22 / 01 / 2025 / Passagens

Durante a semana, eu me movi por várias partes da cidade de São Paulo — do norte para o oeste, do centro para o sul, e, do sul para fora, ao litoral — onde permaneci por dois dias, ontem e hoje. Junto ao mar, horizonte amplo, mergulhei nas ondas claras e brincalhonas, entre burburinhos liquefeitos de novidades tão antigas quanto bem-vindas.

Não dirijo, sou pedestre e usuário de transporte público. O máximo de veículo pessoal que possuo é uma bicicleta. Nesse translado, passo por caminhos tortuosos, calçadas irregulares, vias obstruídas, estradas longas, suspensas por pilares construídos à custa de vidas de vários operários, como a Via Imigrantes. A paisagem é deslumbrante. Abaixo e acima, a área preservada da Mata Atlântica na Muralha, a mesma desde tempos imemoriais.

A chegada junto à praia é o meu melhor momento. Logo, farei uma incursão para dentro de mim. O mar como divisa entre meu ser e a vida natural. Deixo para trás, túneis que mais parecem passagens subterrâneas de filmes de terror, vielas enviesadas, cruzamentos entroncados com becos escuros. A passagem para a liberdade é sinuosa…

Citadino*

Você me chamou e não a ouvi
Estava absorto na faina cotidiana
Navegava pelos rios de asfalto da cidade
Percorria os túneis de fuga terra adentro
Para fora de mim mesmo
Sempre apartado do meu corpo
O que poderia ser um sinal de independência
Não se cumpria
Pois os pensamentos arquitetados
Por outras mentes
Eram absorvidos pelos meus olhos
Invadiam o meu cérebro
E eram caminhados por minhas pernas
Se incorporando à minha rotina
Como se meus fossem através do poder de intervir
Consumado pela arquitetura citadina
Realizada pelos planejadores do ir e vir
Estava partindo para um lugar certo
Porém não pensava nisso
Mesmo querendo parecer borboleta
Ainda que formada e liberta
Voltava para o meu casulo
Que me atraía
Como tal, as minhas asas voavam um voo curto
Mais decorativas do que eficientes
E termino sendo um simples humano ser
Fingindo um próprio querer…

Foto por Erick Blanco em Pexels.com

*Poema de 2015

David E Eu

David Bowie surgiu como tema da mudança da minha foto de perfil porque acho que a sua atuação como figura icônica ajuda a entender como observo essa questão da imagem. Quando garoto, gostava de deixar o cabelo crescer e “ele” decidir a maneira que se desenvolveria. Uma determinada ocasião, fascinado pelo movimento Black Power e a música Black, endureci o meu cabelo com o uso de sabão de coco e passei a usar garfo para penteá-lo. Tempos depois, coloquei brincos, um cada orelha (para desespero de meu pai que achou que pelo uso de um pequeno artefato eu fosse Gay). Mais tarde, tingi o cabelo de amarelo. Por um período, fui chamado de Xuxa no futebol, de Pepeu Gomes por Wilson Simonal num trabalho e, com o ganho de músculos na academia, até de He-Man na rua. Hoje, (bem) mais velho e calvo, é a barba que uso para mudar “la facciata”. Por agora, a retirei. A única mensagem que desejo passar é o de não ser definido pela imagem momentânea. Todos nós somos mais do que estamos fisicamente, apesar da maior parte das impressões que passamos socialmente se darem pela aparência.

Conheci David Bowie através de videoclipes esparsos em programas pioneiros da TV2 Cultura, antes do surgimento da MTV. As músicas não eram tão “fáceis” quanto as mais tocadas, mas me chamavam a atenção. Inicialmente, pelas letras que assimilava aqui e ali nas poucas palavras que pescava em inglês. Porém, o visual Glam foi decisivo para que me me atraísse ao se mostrar ao público para além dos limites de gêneros. Vivia (como vivo) na Periferia e a linguagem estética do Camaleão do Rock me alcançou fortemente. Eu tinha uma feição androginóide, a ponto de causar estranhamento a quem não me conhecesse. A minha postura não era intencional, mas também não fazia questão de desfazer dúvidas que surgissem. O que eu percebi é que era atraente para várias meninas, se bem que nenhum relacionamento foi além da amizade, apesar de me enamorar secretamente por uma ou outra. Cada vez mais tímido, as garotas eram ideais apenas como inspiração de contos e versos de amor. Triste, não?

