busco me encontrar em você que está onde? onde eu me encontro em você? observo às formigas que se reúnem em torno de sua saliva que despencou da boca molhada sou como elas tentando beber de suas afluências carnais sou como a paleta do pintor plena de cores de meu pincel a jorrar na tela entre sucessivos solavancos que projetam veias de anil como se pollock incontrolável fosse a aspergir sêmen colorido em seu corpo de ente ser pessoa mulher em fuga de mim em si momento sentimento emoção violenta que lhe abençoa a existência de fêmea senhora de si em mim a perfurar rasgar-me feito faca cega que me mata me renova em revolucionários movimentos de subversão múltiplas versões de nós espelhares — tesão teso peso uso confuso escuso difuso intruso abuso de poder vil sem saídas apenas entradas e bandeiras morte de etnias da terra nova dominação e danação em invasões de tabas arrasadas não é amor é horror de querer tanto que se quer partir e partir-se em pedaços e espaços onde você ocuparia toda a extensão de vazios e nadas por onde descaminho perdido em viagem interrompida pela via láctea derramada de flores florestas de estrelas frias e solidão…
Tudo me fazia lembrar de você. Em cada canto, uma recordação de prazer ou de dor. Um gesto gentil, um olhar raivoso. Em nosso quarto, a cama era o centro do mundo. O lugar onde encontrava o homem carinhoso e o animal selvagem. Confusa, havia momentos em que eu não sabia quando você era um ou outro. Eu o amava, mesmo assim… ou pensava que o amava por ser assim. A minha pele arrepiava ao som da sua voz calma. O meu coração saltava à emissão do seu tom mais áspero. Quando você sorria, eu me enlevava. Sentia o meu sangue borbulhar como se aquecesse a cem graus ao seu toque suave. As suas mãos fortes me manipulava como se eu fosse um mamulengo, se servindo de mim como queria. E como eu queria. Mas eu pensava que fosse a única. Que tinha a exclusividade de seus beijos, do seu lado manso e tempestuoso, que apenas aos meus ouvidos você dizia amar. Quando finalmente soube de tudo, estabeleci que a minha missão era esvaziar a casa — de suas coisas, de você! Decidi que cada átrio e cada ventrículo, valvas, entradas e saídas, veias e artérias despejaria fora o sangue que fazia o meu coração bater por você. Decidi que lavaria a minha pele quantas vezes fosse necessário para limpá-la do desejo da sua pele. Que esta mulher alcançaria a liberdade de ser sem precisar de ninguém para me validar. Deixarei que o tempo descasque a pintura da casa, que faça o jardim perder o viço, que as janelas fiquem fechadas… por um tempo. Até que as suas dependências venham a esquecer a sua presença solar. Abandonarei a minha casa à paz da escuridão e do luto. Mas um dia, eu a reformarei…
enxerguei a bituca sem filtro grudada na soleira eu a agarrei e a acendi a fumaça ainda que tênue meu pulmão recebeu como a uma querida amiga antiga nunca esquecida morto de sede absorvi as últimas gotas do copo abandonado na mesa do bar me senti embalado pelo odor remanescente do álcool todos os anos de abstinência que me impus se desvaneceram sob o império do vício nunca debelado ainda que não trocasse palavras invocasse verbos que estivesse sem elos aparentes compartilhei da agulha do adicto solidário inoculei para dentro das veias a dor bela e mortal de perder-se a invasão do mal me alegrou eu aquele que está à beira da morte me senti o ser mais vivaz o gosto de sangue vampiro retirado e arrependido arremeteu em minha boca – voltei a beber voltei a matar… bastou reencontrá-la bastou beijá-la…
Coração transplantado procurando resquícios do que já foi humano (Lua Souza)
Escultura de Paulo Da Luz (Paizdalu)
Comecei a ficar cansado por qualquer esforço que fazia. Frequentemente, o ar me faltava. Com os irmãos fora do País, separado da Sônia há alguns meses, meus filhos longe de mim, já casados, não tinha ninguém com quem me queixar – meu passatempo favorito. Devido ao meu típico mal humor, nem meus amigos de copo me aguentavam mais.
