O que alguns poderiam interpretar como uma sobreposição de grades em uma entrada, eu vejo como se fora um arqueólogo vestígios de concertos sociais de priscas eras, os escombros de um estilo de convivência que não temos mais. O gradil de fora representa um tempo que bastava um muro ou um portão baixo para delimitar uma área e restringir a entrada de alguém. Servia mais como efeito mental e era regularmente respeitado. O gradil de dentro advêm um tempo em que as delimitações físicas tem que parecer inexpugnáveis e, mesmo assim, não bastam.
Morando na Periferia desde menino, tínhamos que acordar cedo para irmos até outro bairro estudar. Via chegar engradados com verduras, frutas, garrafas de leite e outros itens alimentícios para abastecer o mercadinho da esquina. As casas não tinham muros altos. Nos quintais quedavam espalhados brinquedos, utensílios domésticos e apetrechos do lar, ao alcance da mão. Ninguém ousava pegar o que não era seu. Pobreza havia.
As casas eram abastecidas por poços artesianos e ninguém fazia conta que uma ou outra pessoa carregasse um leve odor de fumaça, devido à lenha usada para fazer comida ou esquentar a água para tomar banho de canequinha, como aconteceu em nossa casa durante anos. Com o crescimento do bairro, com mais e mais habitantes chegando, o perfil da população foi se alterando, juntamente com o esgarçamento do tecido social. Se antes a fome era enfrentada com o consumo da horta caseira, plantas frutíferas, como bananeiras ou dos ovos das galinhas que qualquer família tinha no quintal, a ocupação de menores espaços com o maior número de pessoas favoreceu para que o antigo estilo de vida se extinguisse.
As conversas de vizinhos com cadeiras nas calçadas ao entardecer, os jogos de dominó e carteado nos churrascos, as peladas nas ruas de terra da criançada, jogos de bolinha de gude, de tacos, pega-pegas, queimadas ou pique-esconde, os bailinhos de sábado em salas e garagens, as missas de domingo, as quermesses e tantas outras oportunidades de integração social foram se retirando da cena paulistana ou se transformando de tal maneira que ganhou a configuração de pastiche quando se apresentam na atual vida urbana.
As casas e edifícios de portões e muros levantados até impedir que o crepúsculo se apresente com sua luz a se espraiar pelas ruas e telhados é a marca registrada da “evolução” de usos, costumes e arranjos arquitetônicos de nossa sociedade moderna. Crianças nas ruas é sinal de perigo. As grades cobrem entradas e janelas. Câmeras de vigilância apenas confirmam a violência crescente. Estamos presos a um sistema econômico que preconiza a busca de um ideal de consumo, não um ideal de convivência. As grades não são apenas exteriores, mas igualmente internas. Estamos presos por dentro e por fora e não vejo maneira de nos libertarmos.
Participam do B.E.D.A.:
Lunna Guedes
Cláudia Leonardi
Mariana Gouveia
Darlene Regina
Roseli Pedroso
Adriana Aneli
Eu gosto imenso de observar as mudanças urbanas que ocorrem ao redor de nós. A maneira como nos adaptamos aos lugares e eles a nós.