BEDA / Scenarium / O Outro

A apresentação pública que faço de mim é a de alguém que se identifica com a defesa do humanismo voltado para a transcendência, visando a proteção do ecossistema e o respeito aos outros seres que convivem conosco na biosfera. Fora dessa perspectiva, quem defende ideias diferentes me ofende profundamente. Cheguei a me imaginar como um antípoda ao que preconizei acima como exercício de compreensão daquele que se me opõe. Em tese, conseguiria fazê-lo. Eu os encontro em meu círculo familiar, entre colegas de trabalho e nas minhas redes sociais.

Estabeleci como elemento de desordem o “outro”. Conquanto o meu ponto elementar de desequilíbrio seja eu mesmo, quis alcançar àquele que me desorganiza externamente. Dizer simplesmente que “o inferno são os outros” não seria suficiente. Eu me pus a identificar quais falas e atitudes do outro quebram a minha homeostase. Ainda que passeasse por zonas sombrias do meu ser, ao olhar para o abismo tenho certeza de que voltaria à minha posição inicial. Suposição incrível para alguém que refuta por entendê-las como indício de loucura.

Seria mais fácil criar uma personagem que se colocasse como porta-bandeira do obscurantismo, do desconhecimento, da misoginia, da homofobia e do racismo; que fosse elitista, antidemocrática e entendesse o poder econômico como hegemônico, colocando-o acima da necessidade de atendimento às demandas sociais. Mas na vida real essa personagem já existe. Na verdade, foi eleita como representante incondicional de pelo menos um terço da população que se amolda ao que seja conveniente no momento ou que simplesmente acompanha a manada — do país onde nasci e vivo. Percebi que defender o indefensável seria impossível. Ir contra as diretrizes que considero o melhor para a maioria das pessoas e para mim, me paralisou.

Tenho frescas em meus ouvidos as últimas notícias do atual desgoverno — o fogo a se alastrar por grande parte do território brasileiro; a mortandade pela Covid19 de centena de milhar das pessoas menos protegidas pelo Estado; o desmonte da estrutura que manteve os índices sociais razoavelmente estáveis nos últimos anos, a exemplo do SUS e dos projetos de inclusão; o ataque direto à cultura, como o feito à Cinemateca Brasileira onde todos os funcionários especializados na preservação do importante acervo audiovisual nacional foram demitidos. Como é que conseguiria me colocar no lugar de alguém que defende práticas tão perniciosas, de viés fascista; que promulga por decreto o genocídio do brasileiro comum e o etnocídio que solapa a identidade cultural indígena?

Quando surgiu o movimento de extrema direita que assumiu o comando administrativo do Brasil, eu me surpreendi com a quantidade de defensores dessa visão de mundo que se opunha brutalmente à minha. Artistas com os quais trabalhava (principalmente, músicos) não deveriam se colocar em sentido inverso ao que era propagado pelo candidato? Assumiriam a faceta que propunha retrocessos políticos e agitariam bandeiras retrógradas em termos sociais?

Ser esse outro não é apenas olhar para o abismo, mas mergulhar na lama primordial da qual foi gerada a vida eu me tornaria uma ameba. Não teria de onde retornar, a não ser depois de milhões de anos de evolução. Prefiro morrer para esta vida a reviver por inteiro o drama de nosso desenvolvimento: voltar a ser um primata que lutará pela vida na floresta; até vir a encontrar o monólito que me tornará o primeiro ser humano; inventar os instrumentos de sobrevivência da espécie; participar da luta pelos espaços; instaurar grupos homogêneos como plataforma de expressão coletiva; desenvolver civilizações; guerrear contra os inimigos; trucidar oposições; formar países; escravizar povos e estabelecer ideologias hegemônicas como forma de dominação do outro…

Será que não podemos aprender com o que já vivemos em nossa história e deixarmos de praticar ações perniciosas contra nós mesmos e contra os outros seres com os quais coabitamos? Ou estamos condenados a reviver todos os dias mesmos dolorosos ciclos até o final dos tempos — um déjà vu em moto-contínuo?

Quase peço ao sol que antecipe em bilhões de anos a explosão que extinguirá os planetas ao seu redor, incluindo a nossa pequenina Terra. Porém, sei que é egoísmo da minha parte. Quem sabe as novas gerações modifiquem o nosso percurso atual e transformem Gaia em um planeta redentor?

Cena de 2001 – Uma Odisseia No Espaço – encontro do monólito pelos macacos.

