BEDA / Ratos Errados

RATOS ERRADOS

Estamos caçando os ratos errados. Fabricamos ratoeiras para ferirmos de morte mamíferos inteligentes e sociáveis. São considerados danosos porque vivem em ambientes inóspitos. Sobrevivem, carregados de doenças, dos quais são vetores. Seus espaços de atuação são os bueiros de ruas, esgotos de rios, túneis no chão, buracos de paredes de moradias pobres, vãos de casebres, residências malconservadas de outros mamíferos sociáveis – nossas cidades. Supostamente mais evoluídos, igualmente adaptados às más condições de vida, os seres que as habitam levam a desvantagem de raciocinarem. Comparam-se entre si. Sabem que há mamíferos que não precisam roer restos para sobreviverem. Estes são, aliás, fornecedores de restos para muitos dos demais.

Os ratos errados se sentem mais seguros à noite, quando o sol se põe e a luz quente deixa de banhar os corpos dos mamíferos errantes, muito mais ativos durante o dia. Os diaristas, buscam trocar a energia de vida que tem por víveres e meios e modos que os identificam como iguais-desiguais de peles multicoloridas, protegidas dos olhares uns dos outros por coberturas multifacetadas. Artifícios que os distinguem. Enganam em vez de esclarecer. São muito mais ladinos que os ratos errados, porque agem com má intenção quando querem sobrepujar os outros mamíferos com os quais competem. O sistema que os une, trabalha para que se desunam. Cria contradições para que se percam em explicá-las. Esforço extra e inconcluso.

Encimando os degraus de todos os mamíferos – os errados e os errantes – existem os que se consideram especiais. Interferem em todas estâncias. São os patrocinadores dos degraus e da degradação. Se quisessem, poderiam limpar os ambientes, salvarem os rios, evitarem os desperdícios, melhorarem a convivência, aprimorarem o conhecimento, sanearem as mentes. Ganhariam todos os ratos. O desejo dos ratões é que tudo continue com está, como se fosse vontade divina. Alardeiam que há ratos santos e diabólicos ratos, porque não comungam dos mesmos guinchos e chiados, sem deixarem a descoberto que são agentes da discordância, onde fazem imperar seus dentes afiados.

Que sejam culpados os ratos errados, que os matemos. As ratazanas nos iludirão com uma guerra que não existiria se cumprissem a missão que lhes foi confiada pelos ratos menores. Roedores da esperança, lhe aprazem passear seus compridos rabos entre palácios e limpos saguões, encastelados em confortáveis ninhos, construídos sobre os escombros da decência.

BEDA / Elton

Chamarei este texto de “Elton”, mas poderia ser chamado de Fred, Cazuza, Renato ou George. Em comum, nomes de pessoas conhecidas como artistas da música popular. Em comum, além da exposição midiática de suas vidas e vísceras, a criatividade, o talento para determinada função, o abuso no uso de substâncias químicas, a extremosa paixão que geraram. O mesmo vigor que empregaram para produzir momentos que marcaram gerações de fãs foi da mesma gênese que levaram a quase todos a nos deixarem mais do cedo do que gostaríamos, egoístas sugadores de energia que somos.

Insone, passei parte da madrugada a ver clipes musicais. Vivo no meio musical, a dar suporte técnico para as apresentações de artistas – instrumentistas mecânicos e vocais – músico frustrado que sou, se bem que não tenha perseverado a tocar ou cantar. Apesar do dom (no meu caso, pequeno), chama inicial que tem exercitada – a vocação – nada é tão fácil que não mereça treino, aperfeiçoamento, prática e disciplina, tudo em favor da melhor expressão possível.

A minha vontade sempre foi volúvel. E, cedo, os vários possíveis talentos que talvez tivesse, maiores e menores, foram sendo deixados de lados a favor da vontade de escrever. E, mesmo essa, coloquei em segundo plano em algum momento da minha vida. Ao voltar, percebi que a falta do exercício da escrita me conduziu a enganos – troquei a revelação da minha verdade pelos truques fáceis que podem até vir a seduzir, mas nem sempre eram autênticos – ou quase nunca.

Os temas que explorei durante a madrugada foram a ser sugeridos pela causalidade. Tento fugir das indicações normalmente ditadas por nossas preferências, perfeitamente captadas pelo sistema que nos vigia na Internet, mas logo vim a recair nos meus preferidos – Bowie, Prince, Clube da Esquina, Elis, Cohen… Tanto quanto os que citei anteriormente, a maioria destes nos deixou precocemente.

