Projeto Fotográfico 6 On 6 / Quem Sou Eu?

Quem sou eu 10 A
Sou água…

Reabasteço-me de minha porção…
Envolto em pele,
mergulho em meio translúcido
que sou eu – aquoso.
Dos antigos, elemento fluídico,
separado do tempo sem fim
onde me abrigo,
vou de um ponto ao outro,
através de mim…

Quem sou eu
Sou lunar…

Pode ser a última lua.
A última vez que atua.
Pode ser a sua última noite.
A derradeira hora do açoite.
O último abraço e o colo quente.
O último suspiro e o beijo ardente.
A última chance de perdoar.
A última oportunidade de amar…

 

Quem sou eu 3
Sou um trevo…

Nasci comum –
um trevo de três folhas.
Num caminho feito de escolhas –
concebi ser ínfimo,
verdejar plantinha em pedra dura,
viver da luz que sobrar
e, apesar de menor,
fazer sombra,
escurecer de vida o claro chão…

 

quem sou eu 9
Sou o mar…

Em tempos restritivos ao caminhar, paro.
Vagueio o meu olhar em direção ao oriente.
Testemunho vagas-ondas em direção à areia –
sucessivos abraços da água salgada.
Oceano de represados sentimentos
pisados-fixados no mar em movimento.
Salgo o doce e o bom,
a vida e o dom
de existir.

Quem sou eu 5
Sou pintor…

Corto a minha orelha, mas não deixo de ouvir
o silêncio penetrante que absorve meu ser só…
Como se fora a tela branca-nada,
ainda que pinte o horizonte
em cores e dores.
A ruminar sóis e girassóis,
campos e procelas,
paraliso a mão e músculos.
Amadureço,
em pinceladas,
a morte em crepúsculos.

 

QUEM SOU EU 2
Sou o humano de um cão…

Converso com o meu humano.
Sem saber falar a minha língua, ele sorri.
Ou pede que me cale.
Nunca sei quando o que digo
é importante ou inoportuno.
Eu o amo tanto!
Morro quando parte.
Revivo quando chega.
Saudade eterna
em plena presença.

Ale Helga — Darlene Regina — Mariana GouveiaLunna Guedes

BEDA / Scenarium / Projeto Fotográfico 6 On 6 / Monocromático

É muito comum que eu olhe para o alto. As nuvens, as busco como se fosse um mago a prefigurar em suas formas agouros de desgraças ou presságios de boas novas. Mas não infiro nada. Apenas sou apaixonado pelas transições dos vapores d’água de elefantes para personagens históricos, baleias para dragões. Quando as nuvens escurecem – eventual prenúncio de tempestade – raios podem vir a riscar o firmamento-campo-de-batalha da Natureza. No entanto, a abóboda sob a qual caminhamos, também poderá surgir em monocromático azul celeste, de indecente nudez, como esta tela que registrei em um março ainda incrédulo da borrasca pela qual passaríamos adiante.

Beda 6 On 6 - A
Azul celeste

 

Além do céu, busco o chão. Caminhante da metrópole, o cinza impera nas vias ou leitos carroçáveis (termo advindo dos tempos das carroças) pelos quais passo. Sou pedestre e onde moro costumamos caminhar a pé pelas rotas dos automóveis. É uma tradição que conheço desde que surgiu o primeiro asfalto no bairro. O rio cinzento só não é totalmente monocromático porque buracos surgem recorrentemente. Poucos metros se afiguram tão perfeitos como o que mostro aqui.

Beda 6 On 6 - B
Cinza asfalto

 

Para quebrar um pouco a monotonia das portas metálicas, uma loja da Praia Grande, cidade onde fiquei isolado uma parte da Quarentena, decidiu chamar a atenção com um lilás chamativo que apenas foi vislumbrado tão fulgurante porque estava fechada. Era o início da restrição no funcionamento de pontos comerciais e empresas. Normalmente, o belo campo de lavandas metálico ficaria menos expressivo se estivesse recolhido à luz do dia.

