a ponto de ser colhida. Não foi preciso, apareceu caída. Eu a recolhi e mais tarde experimentamos o seu gosto suave-oloroso de quem mandava um recado: “Estou viva!”.

Um outro processo de desenlace está ocorrendo com a nossa companheira de quatro patas mais velha, de 13 para 14 anos, a Domitila. A Tânia pesquisou e me disse: “Estou lendo aqui que o que está acontecendo com a Domitila é o processo natural da morte por idade. Começa a ocorrer com a dificuldade para andar, depois a respiração fica acelerada, ocorre a falta de apetite, o descontrole do esfíncter, alteração de temperatura e a bichinha começa a ficar quietinha num canto. A opções que surgem ou é ficar com a gente, o nosso calor humano e carinho ou adiantar o processo com a eutanásia”. Perguntei: “Dor?”… “Não mencionam dor. Mas os órgãos vão desacelerando até paralisarem – fígado, rins… Mas eu estou fazendo medicação de horário. Respondi: “Acho besteira estressá-la com uma ida ao veterinário, com soro, isolamento e eventual passamento longe de nós”.

Conheço a curva do tempo de vida desses seres especiais. Eu tive cachorros a minha vida toda. Em nosso tempo de criança, a minha mãe recolhia cães abandonados e chegamos ter tantos que começou a incomodar algum vizinho (que apenas suspeitamos quem seja). Em certa ocasião, vários apareceram envenenados. Apenas alguns sobreviveram. Nós os mantivemos e ficamos com a nossa média usual de três a quatro companheiros. Falecida a minha mãe, mantive o hábito, com a anuência da Tânia. Antes ela não era muito afeita a cuidar deles, mas com o tempo mudou a sua postura com a convivência com eles. Atualmente, ela ama incondicionalmente “nossos” bichos e estamos com cinco “fixos”.

Assim como a goiabeira, a mexeriqueira está numa área que deixamos para serem um receptáculo de água pluvial. Nossos quintais citadinos são normalmente impermeabilizados. Planejados para serem estacionamentos de carros, vedados do contato com a terra e as plantas. Nós nos afastamos de formas de vida que “desaparecem” de nosso cotidiano, porque a nossa suposta superioridade já nos basta. Esse afastamento do sagrado Círculo da Vida será a nossa ruína como espécie. Quanto à goiabeira, manteremos parte de seu tronco. Terá funções decorativas e práticas, servindo de suporte para outras plantas.

Eu sou daqueles que sei que somos todos parte de algo abrangente, tanto nas vibrações mais básicas quanto nas mais altas, entendam como queiram. Eu entendo que quaisquer seres no planeta são companheiros de jornada e busco sorver da profundidade amorosa da Natureza, apesar de ela ser vista por muitos como inimiga dos seres humanos. Para esses, ela apenas se manifesta em forma de adversidade. Ficam bem somente dentro de ambientes controlados, em quartos equipados com apetrechos tecnológicos.

Eu também sei que a Vida se transmuta em gamas de frequências para frequências das mais densas para a mais refinadas – maneira de como a energia se transfere de um estágio para outro. A Vida sempre encontra um meio de expressão, ainda que não pareça Vida. Aliás, com a ajuda do Poetinha, sempre repito: “A Vida tem sempre razão”. Vida que segue…

Verões

Meu pai, Sr. Ortega, meus irmãos Marisol e Humberto, além de mim, chupando picolé… por volta de 1973.

Na imagem acima, retirada de um registro que estava em um pequeno binóculo desses que não existem mais, estou com cerca de 12 anos. Portanto, há 50 anos antes. Estava na mesma localização que estou agora, junto ao mar que tanto amo. Naquela época, a Praia Grande era a praia dos farofeiros, com as ruas tomadas por ônibus de excursão. Hoje, é uma cidade pujante, cheia de novos empreendimentos imobiliários. A rua da casa onde estou desemboca de frente para o mar. Fica entre a estátua de Yemanjá e Netuno (ou Poseidon), na Cidade Ocian. A depender do gosto pessoal, agradando de romanos a gregos e baianos, as entidades estão bem representadas. Mais novo, era fascinado pelos dois totens, mas enquanto Netuno me atraía, Yemanjá me causava certo receio de me aproximar. Talvez porque não conhecesse profundamente a sua história, talvez porque a fascinação pelas mulheres estivesse associada ao temor em mergulhar no meu amor por elas.