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Lunna Guedes

BEDA / Scenarium / Viver

Viver
O choque do meu corpo com o frio da manhã
me faz ressoar ranheta
e arrepia a minha pele quente
de mamífero…
Expilo pelo nariz
restolhos liquefeitos
em decomposição
e respiro…
Conquanto
saiba de nossa transitoriedade
e impermanência física,
acredito em nossa transcendência
como Seres,
contra todos os prognósticos…
Ainda que assoe mais excrementos,
estou a sentir que mentimos substâncias
contingentes,
enquanto vivo a nossa verdade atemporal…

B.E.D.A. — Blog Every Day August

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Lunna Guedes

BEDA / Scenarium / O Regresso*

Foto por Lisa Fotios em Pexels.com

A chefe de redação me designou para fazer uma matéria sobre Tarot. Sabendo que eu era avesso a jogos de adivinhações e sortilégios, achou que seria interessante contrapor a minha descrença a algo que ela acreditava. Na verdade, ela cria em Madame Blue. De antemão, a consultou antes sobre a reportagem em que submeteria seu trabalho a um escrutínio materialista. Madame Blue não apenas aceitou como se sentiu especialmente impelida a demonstrar a conexão com o intangível para um céptico. Eu, por meu turno, adoro um desafio e lá fui encontrar a velha senhora que consultava em uma casa em Moema, numa dessas ruas com nome de pássaro.

A linda residência era uma das muitas da região que ainda não havia se transformado em espaço comercial, se bem que eu considerasse essa coisa de jogo de Tarot uma atividade que visava arrancar dinheiro de incautos. Apertei a campainha e me atendeu um homem alto e bonito, um tipo africano com a tez negra como a noite sem luar. Anunciou-se como Maurice e me levou até a sala onde Madame Blue já me esperava. Não se tratava de uma velha senhora, porém uma mulher que devia ter a minha idade, uns 35 anos, se tanto. Seu nome se fazia entender pelos profundos olhos azuis que me fulminaram assim que entrei.

Sem dizer muitas palavras, me pediu para sentar e que tocasse as Cartas do Destino, as embaralhasse, as dividisse e as reagrupasse. Após o que sacou uma a uma  ̶  “Mundo, Temperança, Sacerdotisa, Carro”. O que significava? Segundo Madame Blue, o retorno de uma mulher de minha vida que se afastara no tempo. Normalmente, eu não ligaria para aquele presságio, se não fosse o tom estranhamente grave empregado pela atraente vidente. Durante uma pausa que pareceu bastante longa, fiquei especulando sobre qual mulher seria, dentre tantas que conhecera. Retroativamente, fiz minha memória retornar do último afeto, meses antes, até às anteriores. Meu passeio pelo passado foi interrompido pela voz de Madame Blue que me chamou até sua presença azulada. Perguntou se, após a demonstração pessoal do seu afazer, não gostaria de realizar o questionário que preparei.

Ainda um tanto perturbado com o que a vidente dissera, continuei a perscrutar a minha lista bastante grande de antigos amores. De fato, apenas uma, dentre todos os bem-quereres, eu gostaria de reencontrar  ̶  uma menina do tempo de escola que havia me tocado especialmente. Uma que, como Madame Blue, tinha o céu nos olhos. Um pouco depois, apesar de certo temor inspirado pela figura a minha frente, mergulhei no mar de seu olhar. Nesse momento, foi a bela mulher que pareceu se incomodar. Parece ter visto algo que não esperava e me senti como que atravessado, como se ela buscasse algo atrás de mim. Perguntei o que estava acontecendo. Ela respondeu que via uma estrada de terra, longa e sinuosa, através da parede. Respondi que havia uma estrada de terra como essa na cidade onde nasci, no interior de São Paulo.

— Eu a percorria para ir à escola todos os dias. A minha casa ficava em uma de suas entradas. Eu estava justamente me lembrando dela agora. A sua predição da volta de uma mulher que amei me levou de volta à Dourado  ̶  a “Cidade Coração”.

Madame Blue pareceu ficar um tanto desconcertada. Baixou os olhos e repetiu: “Cidade Coração…”.

— Sim! O pessoal da região chama Dourado dessa maneira. Ela fica no centro geométrico exato do Estado.

— Você amou uma moça de lá?

— Não amei… Eu a amo. De certa maneira, o que disse sobre a volta de uma mulher importante me fez pensar a respeito. Dentre todos os relacionamentos que tive, apenas o que senti por minha vizinha de sítio valeria a pena reviver. Era um amor puro. Éramos muito jovens. Praticamente crianças. Mas foi tão intenso… Foi por causa dela que comecei a escrever. Quando vim para São Paulo, trocamos algumas cartas, porém fui me desfazendo dos meus laços com Dourado. Quando voltei para o funeral do meu pai, dez anos depois, Valquíria já havia partido para destino desconhecido.

Eu, enquanto falava, me ausentei de tal maneira que não havia percebido que os olhos de Madame Blue haviam se transformado em espelhos d’agua. Estranhei seu comportamento. Perguntei se estava passando mal. Ela acenou afirmativamente e perguntou se não poderíamos continuar em outra ocasião. Respondi que sim, que teríamos tempo. A reportagem estava programada para uma semana depois. Marcamos para dois dias adiante.

