20/20

2020
Entardecer de 30 de Dezembro de 2019

Na visão física, há várias causas de baixa de acuidade visual: as ametropias (miopia, hipermetropia ou astigmatismo) estão entre as mais frequentes e que podem ser corrigidas com a utilização de óculos, lentes de contato ou cirurgia. Entre outras das causas mais comuns estão a catarata, as doenças da retina, como a degeneração da mácula e do nervo, como o glaucoma. A acuidade visual depende de fatores ópticos e neurais: da nitidez que a imagem chega na retina, da saúde das células retinianas e da capacidade de interpretação do cérebro. A acuidade visual (AV) é medida colocando a pessoa a ser testada a uma distância de 6 metros (20 pés) para ler optotipos – letras, números, símbolos ou figuras – de tamanhos cada vez menores. A acuidade visual normal é chamada de visão 20/20. Acima de 20/200, a pessoa é considerada, virtualmente, cega.

No entanto, o pior cego é aquele que não quer enxergar. A percepção é prejudicada por vários fatores, como o uso de lentes que, em vez de melhorar, prejudicam sua acuidade visual. Essas lentes, como as que conhecemos no uso comum dos óculos, mesmo que invisíveis, se antepõem ao olhar. Aquilo que se apresenta de uma maneira para um, surge diferente para outro. Enxergar, nesse caso, passa por ver, perceber, identificar, descortinar e, eventualmente, prever – dada a condição particular de conseguir unir todas as características que determinam algo – objetos, situações ou ideias através de interpretações díspares. Aqueles que obtém os mesmos padrões de percepção, costumam se reunir em grupos que defendem seus paradigmas com unhas, dentes e tacapes. Os humanos, então, remontam ao comportamento de seus ancestrais e ao antigo hábito de se perfilarem em tribos entocadas em posições imutáveis.

Ajudou-me muito em perceber o quanto a minha miopia ultrapassou o limite físico e se instalou no mental ao ter feito um exercício em que tentei prever os acontecimentos de 2018 – ano de eleição do personagem que comandará nossas discussões durante anos a fio adiante. Está registrado em “Previsões Para Vinte-Dezoito” em uma das edições da Revista Plural, da Scenarium. O que surgia como uma possibilidade subestimada, irrompeu feito uma certeza inaudita. O entendimento que julgava ser o mais evidente, por ser razoável, travestiu-se em ficção de filme B de horror ou uma realidade alternativa do multiverso. Quedamos ameaçados por personagens que um bom ficcionista não ousaria roteirizar, de tão canhestros que são. No entanto, todos já existiam antes. Apenas ganharam a luz do dia, feito um personagem da minha infância – O Monstro Da Lagoa Negra.

Sou daqueles que, apesar de usar óculos materiais, sempre tentou aprimorar o olhar para além das convicções. Para alguns de meu trato pessoal, é considerada irritante a minha postura de “advogado do diabo”, ao contra-argumentar qualquer tema sob o olhar oposto. Tenho “amigos” de todas as percepções ideológicas. Para os mais extremados, se não estou com eles, estou contra eles. No Facebook, tenho evitado postar textos mais extensos porque me cansei de ter que explicar o inexplicável para aqueles que não buscam o reto, mas o caminho em linha reta de suas próprias convicções. Tenho preferido publicar meus textos no WordPress. Entra quem quiser ler. Vez ou outra, solto frases de efeito (curto), a considerar o fato que as mídias são “livros” que guardam todas as suas páginas na eternidade da nuvem.

Portanto, nesta rede, o que ajudará ou prejudicará a defesa de meus argumentos será o Tempo. O quanto penetrei na escuridão para conseguir identificar o que se esconde por trás do véu imposto pelos contraditores da realidade. Guardado pela perenidade, os meus ditos e contraditos determinarão o quanto enxerguei e o quanto obliterei da sociedade brasileira, ainda que muita da minha visão tem a pretensão de ser poética. E, como já disse Borges, “os poetas, como os cegos, podem ver no escuro”. Quem escreve poesia sabe que ao se libertar dos laços que nos prendem ao imediato e ao casual, conseguimos alcançar a causa – a origem de tudo o que nos move. E a causa mais visível da vida como a conhecemos é o Sol. Através da luz que emite, podemos vislumbrar o plano que vivemos. O movimento circular da Terra nos dá oportunidade, em suas zonas médias, que desfrutemos de sua energia criativa.

Por isso, presto minha homenagem ao Sol – a melhor oportunidade de nos reconhecermos menores – em busca de nos tornarmos maiores. Além da capacidade de clarear nosso campo visual, os monstros do pântano – como o citado acima – normalmente têm fotofobia. Para 2020, visão 20/20. E que, ainda que enxerguemos as sujidades dos tempos vindouros, que busquemos a felicidade, quadro a quadro, dia a dia.