Passado meio século, em meio às águas marinhas, repito os gestos do garoto da mesma forma, mais pesado, mas nem tanto que as ondas não consigam relativizar através de seu poder em igualar a todos. Como não estou usando lentes de contato (já perdi uma no embate com as vagas), míope, em determinado momento comecei a me aprofundar na sensação de voltar às águas passadas, fazendo mover o moinho dos pensamentos que começaram a atravessar a minha mente sem que conseguisse apreender quase nenhum por muito tempo.

Relaxei e consegui vivenciar um sentido de permanência calma em meio ao mar revolto, mas quente. Eram as mesmas ondas da mocidade, como se experimentasse a eternidade. Não foi nova essa experiência de viagem pelos tempos. Cheguei a criar um conto numa dessas oportunidades — Curumim. O importante para é conseguir ter essa integração-acolhimento com o meio aquoso. Em outra ocasião, mais recentemente, escrevi um livro inteiro de crônicas — Curso de Rio, Caminho do Mar — pela Scenarium, em que a interação com o mar me salvou de uma séria crise de ansiedade.

Enfim, ainda sou o garoto que ao caminhar para a praia, ouvia os sapos a coaxarem no mangue hoje ocupado por uma fieira de edifícios. As calçadas em que piso são marcadas com os meus pés descalços com o desenho dos dedos. O Sol é o personagem constante e a sua luz explosiva me alimenta de radiação. Eu preciso disso para continuar a viver os dias asfaltados em São Paulo, com as minhas atribuições profissionais. Voltarei todas as semanas do Verão de 2023. É um compromisso que estabeleci comigo e que espero cumprir. Estou em falta e preciso reparar isso com o garoto e o velho vestidos de calção e maiô vermelhos.

O velho, em janeiro de 2023…

Excertos Temporais

Excerto de 2022

Após anúncios de raios e trovões, acabou por chover pesadamente. A luz do Sol ficou escondida pelo corpo da Terra que gira sobre o seu eixo, enquanto passeia pelo espaço nesta parte da Via Láctea a 100.000 km/h. Durante todo o dia a revolução atuou, a translação se perpetuou, as estações representada neste quadrante pelo Verão, nos aqueceu, No entanto, a minha lembrança se fixou na solitária nuvem, desgarrada da grande nebulosidade, tão mais alta e distante. Com o tempo, deve ter sido absorvida pelas outras nuvens, maiores e mais fortes. Não duvido que tenha se precipitado em água agora há pouco, feito lágrimas do céu. Há casos em que a solidão não é uma opção, a liberdade não existe e o fim é compulsório…

Excerto de 2017

A tarde findava em tons de azul. Debaixo da chuva leve, o homem solitário caminhava a esmo, a colher imagens da imensidão azulada… Convenientemente, o último dia de veraneio terminou sem a luz dourada do Sol… A solidão é azul…

Excerto de 2013

A chuva, ciumenta, assumiu o controle do curso do dia. No entanto, agora à tarde, ela não pôde impedir o triângulo amoroso entre a Terra, o Céu e o Sol. Silenciosamente, os três combinaram de se encontrar no leito macio do horizonte… O encontro foi breve, porém… Logo, entre raios e trovões, a chuva, furiosa, reassumiu o controle da situação. Pois é, quem está na chuva, é para se molhar!

Imagem de 2011, em excerto de 2022

Há onze anos, em Outubro de 2011, completava meio século de vida. Como legenda da imagem coloquei que estava me sentindo meio a meio. Estava cursando Educação Física e conseguia, mesmo estudando com jovens com a metade da minha idade, acompanhar as atividades práticas. Esta foto foi feita num ambiente festivo — uma festa surpresa — que reuniu parentes e amigos em um buffet próximo de casa. Nunca imaginei que o sujeito que nunca havia tido sequer uma festa de aniversário quando menino, pudesse participar de uma montada especialmente para si. Agradeço à todos que dela participaram. E, principalmente, à minha família, que pôde me proporcionar esse momento único.

Cedo

Acordo…
Logo, me levanto…
Sinto os pés no piso, a procurar os chinelos…
Antes que os alcance, me invadem sensações
inesperadas, mas conhecidas…
Em meu corpo, quente, tremores…
Na alma,
gelo
e medo…

Cedo,
cedo à minha incapacidade de lutar
contra aquele sentimento de impotência,
tão particular quanto evidente…
Sozinho que estou,
ninguém saberá o que passo…
Ainda que estivesse rodeado por muitos,
mesmo assim, me sentiria só,
a beber a água suja do fundo do poço…

Neste dia de verão,
voltarei para a cama,
a tremer de frio n’alma…
Fecharei as janelas,
cerrarei as cortinas,
cobrirei o meu corpo com pesadas
mantas…
me manterei quieto,
como se quisesse voltar
para o útero de minha mãe…
Talvez, renasça em algum momento…