BEDA / No Azul*

Manhã de abril,
outono no hemisfério sul…
Na parede,
a refletir no teto,
um caminho azul…
Olhos cerrados
e desnudos de lentes —
miopia cativa
e imaginação ativa —
pronto!
A minha vida a se perder
nas primeiras horas do dia,
a invadir o azulado ponto…
Por ele avanço,
ultrapasso idades,
volto a ser infante,
ser desregrado,
beligerante…
pai ausente,
menino em busca do sagrado
da existência,
do amor, da paciência —
ciência da paz que cria
vir com a experiência…
Ainda que cansado,
continuo o percurso
de quem morre e revive
espantado…

*Adaptado de poeminha de 2017

Participação: Lunna Guedes Mariana Gouveia / Claudia Leonardi Roseli Pedroso / Bob F.

#Blogvember / Homem De Lata

Coração transplantado procurando resquícios do que já foi humano (Lua Souza)

Escultura de Paulo Da Luz (Paizdalu)

Comecei a ficar cansado por qualquer esforço que fazia. Frequentemente, o ar me faltava. Com os irmãos fora do País, separado da Sônia há alguns meses, meus filhos longe de mim, já casados, não tinha ninguém com quem me queixar – meu passatempo favorito. Devido ao meu típico mal humor, nem meus amigos de copo me aguentavam mais.

Já aposentado, eu me restringia a torcer por meu time em jogos na TV. Antes, uma das minhas poucas diversões era ir ao estádio para xingar Deus e o mundo – do juiz aos jogadores, passando pelo técnico. No meu antigo trabalho, no escritório da transportadora, era conhecido pelo meu rigor no trato dos caminhoneiros, que eu julgava complacentes e indisciplinados. Para faltarem à lida, era sempre algum problema familiar, um filho doente, a mãe que morria, uma esposa que arranjava outro pelas seguidas ausências do marido…

Sônia, nesse aspecto, teve bastante paciência.  Aguentou o quando pode a minha animosidade. Quando me aposentei, ela disse que não suportaria conviver cotidianamente comigo em casa. Decidiu voltar para a casa da mãe, que estava doente, para cuidar dela. Aproveitou para pedir separação. Agora esse cansaço, dores nas costas, respiração ofegante. Criei coragem, pedi um transporte e me dirigi ao hospital do bairro.

Fragilizado, mal tinha forças para reclamar do atendimento, mesmo porque fui bem atendido. Os enfermeiros, atentos, ouviram as minhas queixas. Apesar de relutar, fui colocado numa cadeira de rodas e levado para ser atendido por um médico. Solicitado um eletrocardiograma, além da anamnese médica, verificou-se que eu estava prestes a ter um infarto. Mais tarde, com exames mais apurados, me foi revelado que o velho coração não duraria muito mais tempo funcionando. Para sobreviver, teria que fazer um transplante.

Ainda que não quisesse, avisei à Sônia do meu estado. A minha ex-esposa prontamente chamou a sua irmã para substituí-la no cuidado da mãe e voltou para São Paulo. Foi ao hospital e me encontrou alquebrado de tal maneira que quase chorou. Quando chegou, me abraçou, me chamando de “meu turrão”.

Pedi desculpas por tê-la feito deixar a mãe doente. E por demonstrar tanta aspereza no nosso casamento. Que busquei ser um pai sempre presente e um marido que trabalhou duro para trazer conforto à família. Que tinha sorte por tê-la conhecido e dela ter me aceitado como companheiro.

— Para de falar, como se fosse morrer hoje. Antes de entrar, conversei com o Dr. Ângelo. Você ainda vai me perturbar bastante antes de partir desta para melhor… Vai precisar se cuidar para manter o seu coração batendo enquanto espera um coração novo. Vou ficar de olho!

Eu estava com saudade dessa maneira dela falar comigo. Sincera e direta. Quando começamos a namorar, disse que eu não era um homem bonito, mas também não era feio. Que beijava bem. Mas era um sujeito turrão. Eu respondi que tive que assumir a casa bem novo, depois da morte do meu pai. Que havia começado a trabalhar cedo. Sem chance para me sensibilizar.

