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    Etiqueta: arqueólogo

    B.E.D.A. / Grades

    Faculdade de Medicina da USP / Avenida Dr. Arnaldo (2014)

    O que alguns poderiam interpretar como uma sobreposição de grades em uma entrada, eu vejo como se fora um arqueólogo vestígios de concertos sociais de priscas eras, os escombros de um estilo de convivência que não temos mais. O gradil de fora representa um tempo que bastava um muro ou um portão baixo para delimitar uma área e restringir a entrada de alguém. Servia mais como efeito mental e era regularmente respeitado. O gradil de dentro advêm um tempo em que as delimitações físicas tem que parecer inexpugnáveis e, mesmo assim, não bastam.

    Morando na Periferia desde menino, tínhamos que acordar cedo para irmos até outro bairro estudar. Via chegar engradados com verduras, frutas, garrafas de leite e outros itens alimentícios para abastecer o mercadinho da esquina. As casas não tinham muros altos. Nos quintais quedavam espalhados brinquedos, utensílios domésticos e apetrechos do lar, ao alcance da mão. Ninguém ousava pegar o que não era seu. Pobreza havia.

    As casas eram abastecidas por poços artesianos e ninguém fazia conta que uma ou outra pessoa carregasse um leve odor de fumaça, devido à lenha usada para fazer comida ou esquentar a água para tomar banho de canequinha, como aconteceu em nossa casa durante anos. Com o crescimento do bairro, com mais e mais habitantes chegando, o perfil da população foi se alterando, juntamente com o esgarçamento do tecido social. Se antes a fome era enfrentada com o consumo da horta caseira, plantas frutíferas, como bananeiras ou dos ovos das galinhas que qualquer família tinha no quintal, a ocupação de menores espaços com o maior número de pessoas favoreceu para que o antigo estilo de vida se extinguisse.

    As conversas de vizinhos com cadeiras nas calçadas ao entardecer, os jogos de dominó e carteado nos churrascos, as peladas nas ruas de terra da criançada, jogos de bolinha de gude, de tacos, pega-pegas, queimadas ou pique-esconde, os bailinhos de sábado em salas e garagens, as missas de domingo, as quermesses e tantas outras oportunidades de integração social foram se retirando da cena paulistana ou se transformando de tal maneira que ganhou a configuração de pastiche quando se apresentam na atual vida urbana.

    As casas e edifícios de portões e muros levantados até impedir que o crepúsculo se apresente com sua luz a se espraiar pelas ruas e telhados é a marca registrada da “evolução” de usos, costumes e arranjos arquitetônicos de nossa sociedade moderna. Crianças nas ruas é sinal de perigo. As grades cobrem entradas e janelas. Câmeras de vigilância apenas confirmam a violência crescente. Estamos presos a um sistema econômico que preconiza a busca de um ideal de consumo, não um ideal de convivência. As grades não são apenas exteriores, mas igualmente internas. Estamos presos por dentro e por fora e não vejo maneira de nos libertarmos.

    Participam do B.E.D.A.:
    Lunna Guedes
    Cláudia Leonardi
    Mariana Gouveia
    Darlene Regina
    Roseli Pedroso
    Adriana Aneli

    28/08/202131/08/2021 por obduliono

    A Cicatriz*

    Por conta do calor, além da falta de paciência em deixar os meus cabelos rebeldes razoavelmente alinhados, decidi raspar o teto. Os meus cabelos, com o passar do tempo, acabaram por formar um grupo revoltado, constituído por membros cada vez mais finos, que um a um, abandonaram a minha cabeça, como a prenunciar uma época em que deixarão o alto do meu corpo quase que totalmente desertificado.

    Ao fim da raspagem, Marlos — o cabeleireiro — ao passar o espelho por trás, como faz habitualmente quando faz um corte, foi revelada a velha cicatriz. Como um arqueólogo que descobre uma nova pedra de roseta que em vez de uma escrita, apresentava apenas uma linha, que fez relembrar uma história inteira. A origem daquela cicatriz foi como um mergulho nas águas dos tempos, mais precisamente (ou imprecisamente?), aos meus cinco ou seis anos de idade quando, minha família e eu, vivíamos na Penha.

    Morávamos na parte de baixo da casa (ao qual chamávamos de porão) da minha Tia Raquel e Tio Zé Gomes, alugada por eles. Devia ser muito conveniente para os meus pais, pois a fábrica de componentes flexíveis para carros dos meus tios, na qual eles trabalhavam, ficava no mesmo terreno. Não sabia, então, que essa “facilidade” de certa forma escondia uma guerra surda no espírito de meu pai, que se sentia extremamente dependente dessa situação em que família e ganha-pão se misturavam de maneira promíscua.

    Quanto a cicatriz adquirida, eu diria, de forma simplificada, que se deu por causa de ciúme entre irmãos. Certa ocasião, os meus tios e primos viajaram e os donos da casa permitiram que nós pudéssemos, durante as noites que passariam fora, assistir à televisão de muitíssimas polegadas os programas favoritos da época. Para uma criança tudo é muito maior, porém em confronto com a nossa de 14″, a diferença era memorável. A simples existência de uma sala de televisão, com amplos sofás e distância adequada, sem improvisação de cadeiras ou camas para sentar deixava que nos sentíssemos em um mundo novo de conforto.

    No último dia de nossa imersão, pedi para o meu pai me levar de cavalinho, como ele fazia com o meu irmão menor. Já devia ser pesado demais para isso, mas ele acedeu graças a minha insistência. Para irmos até a parte de baixo da casa, tínhamos que descer uma escada composta de ladrilhos que, devido à uma chuva fina, estava por demais escorregadia. Ao final dos últimos degraus, o meu pai escorregou e eu acabei por bater a minha cabeça. Muito sangue e choradeira depois, curativos e dengos me acalmaram naquele momento e por anos.

    Os meus cabelos cresceram o bastante para soterrar a lembrança marcada por aquele fato, no entanto sobrou o consolo da cicatriz que me fez lembrar de um momento de carinho do meu pai, que quis atender os reclamos chatos de um menino enciumado. Doeu, mas valeu!

    Texto de 2013*

    17/09/202021/08/2021 por obduliono
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