BEDA / Auto

 

Auto

Vivemos frequentemente situações que condições externas nos impõe restrições de movimentação e de visão. Em uma longa viagem de ônibus ou metrô, temos rostos de estranhos postados tão próximos quanto o de amantes. Paisagens repetidas tornam-se, com o passar do tempo, visões de quadros de artistas sem talento. A solução mais ao alcance de nossas mãos, olhos e ouvidos, tem sido nos distrairmos com a leitura de um livro ou, mais assiduamente, utilização de aparelhos de nexos – ou dispersão.

Vez ou outra, podemos até realizar outras ações nas raras vezes que conseguimos sentar. Lembro-me que um dos meus melhores trabalhos na Faculdade de História foi feito, literalmente, nas coxas, na hora e meia que me levou de casa à USP. No entanto, era outra época, no final dos 80, e os trabalhos podiam ser realizados à mão e as distrações  talvez fossem menores.

Estamos cada vez mais vinculados à Rede,  onde quer que estejamos. Se a Nossa Senhora  das Conexões nos permitir, através dos instrumentos eletrônicos de mediação, como celulares e computadores, podemos jogar contra adversários virtuais de países amigos, recebermos mensagens do além Rio Tietê, nos inteirarmos de novidades que temos urgência em sabermos antes que se tornem antigas na próxima hora, ouvirmos canções de amores perdidos-encontrados e conversarmos com pessoas do outro lado mundo, enquanto o próximo ao seu lado está sendo sonoramente ignorado.

Há alguns anos, ao estar ouvindo o noticiário matutino pelo celular, com os fones de ouvido enterrado nos ouvidos, fui facilmente furtado da minha carteira e de outro celular por um heterogêneo bando de mulheres dentro do ônibus. Foi um perfeito trabalho de equipe – enquanto uma das moças impedia que eu avançasse (uma baixinha que mal alcançava a barra de cima) outras duas se assenhoravam do conteúdo da bolsa de couro que usava para ir à faculdade.

Logo que fizeram o serviço, desceram rapidamente, deixando uma bem vinda clareira na área em meu entorno e na minha bolsa. Com certeza, teria percebido a movimentação estranha se estivesse com meus sentidos em alerta. Enquanto recebia notícias dos tumultos na França, a ação perniciosa de algumas pessoas tumultuava a minha vida.

Outro dia, mais recentemente, ao tentar descer no meu ponto, solicitei ao rapaz à minha frente, em voz alta, que me desse passagem. Como ele não se movimentava, toquei em seu braço como se a minha vida dependesse daquela oportunidade e ele me olhou com a expressão de quem estivesse sendo agredido por um monstro. Percebi, de imediato que ele estava com fones de ouvido. Os dois ou três segundos que se passaram nessa “conversa” de sensações, foram o suficiente para que o ônibus fechasse as portas e, célere, saísse em seguida para aproveitar o semáforo sinalizado em verde. Desci apenas no ponto seguinte.

Fiquei plenamente desconcertado com a situação. Na época, havia deixado de usar dos fones de ouvido, desde o furto que sofrera. Ajudou-me a decidir admoestações da minha mulher, que se sentia ofendida com a minha “ausência”, mesmo quando estava em casa. Por um tempo, abri mão daquele instrumento. Voltei a usá-los mais assiduamente nos últimos anos, desde que deixei de atender clientes no tempo devido em algumas ocasiões. Para meu desgosto.

Ao empregarmos o tempo ocioso dessa forma, nos distanciamos do mundo real… ou do que chamamos de mundo real, que eu traduziria livremente como a arena em que jogamos as nossas individualidades. Como contraponto, podemos começar a exercitar a conversa “ao vivo” com quem esteja presente, ali, do lado. Porém, quem se permitiria ser invadido dessa forma por um desconhecido?

Sentidos

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Ver não é enxergar…

Em um acidente tão prosaico quanto difícil de explicar, prendi os dedos da minha mão esquerda na porta, exceto o polegar. Como o meu próprio corpo a impedisse de ser aberta, pois eu estava sendo pressionado contra uma estrutura, fiquei quase um minuto a sentir a pressão de oitenta quilos sobre as quatro falanges até que fossem liberadas. Felizmente, não quebrei nenhuma delas, mas perdi a sensibilidade na ponta do dedo anular. Espero que momentaneamente. Nada tão sério quanto a falta da mão esquerda de um companheiro de mergulho com o qual conversei à respeito da dor fantasma quando ganhei a sua admiração pela destreza em pegar jacaré nas ondas da praia onde estava.