Como começamos a namorar adolescentes, a Sônia me acompanhou no auxílio à minha mãe. Deixei de estudar, mas estimulei os meus irmãos a se formarem na faculdade. Hoje, são homens de sucesso. Assim como os nossos filhos. Talvez tenha custado uma convivência mais prazerosa com a família. É bem possível que a minha atitude tenha sobrecarregado o meu coração, que acabou por retesar as suas fibras.

Com o coração transplantado, procurarei buscar resquícios do que já foi mais humano em mim… Tentar reencontrar o menino que chegou a ser feliz antes de papai se ir pelas próprias mãos. Quem sabe tenha a chance de uma nova vida? A oportunidade em que eu não seja mais chamado de Homem de Lata.

Participam: Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Lunna Guedes / Suzana Martins

A Coragem Ou Flávio Migliaccio

Coragem
Shazam & Xerife – Paulo José e Flávio Migliaccio (1972)

Outro dia, partiu um dos atores mais emblemáticos de minha garotice ˗˗ Xerife ˗˗ que representou o Flávio Migliaccio. Adorava vê-lo viver aventuras ao lado de Shazam, também conhecido como Paulo José. Os dois andavam de cidade em cidade com o caminhãozinho-trambolho-geringonça conhecida como Camicleta (caminhão com bicicleta). Eu os encontrei na novela O Primeiro Amor, de 1972. Eu era noveleiro. Aliás, na nossa TV PB Bandeirante 14”, gostava de assistir novelas, filmes, séries, desenhos ˗˗ tudo o me fizesse sonhar ˗˗ ou, de certa maneira, me desviasse do cotidiano duro que vivia na periferia da Zona Norte.

Enquanto corria o mundo, a dupla mais incrível que já vi, se metia nas situações mais complicadas e acabava por resolvê-las das maneiras mais inusitadas e atrapalhadas possíveis. Na visão do menino, Shazam e Xerife eram maiores que a própria vida. Quando a série acabou, não me conformei. Mas já compreendia que as coisas mudam. Que mudar é viver.

Eu estava mudando. Por volta dos meus 12 anos, ao mesmo tempo que comecei a usar óculos, troquei de escola. Inaugurei um novo mundo de relacionamentos e vivências. Fui ficando cada vez mais ensimesmado. O ser introspectivo, apreciador de aventuras fantásticas, começou a escrever sobre a transcendência do ser sobre o amor. De certa maneira, queria transcender a algo que não conhecia. Queria me tornar luz sem me jogar na escuridão da dor de amar. Hoje eu sei que não há como alcançar uma coisa sem passar por outra. Na realidade, tinha a ilusão de aprimorá-la, expandi-la e me tornar puro amor.

Na periferia, via passar Shazans & Xerifes a todos os momentos. Muitos, em vez de Camicletas, usavam carroças puxadas a cavalo. Por aqui havia ainda estábulos e ferreiros para ferrar cavalos. Gostava dos cavalos, mas não aceitava a maneira como eram usados. Via crescer a minha indignação com o ser humano ˗˗ ente que deseja se assenhorar de tudo ao seu redor, sem pedir permissão. Em determinada época, preferia não pertencer à espécie humana.

Aos 16 anos, estava pronto para morrer. Se acontecesse, receberia a morte com a curiosidade típica que sempre me acompanhou. A minha expectativa é que estivesse consciente ao conhecê-la. Com 17 anos, mais uma mudança. Tomei contato com a busca pela iluminação real. Não a fátua ˗˗ egoísta e vaidosa ˗˗ que nos afasta da verdade. Porém aquela que nos posiciona para além de nós. Isso me ajudou a sobreviver fisicamente.

Passei a ter respeito pela vida, mas principalmente pela procura das melhores condições para que ela pudesse se expressar em todas as suas potencialidades. Ao mesmo tempo, compreendi que somos proprietários dos nossos veículos e percebi crescer em mim a responsabilidade de deixar o meu corpo-veículo mais apto a me carregar, pelo maior tempo possível, para me levar para onde quisesse ir, até desligá-lo quando não quisesse mais usá-lo. De alguma maneira, sem conseguir identificar o que me dava prazer em viver, boicotei a mim mesmo e quase morri duas vezes.