Beda 6 On 6 - C
Lilás lavanda

 

No bairro de Cidade Ocian, a prefeitura da Praia Grande pavimentou as ruas centrais com tijolinhos vermelhos. Ao som de “GoodbyeYellow Brick Road” na cabeça, viajei na possibilidade de ver Dorothy, com Totó ao seu lado a caminhar junto ao Leão, o Homem de Lata e o Espantalho. Ela caminhava entoando “Over The Rainbow” a caminho do mar, em direção ao Netuno e seu tridente. Uma faixa de luz do sol, por um breve instante, atendeu à imaginação do garoto que retornou ao lugar em que foi mais feliz.

Beda 6 On 6 - D
Vermelho tijolinho

 

Ouvi várias vezes o termo “verde de raiva”. Para mim, se há verde, há esperança. Desejo firmemente que o verde um dia se espalhe por nossos solos a perder de vista. Quando a vingança do verde prevalecer, talvez tenhamos alguma chance de sobrevivermos a nós mesmos.

Beda 6 On 6 - E
Verde esperança

 

A ausência de cor, também é uma cor. Ao contrário do branco – síntese de todas as cores – sem o campo escuro que se estende sobre nós, à noite, não poderíamos distinguir as luzes das estrelas, a Lua ou outros planetas. A escuridão parece esconder segredos e nos impulsiona a criar seres fantásticos onde somente imperam nossos fantasmas. O preto é paz…

Beda 6 On 6 - F
Preto paz

 

Ale Helga — Darlene Regina — Lucas Buchinger
Mariana GouveiaLunna Guedes

Beda Scenarium

 

Projeto Fotográfico 6 On 6 / Por Onde Andei…

“Por onde andei
Enquanto você me procurava?
E o que eu te dei?
Foi muito pouco ou quase nada…” (Nando Reis)

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Ano viçoso, de novo que é, em seu sexto amanhecer – Dia de Reis – me fez querer falar por onde andei nestes últimos tempos. Lembro que era comum iniciarmos o ano letivo com redações a discorrer sobre o que havíamos feito durante as férias. Naqueles anos, restávamos rememorar eventuais idas às casas dos tios ou descidas à Praia Grande, onde minha avó paterna tinha uma casa. Nessas viagens rumo à praia, comecei a desenvolver um relacionamento íntimo com o mar. Mesmo que, por algumas horas, em intervalo de trabalho em Caraguatatuba, no último dia de 2019, tive um encontro com as águas salgadas do tempo. Mergulhei em mim…

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Passei o Natal com os familiares da Tânia, em Arrozal, Distrito de Piraí-RJ. Desde que comecei a visitá-la, mudou bastante – ampliou o número de residências e moradores – mas não deixou de apresentar características de Interior – pessoas que se cumprimentam na rua, mesmo sem se conhecerem, casario antigo e movimento muito menor do que em qualquer bairro paulistano. No entanto está cada vez mais tornando-se uma extensão do Rio e seus problemas. Ainda resta quem adorne seus jardins de flores e luzes, observáveis através de muros baixos.

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Fiz uma caminhada por Arrozal, a revisitar pontos que não via há três anos. Busquei novos ângulos, tentando encontrar referências perdidas na memória do lugar, como se buscasse seu espírito antigo. A cada lugar, me ausentava do presente e tateava as paredes desbotadas para ouvir histórias que me contavam. Passei frente ao portal da Igreja de São João Baptista e, respeitosamente não entrei com os sapatos sujos de meus preconceitos e descrença. Apenas apontei a câmera do celular para registrar a simplicidade do altar. Quando fui postar a foto, divisei a presença de uma fiel, nos bancos à esquerda. A nave, aparentemente vazia, estava plena da verdadeira comunhão de quem crê e ora…