Já aposentado, eu me restringia a torcer por meu time em jogos na TV. Antes, uma das minhas poucas diversões era ir ao estádio para xingar Deus e o mundo – do juiz aos jogadores, passando pelo técnico. No meu antigo trabalho, no escritório da transportadora, era conhecido pelo meu rigor no trato dos caminhoneiros, que eu julgava complacentes e indisciplinados. Para faltarem à lida, era sempre algum problema familiar, um filho doente, a mãe que morria, uma esposa que arranjava outro pelas seguidas ausências do marido…
Sônia, nesse aspecto, teve bastante paciência. Aguentou o quando pode a minha animosidade. Quando me aposentei, ela disse que não suportaria conviver cotidianamente comigo em casa. Decidiu voltar para a casa da mãe, que estava doente, para cuidar dela. Aproveitou para pedir separação. Agora esse cansaço, dores nas costas, respiração ofegante. Criei coragem, pedi um transporte e me dirigi ao hospital do bairro.
Fragilizado, mal tinha forças para reclamar do atendimento, mesmo porque fui bem atendido. Os enfermeiros, atentos, ouviram as minhas queixas. Apesar de relutar, fui colocado numa cadeira de rodas e levado para ser atendido por um médico. Solicitado um eletrocardiograma, além da anamnese médica, verificou-se que eu estava prestes a ter um infarto. Mais tarde, com exames mais apurados, me foi revelado que o velho coração não duraria muito mais tempo funcionando. Para sobreviver, teria que fazer um transplante.
Ainda que não quisesse, avisei à Sônia do meu estado. A minha ex-esposa prontamente chamou a sua irmã para substituí-la no cuidado da mãe e voltou para São Paulo. Foi ao hospital e me encontrou alquebrado de tal maneira que quase chorou. Quando chegou, me abraçou, me chamando de “meu turrão”.
Pedi desculpas por tê-la feito deixar a mãe doente. E por demonstrar tanta aspereza no nosso casamento. Que busquei ser um pai sempre presente e um marido que trabalhou duro para trazer conforto à família. Que tinha sorte por tê-la conhecido e dela ter me aceitado como companheiro.
— Para de falar, como se fosse morrer hoje. Antes de entrar, conversei com o Dr. Ângelo. Você ainda vai me perturbar bastante antes de partir desta para melhor… Vai precisar se cuidar para manter o seu coração batendo enquanto espera um coração novo. Vou ficar de olho!
Eu estava com saudade dessa maneira dela falar comigo. Sincera e direta. Quando começamos a namorar, disse que eu não era um homem bonito, mas também não era feio. Que beijava bem. Mas era um sujeito turrão. Eu respondi que tive que assumir a casa bem novo, depois da morte do meu pai. Que havia começado a trabalhar cedo. Sem chance para me sensibilizar.
Como começamos a namorar adolescentes, a Sônia me acompanhou no auxílio à minha mãe. Deixei de estudar, mas estimulei os meus irmãos a se formarem na faculdade. Hoje, são homens de sucesso. Assim como os nossos filhos. Talvez tenha custado uma convivência mais prazerosa com a família. É bem possível que a minha atitude tenha sobrecarregado o meu coração, que acabou por retesar as suas fibras.
Com o coração transplantado, procurarei buscar resquícios do que já foi mais humano em mim… Tentar reencontrar o menino que chegou a ser feliz antes de papai se ir pelas próprias mãos. Quem sabe tenha a chance de uma nova vida? A oportunidade em que eu não seja mais chamado de Homem de Lata.
dobramos as esquinas na penumbra da cidade abandonada escorregamos por entre as fendas da solidão em desencontros abrigados da chuva ácida nos olhamos em profusão de raios e trovões da tempestade elétrica que nos iluminava os lados escuros dos rostos cegos de mais ninguém a lua quase apagada deixava um rastro de silêncio não ouvimos as vozes que nos alertavam não se amem não se queiram a lei proíbe por contenção de desejos os supremos nos observam vendem vendas para que durmamos alheios da claridade que o amor proporciona a clareza da dor a imensidade da percepção a profundidade do querer avançaremos sobre as muralhas escorregadias da lama que escorrem do alto dos gabinetes dos governantes do caos senhores das benesses vendedores das necessidades dos seres perdidos este mundo apesar de tudo já foi melhor ou melhor achávamos isso tudo acontecia ao derredor as dores os sofrimentos sempre no plural insidiosos perfurantes algozes menestréis do mal anunciavam que viúvas aportariam às praças que mães chorariam nas escadas que as portas se fechariam aos amores que as crianças não sobreviveriam nos apaixonarmos é uma revolução um não ao não se mais nada restar seremos amantes deuses de cada dobra escura…