Consegui superar essa fase de me deixar morrer, graças ao amor. Mas há momentos que cansamos. Atualmente, parece que vejo acontecer as mesmas coisas que vivi há 50 anos. As mesmas personagens, travestidos de novos, sendo representantes do que é velho e ultrapassado. Xerife, cansado de guerra, corajosamente quis cometer um último ato de protesto contra o desrespeito ao artista e à arte. De corpo envelhecido, mas de espírito jovial, sabendo que dificilmente voltaria a atuar, decidiu libertá-lo. Preso à gravidade cada vez mais opressora, respirando o ar cada vez mais venenoso do País, representou o papel do eterno rebelde com causa, defensor dos fracos e oprimidos ˗˗ morreu-se ˗˗ para se perpetuar como o herói simples e imortal que fez todo mundo sorrir.

BEDA / Scenarium / Velho E Sorriso – Parte II

Velho estava acostumado a dormir pouco. Ainda que em dias de baile voltasse às 5h, às 8h se punha de pé. Não encontrou Sorriso. Gato pedia para sair para o jardim e foi atendido. Ao abrir a porta, viu Sorriso passando pelo portão com leite, frios e pãezinhos nas mãos. Ao vê-lo, sorriu.

– Bom dia, Velho! Não tinha quase nada, a não ser café. Fiz umas comprinhas.

– Bom dia, Sorriso! Não precisava… Nos últimos tempos, estou habituado a tomar apenas café, pela manhã.

– Também não estou acostumada… Vamos mudar um pouco. Tome um café da manhã completo, comigo, por mim, tá?

Sorriso, ao verbalizar seu pensamento, percebeu então sua ousadia. E se o que estivesse pedindo fosse demais? Será que ele a considerava tanto quanto imaginou?

– Se fosse fazer algo por alguém, seria por você, Sorriso… e pelo Gato, claro…

Seu rosto se iluminou no sorriso mais aberto. Entraram.

Se era uma coisa que Sorriso sabia fazer era café. Desde bem pequena, aprendeu a preparar a bebida para sua mãe. Em casa, mesmo cansada da noite do trabalho pelas esquinas do Centrão, encontrava prazer nesse cuidado de filha. Ao contrário do que acontecia com a maioria das pessoas, bastava Helena tomar a sua dose encorpada de café para se sentir torporizada. Dormia a manhã toda, enquanto Sorriso cuidava dos três irmãos. Sorriso acabou por ficar só quando dois deles morreram de parada respiratória por uso de cola e o terceiro sumiu sem deixar vestígios, todos antes dos dez anos. Sucessivamente, como praga dos deuses, Helena caiu gravemente enferma e morreu. Ainda antes mesmo de completar doze, já oferecia o corpo em troca de subsistência. Seu Zé, dono do cortiço onde morava – que ela via como uma espécie de pai – teve essa ideia para pagar o aluguel. Foi o primeiro a usá-la. Depois, passou a oferecê-la para outros homens. Fugiu. Vez ou outra, algum homem solitário a chamava para morar um tempo consigo. Ficava o tempo até perceber que se tornara uma empregada mal paga: de cama, mesa e limpeza, além dos eventuais espancamentos. Nunca quis ser uma “típica dona de casa”.

Desta vez, foi Sorriso que tomou a iniciativa de ficar com Velho. Percebeu que tinha uma imensa ternura por aquele homem experiente e triste. Queria cuidar dele, se assim permitisse. Alternativa que pareceu ser aceita quando, após o cheiroso café da manhã, Velho disse para Sorriso ficar à vontade e permanecer o tempo que quisesse. Completou que não impediria que ela continuasse o seu trabalho, se assim desejasse. Pela primeira vez, Sorriso desejou que alguém demonstrasse certo sentimento de posse por si…

Com o correr dos dias, semanas, meses, a relação dos dois se transformou em algo bem mais rico do que apenas uma mescla de simpatia e ternura que sempre existiu. E foi essa situação que os dois filhos de Velho – Júlio e Juliano – encontraram quando foram visitá-lo: um casal feliz. Aquela conjuntura os pegou desprevenidos. Mais uma vez, estavam decididos em convencer o pai a deixar a casa e ir para um asilo. Logo a vista do jardim redivivo, com flores novas a brotar nos canteiros, os deixaram desconcertados. Era como se Dona Nina estivesse esperando com suco, café e bolo. A saudade aumentou ao sentirem os mesmos aromas ao chegarem à porta.