Na época, entre 13 e 14 anos, eu era um sujeito que estava entre a natural mutação física da adolescência e uma profunda transformação na concepção de mundo. Enquanto jogar futebol se tornava uma paixão cada vez maior, apesar da progressiva miopia, escrever concorria para se tornar uma dependência. A minha percepção se ampliava em múltiplas conexões para outras expressões – artes plásticas, cinema, teatro, dança, música… – e o futebol ocupava esse espaço das artes, além de vôlei, basquete e outros esportes. Chegava a faltar nas aulas para assistir Copas do Mundo e Olimpíadas. Na minha avaliação, uma partida de futebol era como se fosse a apresentação de uma ópera. Não conhecia ainda as histórias futebolísticas de Nelson Rodrigues que conseguiu aliar de forma magistral a arte cinética da bola a de crônicas eternizadas pela escrita.  

Os clipes musicais nos Anos 70 começaram a se tornar cada vez mais elaborados para além das apresentações de artistas ao público até se transformarem em pequenas obras multi-estéticas. As de Bowie ao vivo eram energéticas, expressivas, com roupagem inventiva e, ele mesmo, se mostrava como uma persona teatral-kabuki-bufão-psicodélica-assexuada imponente. Ziggy Stardust / Starman presentes diante de todos, para quem quisesse ver e ouvir.

Quando o mundo começava a se acostumar com a estranheza performática, o inglês buscava novas facetas e personas, linguagens renovadas e repertórios com experimentações sonoras, com diferentes apresentações visuais. Eu, em constante mudança estética-comportamental, me identifiquei com o artista inquieto até na heterocromia, como a que tenho, mas não tão distinta quanto a dele.

Quando assisti “O Homem Que Caiu Na Terra”, a personagem extraterrena se adequou como ninguém ao humano que parecia um ser acima dos parâmetros pequenos com os quais as pessoas de senso comum costumam ordenar como normal. O meu sentimento de inadequação ao mundo encontrou em David Bowie uma versão expressiva. Mudar de visual é somente uma pequena homenagem que presto a ele. De fato, ao longo da minha vida, “vesti” várias identidades – fui cabeludo, gordo, magro demais, raspei a cabeça, deixei a barba crescer, a retirei, perdi o cabelo – e, por um tempo, fui o senhor que colocava a camisa para dentro da calça. Fiz um curso de Educação Física no limite dos 50 anos. Voltei a andar despojadamente como na faze Punk, mas não tão radicalmente quanto na época do movimento no final da década de 70, ao qual Bowie antecipou com Diamond Dogs, álbum de 1974.

Antes de Aceitar a minha identidade de escritor mais recentemente, há menos de dez anos, passei por dois episódios significativos. Sempre fui mais cheinho e quando emagreci dramaticamente na fase vegetariana de 10 anos, desenvolvi um processo de distorção de imagem. Não me via tão magro, mas quando a balança indicou 57Kg, comecei a mudar a minha dieta. Quando tive a crise hiperglicêmica, por mais ou menos um ano não me reconhecia ao espelho. Cheguei a evitá-lo por um bom tempo e me surpreendi com o sujeito que estava do outro lado quando me via.

Como escritor, crio histórias e posso ser quem eu quiser ou transferir para outras personagens ações que não cometeria, além de outras que gostaria de cometer. Aos 60 anos de existência pós-uterina, sinto-me em constante inquietação e com projetos pessoais que passam por caminhos místicos e materiais. Um tanto deslocado, eu me sinto como se fosse um ET que caiu na Terra e o que me resta é aprender a viver entre os seres humanos até o último dos dias com saudade do meu planeta destruído e do meu amor perdido…

David (Robert Jones) Bowie

Projeto Fotográfico 6 On 6 / Rotas / Viagem Pelo Olhar E Pelo Tempo*

Rotas são indicativos do caminho que faremos para chegar a algum lugar. Muitas vezes, podemos dizer que as rotas são trajetos que se definem apenas no momento que o percorremos. Aonde chegaremos, mesmo que previamente estudadas e estabelecidas, torna-se um mistério ao seu final ou ainda durante a sua consumação. Normalmente, só o entendemos depois de algum tempo. Outras vezes, permanecem incógnitos os desígnios do senhor do destino. Em um tempo que é incrementada a discussão sobre universos paralelos, tema pelo qual tráfego intimamente há algum tempo, estabeleço a conexão que mais me apraz, enquanto eu tiver os meus sentidos físicos a favor — estabelecer contato com a realidade imaterial de maneira material, pelo olhar. Em 2014, em um dos vários eventos que realizei no Circolo Italiano, registrei com o meu celular de poucos recursos técnicos, imagens de uma pequena exposição. As fotos não ficaram nítidas. Eu me lembro que a luz dispersava de modo estranho sobre a superfície das pequenas esculturas. O que serviu para criar uma ambientação de sonho aos registros fotográficos. Os meus olhos por elas viajaram aos tempos que representam e cumprem a sua chegada neste tempo. As legendas são da época, com poucos acréscimos e modificações. 