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No segundo dia de caminhada, logo cedo, tive a companhia de um jovem cachorro que se juntou a mim quando passei pela praça central. Não era por minha causa, mas pela Bethânia. Vim a descobrir que, mesmo castrada, ela ainda pode liberar o odor que atrai os machos da sua espécie para o acasalamento. Ela estava irritada com o assédio. E o tipo não ousava se aproximar tanto, não apenas por mim, mas também pela rejeição da donzela. Em uma das ruas, me detive uns dez minutos. Observei um belo cavalo que se alimentava do capim do terreno baldio. Ao me aproximar do gradil, Pi (o chamei assim devido ao símbolo que carregava no corpo) também se aproximou de mim. Não demonstrou medo e aceitou meus afagos em sua majestosa cabeça. Em tempo, eu não monto. Certa ocasião, tirei uma foto em cima de um cavalo manso, no qual as crianças subiam como se fosse o meu antigo cavalo de vassoura dos tempos pueris de cowboy. Depois do registro, logo que pude, desapeei. Terminada a troca de olhares e palavras mudas com Pi, voltei à praça, na tentativa de me livrar do acompanhante indesejado. Deu certo. Ao perceber que estava em um lugar com cheiros familiares, ficou a observar por um tempo nos afastarmos, como a decidir se deveria correr atrás de seu amor de verão ou não. Voltou o dorso e se foi.

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No último domingo de 2019, fomos, Tânia, Romy, Niff (um amigo) e eu, ao Bar Estadão, típico ponto culinário da cidade. Aberto 24 horas por dia, serve ao povo paulistano desde 1968, com movimento assíduo de boêmios, músicos e trabalhadores da noite e do dia – de empresários a empregados, em ambiente democrático. Estacionamos o carro em uma rua próxima e caminhamos através de uma feira livre em pleno Centrão. Estava no final do expediente. A turma da xepa se fazia presente, assim como os que estavam simplesmente atrasados. A aparente discrepância entre as tradicionais barracas de frutas e legumes e o fundo recortado por espigões, apenas acrescentava charme à esta cidade que amo. Mais tarde, subi à Paulista, fechada ao trânsito de carros. As pessoas, fora de seus veículos, carregavam os mesmos erros de bom comportamento na fluidez dos seres. Muitos desconhecem o Princípio da Impenetrabilidade, amparada na chamada Lei de Newton, que ensina que “dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo”.

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Em minhas idas e vindas por estradas e caminhos, meu olhar passeia pelos cenários de forma mais rápida que os meus sentimentos possam objetivar. Porém, em suma, percebo crescer em mim um êxtase quase religioso pela Natureza. De horizontes a perder de vista a flores que me perfumam a imaginação; dos pássaros que voam livres na matas e montanhas, aos seres que pisam e rastejam na terra úmida ou dos que evoluem em rios e mares – tudo e todos merecem a minha reverência de coadjuvante que sou em uma jornada na qual estamos todos imersos. Que em 2020, possamos fazer crescer a consciência de unicidade e respeito à vida em todos os seus níveis. Sentimento crescente, principalmente quando parece que há grande interesse em crestar o chão e poluir as águas do planeta.

 

Também andaram por aí…

Darlene Regina — Isabelle Brum — Lucas Buchinger
Mariana Gouveia — Lunna Guedes

BEDA / A Carretilha

CARRETILHA

O Humberto, meu irmão, me enviou uma foto recém-tirada de um objeto tão simples quanto icônico de nosso passado – uma carretilha de poço. Perguntou se lembrava dela. Como esquecer? Ou melhor: como não vincular aquele instrumento a tudo que experimentamos no início de nossas vidas na zona praticamente rural em que fomos morar quando crianças? O ano – 1969.

Era o mesmo bairro em que hoje vivemos. Formado apenas por um conglomerado de ruas de terra, com lotes demarcados por números. Havia poucas construções, uma delas, a nossa. Casa simples, com um quarto, cozinha, um largo corredor, que fazíamos de quarto com camas de molas desmontáveis, e banheiro. Duas janelas maiores e uma pequena, do banheiro, uma única e grande porta, que dava para o corredor.

No início, por falta de dinheiro, madeiras faziam as vezes de porta e janelas. Logo depois, substituídas por outras de ferro, que se tornaram permanentes. Nosso terreno ficava junto a um córrego e era cercado por cercas com trepadeiras de buchas – aquelas usadas para banho.