Velho não havia lhes alertado sobre a nova situação quando avisaram que iriam encontrá-lo. Entretanto, preveniu Sorriso sobre como eles se comportariam. Experiente no trato com as pessoas, promotor e relações públicas durante cinco décadas, conhecia a natureza humana. Nada e ninguém o surpreendia. Suspeitando da insistência dos filhos em tirá-lo da casa na qual cresceram e onde ele viveu os últimos sessenta anos, procurou se informar e soube que aquela área estava cada vez mais valorizada e o terreno que abrigava a sua residência valia muito dinheiro. Era disso que se tratava. Nada de desvelo ou preocupação com o velho pai, ainda que se enganassem mutuamente que assim fosse. Nada de desejar o melhor para aquele que os sustentou, educou e se esforçou para que chegassem à faculdade. Apenas interesse econômico. Ele valia mais morto do que vivo. Já vira isso acontecer durante seu trabalho com o pessoal da terceira idade. Tornou-se confidente de muitos velhos – homens e mulheres.

– Como vai, papai? – perguntou o mais velho, Júlio, que aliás carregava o nome do pai.

– Bem! Como pode perceber…

Realmente, Velho parecia ter rejuvenescido uns dez anos. Continuou:

– Eu apresento a vocês, Sorriso, minha companheira…

Literalmente, com os queixos caídos, os Jota-Jota, como eram conhecidos, gaguejaram coisas como “pensamos que se tratasse de uma empregada ou cuidadora”; “o senhor nunca foi disso, se envolver com uma garotinha”; “deve ser uma aproveitadora, de olho em sua grana”…

Sorriso fez que não ouviu e mostrou porque carregava aquela alcunha. Disse de maneira bastante suave e até alegre:

– Fiz bolo de cenoura, café e suco. Por que não se sentam?

Como se tivesse lhes dirigido impropérios, os filhos de Velho começaram a gritar:

– Que é isso? Você não é Mamãe! Quem pensa que é? Putinha!

Velho apenas se dirigiu à porta e pediu que saíssem, com o coração apertado, intuindo que os filhos, para atingi-lo, impediriam que visitasse os netos.

– Isso não vai ficar assim, Velho! Vamos interditá-lo!

Quando saíram, Velho desabou no sofá e quase agradeceu por sua Nina não estar viva para presenciar aquela cena. Sorriso se sentou em seu colo e o abraçou afetuosamente.

O encontro com os filhos se deu no início de 2020. Ainda que doloroso, não quebrou a feliz rotina do casal. Velho e Sorriso, meses antes haviam se tornado assíduos frequentadores dos salões da noite paulistana. Velho reviveu as suas melhores noites. Para Sorriso, que com ele aprendeu seus primeiros passos de dança de salão, se descortinou uma vida que sequer imaginara. Em meados de Março, os bailes de casais começaram a ser cancelados com a chegada do novo corona vírus, com a promessa da progressão da Covid-19. Para evitar o seu avanço, a Quarentena foi instaurada. Não era difícil para o casal ficar em casa, com Gato a lhes acompanhar. Quem pudesse vê-los ocasionalmente, logo identificaria a cumplicidade natural daqueles que se amam.

No início de Abril, Velho começou a se sentir cansado e a tossir um pouco. Logo, percebeu que não estava nada bem. Disse a Sorriso que não queria ir para o hospital, nem que avisasse aos filhos. E pediu a ela que o deixasse sozinho para que não se infectasse com a doença que sentia progredir rapidamente. Sorriso o olhou dentro dos olhos, como gostava de fazer para ali encontrar o brilho do homem gentil e amoroso. Percebeu que estavam um tanto embaçados. Disse:

– Eu nunca mais sairei do seu lado…

Velho sorriu um sorriso de velho que era. Sorriso se deu conta que o estava perdendo. Tomou uma decisão, cujo desfecho só foi conhecido dias depois. Gato, que miava incessantemente no jardim frontal, pedindo para entrar, chamou a atenção dos vizinhos que passavam. Ao se aproximarem, sentiram um forte cheiro vindo de dentro da residência. Chamaram os bombeiros, que arrombaram a porta. Encontraram uma jovem de vinte anos e um senhor de oitenta, abraçados na cama de casal. Mortos. Um leve odor de gás evidenciou a causa dos óbitos.

Ao saírem com os corpos, os soldados passaram por Gato, assentado na cômoda da ante sala. Sonolento e indestrutível.

Beda Scenarium