Na data marcada, fui recebido novamente por Maurice. Desta vez, seu rosto de deus africano estava iluminado por um sorriso indescritível. Caminhei até a sala que estava bem diferente da primeira vez que a vi. As amplas janelas estavam totalmente escancaradas, deixando a mostra um belo jardim interno. Madame Blue estava em pé, de costas, olhando para ele. Eu a chamei e ela se voltou lentamente. Sorria um sorriso familiar. O cabelo, solto e despenteado, me lembrou uma pessoa. A mesma da foto que ela me passou assim que me aproximei — me amor douradense. Ainda que tentasse me conter, meu coração desembestou feito o alazão Corisco com o qual brincávamos. Lágrimas desceram feito as cascatas do Rio Boa Esperança. Valquíria e eu nos abraçamos. Nossas bocas com gosto salgado nos lábios se embebedaram de nós. As cartas haviam cumprido sua previsão, resgatando o meu passado e inaugurando o meu futuro…

*Texto derivado do Curso de Narrativas Em Primeira Pessoa, de Lunna Guedes.

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Lunna Guedes

BEDA / Scenarium / Faria Lima

Avenida Faria Lima. Um grande número de construções espelhadas se ergueu nestes últimos anos ao longo de seu trajeto. Em 2012, registrei a imagem desta — uma enorme e misteriosa — já que ainda não havia sido inaugurada. Na verdade, e diria — obviamente — é um grande prédio comercial. O projeto manteve ao centro da área construída uma velha casa preservada — podemos vê-la refletida no teto do arco retangular da construção — como se fora uma lembrança de priscas eras projetada no túnel do tempo…

Naquela região, ficava a Chácara Itaim. O ex-prefeito, corrupto e corruptor Paulo Salim Maluf teve a excelente ideia de estender a Avenida Faria Lima por dentro de um bairro tranquilo e arborizado, habitado por antigos moradores que ali viviam há décadas. Soube que a indenização paga a eles por cada casa corresponderia, no máximo, ao valor de 5m² atualizado. Além do ganho proporcionado ao município em termos de valorização do IPTU, à boca pequena divulgou-se que antes mesmo da queda dos últimos imóveis, as áreas já haviam sido reservadas a grandes empreendedores imobiliários, provavelmente em troca de futuras benesses.

A sanha paulistana em pôr no chão a nossa memória sempre foi baseada na especulação financeira que não respeita nada. Depois do antigo Centrão ser imobilizado em sua renovação física por lei, com o intuito de ter preservada a sua história, o dinheiro buscou a Avenida Paulista e desfigurou o refúgio dos Barões do Café, com seus casarões e espaços abertos, erguendo monumentos à grandeza econômica da cidade através de torres com antenas cada vez mais altas.

A Avenida Faria Lima foi o próximo alvo. Mais uma vez, a via que homenageava o prefeito responsável por boa parte da renovação urbanística de São Paulo, nos anos 60, foi eleita como o novo centro (do dinheiro) nervoso da cidade. Inicialmente participante de várias administrações anteriores como secretário, em março de 1965 foi eleito prefeito de São Paulo, promovendo o alargamento e duplicando, dentre outras vias, a Rua da Consolação, as Avenidas RebouçasSumaréPacaembuCruzeiro do Sul e Rio Branco. O antigo militar, Brigadeiro do ar, no fim de 1968 ingressou na extinta ARENA, partido que dava apoio ao governo de exceção.

A administração de Faria Lima notabilizou-se também por outras diversas obras que priorizaram o uso do transporte individual, entre elas a Marginal Tietê, a Marginal Pinheiros, Radial LesteVinte e Três de MaioRubem Berta, além de realizações nas áreas de saúde, educação, bem-estar social, etc. Foi durante este período que o serviço de bondes foi extinto em São Paulo, em 1967. Em contrapartida, começou as obras do Metrô, em dezembro de 1968. Entre outras intervenções no trânsito de São Paulo, Faria Lima iniciou a construção de uma via ligando os bairros de Pinheiros e Itaim Bibi. Após a sua morte, em 1969, a avenida, que se chamaria Radial Oeste, foi rebatizada de Avenida Brigadeiro Faria Lima.

Como Sampa é a própria metamorfose em forma de cidade, a ponto de quem vier a se ausentar por dois ou três anos não conseguir reconhecer seus novos percursos, o atual boom imobiliário se deslocou para a Marginal Pinheiros, nas cercanias da região. O cheiro forte do rio quase parado é impedido de entranhar às narinas dos ocupantes dos novos skylines “inteligentes” de negócios, hermeticamente construídos ao longo do curso invertido do Rio Pinheiros. O espelho d’água enegrecido reflete a longa linha de balizas envidraçadas em uma direção, enquanto do outro lado as antigas comunidades aglutinadas entre áreas verdes estão sendo expulsas gradativamente. Em seu lugar, condomínios de alto padrão assumem a posição, com muros altos e privacidade garantida.

Dessa maneira, São Paulo continua sua sina de cidade dos bandeirantes violenta, avassaladora, alienante, excludente, escravizadora e devoradora de corpos e almas.

B.E.D.A. — Blog Every Day August

Adriana AneliClaudia LeonardiDarlene ReginaMariana Gouveia

Lunna Guedes