A ideia de nos mudarmos para a casa inacabada foi tomada por meu pai. Durante a construção, em uma das visitas, encontrou um sujeito pernoitando em nossa futura residência. Temendo que fosse invadida, tomou a decisão de estabelecer a posse. Dessa maneira, lá fomos nós nos mudarmos de um local com luz, água encanada e esgoto para outro com restrição dessas e outras comodidades.

As paredes eram de cimento caiado; o chão, de vermelhão. Havia privada – possuíamos fossa séptica – mas não chuveiro. Com a água retirada de baldes com uma canequinha, tomávamos banho dentro de bacias para impedir que molhássemos o banheiro. A água, esquentávamos ao sol, no verão; por lenha, no inverno. Homem de Ferro. A carretilha surge na história nesse momento, ou melhor dizendo, um tempo depois…

No começo, retirávamos água nos apoiando na beira do poço, com as pernas entreabertas para não cairmos. Quando fizemos um puxadinho – uma futura lavanderia – a carretilha foi pendurada no teto da laje, presa a arames. Então, através de uma corda, retirar água do poço artesiano tornou-se uma tarefa divertida para mim. Gostava da atividade. Minha imaginação voava, enquanto pouco a pouco puxava a corda. Oitavo Homem. Percebi que tarefas repetitivas, como também varrer o chão ou lavar louça, me abstraíam.

O poço ficava no meio do espaço da lavanderia – dois tanques – entre a janela do banheiro e a porta principal da casa. Perto da casa, ficava o galinheiro, uma horta e plantas frutíferas no quintal. Em certa ocasião, quando estava aberto, nosso galo caiu nele. Fui buscá-lo, descendo pela escadinha de ferro. Iluminada por uma lanterna, pude perceber a parede construída por tijolos engenhosamente perfilados.

Com o galo agarrado-assustado-molhado debaixo do braço, desliguei a lanterna, a enfiei no bolso do calção e ascendi a escuridão, divisando a boca de luz cinco metros acima. Batman. Mais uma aventura que enfrentei com destemor de quem achava natural trepar em árvores, escalar paredes – Homem-Aranha – se pendurar em beiradas de lajes, saltar sobre valetas e pequenas corredeiras d’água. Super-Homem.

Apesar das dificuldades, sob a luz de velas sempre prontas para serem acesas diante da constante falta de luz, pontuada pela fumacinha de espirais para combater pernilongos queimando seu cheiro penetrante em nossos pulmões, expulsar os cavalos que comiam as buchas, caminhar sem destino a explorar os morros e as matas próximas me trouxe a sensação de que podia abraçar o mundo. Eu me sentia especial. National Kid. Percebi que toda criança, em liberdade, é um super-herói. E que uma simples carretilha tem o poder mágico de puxar tantas lembranças liquidas do poço das memórias…

Columbas livias de Sant’Anna

Columbas

Sant’Anna fervilhava em plena hora do almoço com o vai-e-vem dos passantes e passageiros – somos todos passantes e passageiros. As pombas, já satisfeitas com a abundante alimentação proporcionada por aqueles outros seres que jogam restos de comidas nas calçadas e áreas de uso comum do terminal do Metrô, estavam reunidas em uma alegre confabulação em um ponto determinado do jardim. Ou simulacro de jardim, já que se apresentava pelado de grama devido às pisadas de homens e mulheres que dividem a praça com elas vivendo igualmente do lixo humano.

Chamou-me a atenção o comportamento daquele grupo específico de Columbas livias, já que se assentavam como galinhas poedeiras, calmas e descontraídas, em substituição á postura normalmente atenta e desconfiada. Realmente, pareciam prosear sobre o dia, as aventuras, os achados alimentares ou sobre a chuva que sabiam que cairia mais à tarde. Não creio que os homens ocupassem tanto o tempo da pauta. Talvez apenas não entendessem tanta faina daqueles estranhos seres que, presos ao chão, se deslocavam incessantemente em busca de seu próprio sustento.

As pombas desconheciam que o que aqueles bípedes sem plumas secretamente mais desejavam era o que de mais simples realizavam e que, naquele momento, desdenhavam: voar como elas…