Por conta do calor, além da falta de paciência em deixar os meus cabelos rebeldes razoavelmente alinhados, decidi raspar o teto. Os meus cabelos, com o passar do tempo, acabaram por formar um grupo revoltado, constituído por membros cada vez mais finos, que um a um, abandonaram a minha cabeça, como a prenunciar uma época em que deixarão o alto do meu corpo quase que totalmente desertificado.
Ao fim da raspagem, Marlos — o cabeleireiro — ao passar o espelho por trás, como faz habitualmente quando faz um corte, foi revelada a velha cicatriz. Como um arqueólogo que descobre uma nova pedra de roseta que em vez de uma escrita, apresentava apenas uma linha, que fez relembrar uma história inteira. A origem daquela cicatriz foi como um mergulho nas águas dos tempos, mais precisamente (ou imprecisamente?), aos meus cinco ou seis anos de idade quando, minha família e eu, vivíamos na Penha.
Morávamos na parte de baixo da casa (ao qual chamávamos de porão) da minha Tia Raquel e Tio Zé Gomes, alugada por eles. Devia ser muito conveniente para os meus pais, pois a fábrica de componentes flexíveis para carros dos meus tios, na qual eles trabalhavam, ficava no mesmo terreno. Não sabia, então, que essa “facilidade” de certa forma escondia uma guerra surda no espírito de meu pai, que se sentia extremamente dependente dessa situação em que família e ganha-pão se misturavam de maneira promíscua.
Quanto a cicatriz adquirida, eu diria, de forma simplificada, que se deu por causa de ciúme entre irmãos. Certa ocasião, os meus tios e primos viajaram e os donos da casa permitiram que nós pudéssemos, durante as noites que passariam fora, assistir à televisão de muitíssimas polegadas os programas favoritos da época. Para uma criança tudo é muito maior, porém em confronto com a nossa de 14″, a diferença era memorável. A simples existência de uma sala de televisão, com amplos sofás e distância adequada, sem improvisação de cadeiras ou camas para sentar deixava que nos sentíssemos em um mundo novo de conforto.
No último dia de nossa imersão, pedi para o meu pai me levar de cavalinho, como ele fazia com o meu irmão menor. Já devia ser pesado demais para isso, mas ele acedeu graças a minha insistência. Para irmos até a parte de baixo da casa, tínhamos que descer uma escada composta de ladrilhos que, devido à uma chuva fina, estava por demais escorregadia. Ao final dos últimos degraus, o meu pai escorregou e eu acabei por bater a minha cabeça. Muito sangue e choradeira depois, curativos e dengos me acalmaram naquele momento e por anos.
Os meus cabelos cresceram o bastante para soterrar a lembrança marcada por aquele fato, no entanto sobrou o consolo da cicatriz que me fez lembrar de um momento de carinho do meu pai, que quis atender os reclamos chatos de um menino enciumado. Doeu, mas valeu!
Texto de 2013*
Estava cá a pensar no prazer que vem da dor… só Freud explica. rs
Pensando a respeito, Lunna, apenas baseado na minha experiência, costumo valorizar a alegria e o prazer em relação à tristeza e a dor. Há momentos de escuridão, mas acho que o ser humano nasceu para ser feliz.