Antes de acabar de carregar o equipamento da Ortega Luz & Som, com o qual realizamos o nosso último trabalho, não pude deixar de fazer um registro das pequenas esculturas que estavam no saguão de entrada do Circolo Italiano. Desde que as vi pela primeira vez, a beleza e os temas que evocavam me sensibilizou e fizeram com que eu me identificasse com elas. Como nesta aqui, em que vemos um semeador a esperançar a futura colheita.

Soldado da 1ª Guerra Mundial, a pior que já existiu. Nela, foram usados pela primeira vez aviões como armas, a utilização de gases venenosos dispersados indiscriminadamente, bombas experimentais a matar milhares nas antigas e ineficazes trincheiras, enquanto baionetas ainda serviam como recurso na luta corpo a corpo. Quando mais não fosse possível, as mãos a agarrarem o que servisse para ser usado como arma constituía o último recurso para matar e sobreviver.

A dança sempre fez e sempre fará parte da cultura humana. Dançar é a linguagem mais refinada do corpo. Eu não danço. Nunca me permiti soltar o quadril de minhas amarras. Mas sei amar a quem dança. Em um poema, já ousei dizer à minha personagem bailarina: “eu sou o amor dançando em você”.

Literalmente, um soldadinho de chumbo. Pelo estilo e uniforme, do final do século XIX. Como se vê, sua postura orgulhosa diz muito sobre aquele que ia para a frente de batalha todos prontos para matar… e poucos para morrer. Incutido de confiança, imagino que não lhe passasse pela cabeça que pudesse perder a vida. Talvez, apenas no último segundo, se lhe fosse dada a oportunidade de vislumbrar a passagem rumo ao não-lugar.

Essa figura poderia pertencer a qualquer cultura, tempo e lugar. Não há indicação, mas presumo que esteja preparando o fumo ou a isca, sentado sobre uma pedra junto a um rio. Em minha imaginação, chego a ouvir o barulho d’água que passa a rebater nas margens…

Na antessala do salão de festas, junto a uma bela biblioteca e de estantes de vidro com várias outras peças, sobre uma mesa, temos a Lupa Capitolina, a loba que alimentou os irmãos gêmeos, Rômulo e Remo, fundadores de Roma, após terem sido abandonados por Reia Sílvia, filha de Enéias. Segundo a lenda, eles foram gerados após um estupro sofrido por ela perpetrado pelo deus da guerra, Marte. Foram criados por um pastor e viveram de saques e assaltos até Remo matar Rômulo em uma disputa para saber onde construiriam a cidade que seria sede de um poder que mudou a face do mundo, pela violência e pela lei.

*Imagens e textos de 2014.

Mariana Gouveia — Lunna Guedes

Projeto Fotográfico 6 On 6 / Por Onde Andei…

“Por onde andei
Enquanto você me procurava?
E o que eu te dei?
Foi muito pouco ou quase nada…” (Nando Reis)

6O6-20-1

Ano viçoso, de novo que é, em seu sexto amanhecer – Dia de Reis – me fez querer falar por onde andei nestes últimos tempos. Lembro que era comum iniciarmos o ano letivo com redações a discorrer sobre o que havíamos feito durante as férias. Naqueles anos, restávamos rememorar eventuais idas às casas dos tios ou descidas à Praia Grande, onde minha avó paterna tinha uma casa. Nessas viagens rumo à praia, comecei a desenvolver um relacionamento íntimo com o mar. Mesmo que, por algumas horas, em intervalo de trabalho em Caraguatatuba, no último dia de 2019, tive um encontro com as águas salgadas do tempo. Mergulhei em mim…

6O6-20-2

Passei o Natal com os familiares da Tânia, em Arrozal, Distrito de Piraí-RJ. Desde que comecei a visitá-la, mudou bastante – ampliou o número de residências e moradores – mas não deixou de apresentar características de Interior – pessoas que se cumprimentam na rua, mesmo sem se conhecerem, casario antigo e movimento muito menor do que em qualquer bairro paulistano. No entanto está cada vez mais tornando-se uma extensão do Rio e seus problemas. Ainda resta quem adorne seus jardins de flores e luzes, observáveis através de muros baixos.