Em determinado momento, surge como sugestão a “Don’t Let The Sun Go Down On Me”, na versão ao vivo, trecho do show de George Michael em que convida o autor da música, Elton John, a cantar junto com ele, em uma apresentação climática, em atuações vocais e instrumentais memoráveis. A sugestão surgiu justamente porque David Bowie, Leonard Cohen, Prince e o próprio George Michael morreram em 2016. Todos viveram muito todas vibrações de seu tempo, ainda que a maioria tenha morrido cedo.

A idade, em muitos casos, é apenas relativa a referendar a experiência de alguém. Há pessoas intensas que conseguem, com galhardia, aglutinar em si, as riquezas de processos vitais, a encetar lutas pessoais e se colocar à frente de combates coletivos e a favor de bandeiras libertadoras. No entanto, para tantas outras, é comum ocorrer o contrário. Brigar por espaço para a sua expressão, se expor corajosamente por um comportamento alternativo, refirmar a sua sexualidade, pode ser demais para as suas estruturas psíquico-físicas. Cedo ou tarde, cedem às pressões e queimam em praça pública.

O que não aconteceu com o querido Elton John. Ele esteve por terras tupiniquins no mês de março de 2018, quando completou 70 anos de idade. Sobreviveu ao pico da disseminação do vírus HIV, passou ao largo da metralhadora giratória que dizimou os melhores nomes de seu tempo, por abuso químico ou doenças graves. Sobreviveu à geração que preferiu “viver dez anos a mil do que mil anos a dez”, à sedução de “viver rápido e morrer jovem”.

Aquele que foi uma grande influência musical do jovem que começou a prestar atenção aos temas internacionais, depois dos Beatles, Frank Sinatra, Ray Charles e Nat King Cole (sim, o menino da Periferia era muito metido aos 12), continua ativo e produtivo. Eu e minha mulher fomos assisti-lo, com show de abertura de James Taylor, outro sobrevivente. O Poder Velho, na sua melhor definição, tomou conta de todos os espaços do estádio e arrebatou a platéia, que viu o final da apresentação debaixo de chuva torrencial. Lavou a nossa alma…

Projeto Scenarium 6 Missivas | Setembro – 18 | Sem Destino

Manuscrita
Pessoal e intransferível

Esta carta não será enviada às mãos a quem é de direito. De antemão, sei que será impossível. Por trama do Destino ou desígnios da Deusa Lua, com a qual flerto com o lado escuro, estas palavras não chegarão a sua destinatária. Portanto, posso fazer confissões protegido dos olhos de quem não as lerá…

Começo por declarar que sim – eu a amo. Sei que também me ama. É um amor impuro – seria de outra maneira se permitíssemos jogarmos-nos em nós, se nos atirássemos do alto de nossos medos, enfrentássemos as nossas resistências. Mas, não. Estamos separados pela fidelidade. Somos fiéis aos nossos companheiros, infiéis aos nossos sentimentos. Estamos a perder a chance de nos sujarmos de prazer. Ganhamos a constância da sensaboria, no entanto, sem a limpidez da consciência.

Quando nos encontramos, envergamos sorrisos tímidos. Ladeados por nossos pares, lutamos contra a força magnética que nos impulsiona um a favor do outro, contra nossas vontades. Beijos protocolares nos rostos, roçar de peles que se pudessem ser visualizadas de perto testemunhariam pelos eriçados a se tocarem invisivelmente ponto a ponto. Por milésimos de segundo, sentimos dissolver nossos corpos um no outro.

Como para nós nosso amor pareça ser tão óbvio, tentamos passar tanta naturalidade quanto se a nossa vida dependesse disso. Sei que, como eu, idealiza fugir de tudo e de todos, da mesma forma que nos arrependemos, imediatamente após, daquele futuro imaginário em que ficaríamos sem nossas famílias, nossas casas e nossos amigos.

Sabemos de conhecidos que são amantes, que se divertem despreocupados com os seus desejos atendidos em momentos fugidios, em hora de almoço ou expedientes estendidos. Mas não seríamos nós, que nos sabemos amadores. Amamos nossos companheiros, nossa vidinha vulgar, nossas rotinas de férias programadas… Somos covardes?… Ou apenas sensatos mentirosos?… Provavelmente, um resumo de tudo isso.

Alguns diriam que isso não é amor. Que é somente vontade da carne, como o desejo de ir a uma temakeria de vez em outra – variar de sabor, sentir o gosto do proibido. Sei que não é simplesmente isso porque, se soubesse que morreria amanhã ou se soubesse que você partiria em hora marcada, seria ao seu lado que desejaria estar. Talvez, até partíssemos juntos, mártires da banalidade moral…

Projeto Scenarium 6 Missivas | Setembro – 18
Adriana Aneli| Maria Vitória | Mariana Gouveia | Lunna Guedes