Apesar de insensível ao toque mais delicado, essa ponta de dedo sente frio e calor. Não está roxa, sinal que apresenta circulação. Simplesmente, parece um território estrangeiro a ocupar um pedaço do outro – Base de Guantánamo em Cuba. O anular esquerdo não tem deixado de me ajudar nas tarefas. Agora mesmo, estou a utilizá-lo para escrever no computador, porém isso me fez pensar sobre como sistema sensorial desempenha a intermediação entre o nosso corpo e o mundo exterior.

Os sentidos oficialmente reconhecidos são cinco, alguns mais ou menos utilizados, a depender de cada um. Os olhos são os que mais se destacam na compreensão da realidade pela maior parte de nós. No entanto, pessoalmente acredito que a visão seja o mais enganador dos sensores para revelá-la. Por exemplo, o olhar pode vir a gerar uma paixão, mas será o tato a estabelecer a verdadeira interação entre os corpos dos apaixonados. Como se apregoa por aí, se não “rolar química”, não prosperará. O tato, em quem não enxerga, é outra forma de ver.

O que vemos nos comove de imediato, porém, será o cérebro a interpretar o que enxerga. O cérebro educado em uma determinada cultura, ideologia ou religião, transformará a visão de um corpo nu, por exemplo, em objeto de culto ou perversão, de poder ou queda, subjugação ou liberdade. Afora a avaliação de possíveis qualidades físicas padronizadas de fora para dentro. Os corpos fragmentados de Picasso causam fruição artística, as deformações físicas reais podem vir a causar repulsa ou compaixão. O ideal é que nos libertemos da visão como meio de revelação do sentido da vida.

Quando ao olfato, descobri a sua dimensão quando, em certa ocasião, estava passando por algum processo infeccioso, talvez no fígado. Fiquei com esse sentido bastante estimulado. Percebi como os cães e outros animais, além dos deficientes visuais, são eficientes em “enxergar” o que não veem. Ao dobrar uma esquina sabia que encontraria o vendedor de abacaxi logo adiante. Tinha consciência do momento exato em que minha mãe fazia café, em outra casa do lado da minha, separada por dezenas de metros, paredes e compartimentos. Após ter o meu problema solucionado, perdi esse superpoder, mas não me esqueço até hoje como era impressionante enxergar pelo nariz.

Os odores exercem um forte estímulo apreciado ou não, a depender de sua origem e força. Cada vez mais tentamos reproduzir cheiros naturais para simulá-los ou substituí-los. Até simulacros de feromônios, que no passado nos auxiliavam no processo reprodutivo, hoje é utilizado para ajudar na atração sexual. A sexualidade, cada vez mais valorizada, tem sido encarada como expressão da individualidade entre os humanos. Não apenas o olfato, mas todos os outros sentidos são propagandeados como intermediadores para estimular o consumo em torno dessa força primeva.

Assim como é poderosa a atração que exerce o cheiro da comida. Quase associado ao olfato, o paladar é um sentido em torno do qual a cultura do alimento ganhou espetacular complexidade por se tornar um dado cultural humano, além de ser a maneira que primordialmente usamos para repor energia para o funcionamento do nosso organismo. Organizamos verdadeiros eventos e templos para consumirmos alimentos líquidos e sólidos. Certamente, vivemos e morremos pela boca.

A audição detém uma tremenda importância nas relações humanas e de outras espécies animais. O som se propaga no meio físico em frequências e ondas e apresenta outras tantas características, que talvez transformasse em artigo científico uma simples pincelada sobre os sentidos. Reconhecido como fonte emanante de poder desde sempre, o Som, na Bíblia é apresentado como o próprio Deus – “No princípio, era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”. Não é à toa que muitos de nós, escritores, que lidamos com as palavras, carregamos certo complexo de grandeza por poder criar e destruir em seus textos.

Os Hindus acreditam que se conseguirmos nos conectar com o som primordial do UniversoOM ou AUM– alcançaremos sintonia com a frequência existencial sublime. De alguma forma, todos nós percebemos o quanto o som pode alterar o nosso humor. Isoladamente ou aliado ao verso – a Música – uma das criações artísticas mais importantes do Homem. A fala é a forma de comunicação mais direta e mais utilizada por nós. Porém, é comum ouvirmos apenas o que queremos e frequentemente interpretarmos de maneira discrepante o discurso da mesma fonte, ainda que seja na mesma língua.

Para terminar, faço alusão aos chamados sentidos extra-sensoriais, de acalorada discussão entre defensores e contrários. A ter como exclusiva a base científica experimental, do modo que a concebemos, eles são refutados. Contudo, ao longo da História humana são utilizados como justificativa para explicar razoavelmente certas apreensões da realidade, principalmente para uma grande parcela das pessoas. Eu, pessoalmente, acredito piamente no sexto sentido feminino. As mulheres costumam sentir-cheirar-ver-tocar-degustar de longe e previamente algumas situações…