6O6-20-3

Fiz uma caminhada por Arrozal, a revisitar pontos que não via há três anos. Busquei novos ângulos, tentando encontrar referências perdidas na memória do lugar, como se buscasse seu espírito antigo. A cada lugar, me ausentava do presente e tateava as paredes desbotadas para ouvir histórias que me contavam. Passei frente ao portal da Igreja de São João Baptista e, respeitosamente não entrei com os sapatos sujos de meus preconceitos e descrença. Apenas apontei a câmera do celular para registrar a simplicidade do altar. Quando fui postar a foto, divisei a presença de uma fiel, nos bancos à esquerda. A nave, aparentemente vazia, estava plena da verdadeira comunhão de quem crê e ora…

6O6-20-4

No segundo dia de caminhada, logo cedo, tive a companhia de um jovem cachorro que se juntou a mim quando passei pela praça central. Não era por minha causa, mas pela Bethânia. Vim a descobrir que, mesmo castrada, ela ainda pode liberar o odor que atrai os machos da sua espécie para o acasalamento. Ela estava irritada com o assédio. E o tipo não ousava se aproximar tanto, não apenas por mim, mas também pela rejeição da donzela. Em uma das ruas, me detive uns dez minutos. Observei um belo cavalo que se alimentava do capim do terreno baldio. Ao me aproximar do gradil, Pi (o chamei assim devido ao símbolo que carregava no corpo) também se aproximou de mim. Não demonstrou medo e aceitou meus afagos em sua majestosa cabeça. Em tempo, eu não monto. Certa ocasião, tirei uma foto em cima de um cavalo manso, no qual as crianças subiam como se fosse o meu antigo cavalo de vassoura dos tempos pueris de cowboy. Depois do registro, logo que pude, desapeei. Terminada a troca de olhares e palavras mudas com Pi, voltei à praça, na tentativa de me livrar do acompanhante indesejado. Deu certo. Ao perceber que estava em um lugar com cheiros familiares, ficou a observar por um tempo nos afastarmos, como a decidir se deveria correr atrás de seu amor de verão ou não. Voltou o dorso e se foi.

6O6-20-5

No último domingo de 2019, fomos, Tânia, Romy, Niff (um amigo) e eu, ao Bar Estadão, típico ponto culinário da cidade. Aberto 24 horas por dia, serve ao povo paulistano desde 1968, com movimento assíduo de boêmios, músicos e trabalhadores da noite e do dia – de empresários a empregados, em ambiente democrático. Estacionamos o carro em uma rua próxima e caminhamos através de uma feira livre em pleno Centrão. Estava no final do expediente. A turma da xepa se fazia presente, assim como os que estavam simplesmente atrasados. A aparente discrepância entre as tradicionais barracas de frutas e legumes e o fundo recortado por espigões, apenas acrescentava charme à esta cidade que amo. Mais tarde, subi à Paulista, fechada ao trânsito de carros. As pessoas, fora de seus veículos, carregavam os mesmos erros de bom comportamento na fluidez dos seres. Muitos desconhecem o Princípio da Impenetrabilidade, amparada na chamada Lei de Newton, que ensina que “dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo”.

6O6-20-6

Em minhas idas e vindas por estradas e caminhos, meu olhar passeia pelos cenários de forma mais rápida que os meus sentimentos possam objetivar. Porém, em suma, percebo crescer em mim um êxtase quase religioso pela Natureza. De horizontes a perder de vista a flores que me perfumam a imaginação; dos pássaros que voam livres na matas e montanhas, aos seres que pisam e rastejam na terra úmida ou dos que evoluem em rios e mares – tudo e todos merecem a minha reverência de coadjuvante que sou em uma jornada na qual estamos todos imersos. Que em 2020, possamos fazer crescer a consciência de unicidade e respeito à vida em todos os seus níveis. Sentimento crescente, principalmente quando parece que há grande interesse em crestar o chão e poluir as águas do planeta.

 

Também andaram por aí…

Darlene Regina — Isabelle Brum — Lucas Buchinger
Mariana Gouveia — Lunna Guedes