28 / 09 / 2025 / Deuses


No fulgor do instante
em que os mundos se separam
e entramos em outra dimensão…

No momento do prazer flamejante,
de corpos que se fundem e afundam
no mar cósmico do gozo em ação…
Na aceitação de que somos ingentes,
a deitarmos entre estrelas que dançam,
exclamas: “Pareces um deus!”…

Então,
me sinto São entre os sãos…
Espalmo minhas mãos
contra a sola de teus pés ––
beijo a flor de lótus
e entoo preces…

Te sinto uma deusa…
Não!
Mais do que isso…
Te sinto maior que tudo…
Te sinto Mulher!

Deuses

No fulgor do instante 
em que nos separamos do  mundo
e entramos em outra dimensão…

No momento de corpos que se fundem,
fundam uma nova existência
e se aprofundam
no mar cósmico do gozo…

Na aceitação de que somos ingentes, 
a deitarmos entre estrelas que dançam, 
exclamas: “Pareces um deus!”…
Então,
me sinto teu,
me sinto tanto…
me sinto são…

Espalmo minhas mãos
contra a planta de teus pés –
beijo tua flor de lótus,
entoo preces
e te possuo…

Te sinto uma deusa…
Mais do que isso… 
Te sinto maior que tudo…
Te sinto Mulher…

Imagem: recorte de alto-relevo de um dos templos de Khajuharo, Índia, construídos entre 950 e 1050 do Ano Comum.

#Blogvember / Amantes Da Penumbra

seremos deuses de cada dobra escura… (Obdulio Nuñes Ortega)

Foto por Josh Hild em Pexels.com

dobramos as esquinas na penumbra da cidade abandonada
escorregamos por entre as fendas da solidão em desencontros
abrigados da chuva ácida nos olhamos em profusão
de raios e trovões da tempestade elétrica que nos iluminava
os lados escuros dos rostos cegos de mais ninguém
a lua quase apagada deixava um rastro de silêncio
não ouvimos as vozes que nos alertavam não se amem
não se queiram a lei proíbe por contenção de desejos
os supremos nos observam vendem vendas
para que durmamos alheios da claridade que o amor proporciona
a clareza da dor a imensidade da percepção a profundidade do querer
avançaremos sobre as muralhas escorregadias da lama que escorrem
do alto dos gabinetes dos governantes do caos
senhores das benesses vendedores das necessidades dos seres perdidos
este mundo apesar de tudo já foi melhor ou melhor achávamos isso
tudo acontecia ao derredor as dores os sofrimentos sempre no plural
insidiosos perfurantes algozes menestréis do mal anunciavam
que viúvas aportariam às praças que mães chorariam nas escadas
que as portas se fechariam aos amores que as crianças não sobreviveriam
nos apaixonarmos é uma revolução um não ao não
se mais nada restar seremos amantes deuses de cada dobra escura…

Participam: Lunna Guedes / Suzana Martins / Roseli Pedroso / Mariana Gouveia

Tempo-Deus

Voltava para a casa à pé (sou pedestre convicto) e desviei por uma rua mais tranquila. Em frente à uma casa que hospeda em sua calçada uma pedra grande e arredondada — resquícios da região alagada por um rio hoje canalizado — se apresenta uma igreja de formas simples e ar interiorano. Parece alheia ao intenso movimento de veículos que hoje desfilam na principal avenida da região a cem metros abaixo. Na torre, além da cruz sobranceira, um relógio… que funcionava perfeitamente. Conferi com o meu celular e me surpreendi com a exatidão. Como fundo musical, em meus ouvidos ouvia a canção “Raça Humana” do meu Guru, Gil, que entoava: “A raça humana, é / Uma semana / Do trabalho de Deus“.

O Tempo é um deus inventado pela espécie Homo sapiens. Para caber em seu sistema de medição, para a criação divina, estipulou uma semana. Na verdade, seis dias. Lembrando que o sétimo dia foi dedicado ao descanso de sua obra. Achou suficiente para que Deus, um seu semelhante poderosíssimo, empreendesse a incrível tarefa que fez surgir a Terra inteira do Nada, a Natureza — rios, mares, continentes, estrelas, Sol, Lua, as plantas, os animais — subordinados ao Homem, um bicho especial, filho dileto do Criador. Mas reparem que antes de tudo ou, no mínimo, concomitantemente, esse Deus, criou o Tempo: “E Deus chamou à luz Dia; e às trevas chamou Noite. E foi a tarde e a manhã, o dia primeiro”.

Ainda que os dias fossem alegorias para eras de milhões de anos, sublinho que o Tempo rege tudo. Quase diria que se confunde com a divindade. Passados outros milhões de anos, anos-luz da ciência total do pleno conhecimento de tudo, ainda que desconfiemos de muita coisa, vivemos comandados pela ditadura dos anos, meses, dias, horas, segundos… Estipulamos horas marcadas para tudo — acordar, comer, estudar, trabalhar, descansar, se divertir — nascer, viver e morrer… Para tudo isso, desenvolvemos o relógio, que nos mostra a inexorável “passagem” do Tempo.

Pois o Tempo não passa. Somos nós que passamos: envelhecemos. Os efeitos do desgaste causado pelas intempéries, ventos, luz, água e perda de energia celular, causando deterioração física e doenças, é relatado pelo tique-taque do relógio — marcado segundo a segundo. Para divergir um pouco dessa ditadura, anarquista, eu me divirto com a ideia de que tudo acontece ao mesmo tempo, agora. Por princípio, vivo (ou tento viver) o Presente, que creio ser o resumo do Passado e do Futuro. Mentalmente, pratico esse princípio, enquanto obedeço ao calendário humano para conviver com os outros de uma maneira minimamente equilibrada.

Ajuda muito tornar tudo mais embaraçoso a minha memória claudicante, a qual prefiro chamar de “randômica”. Talvez porque eu seja o deus que me (des)governa. Um deus estranho, que não se considera o centro do mundo, que se espanta constantemente por se sentir vivo, que se retira de si e se observa de fora, compondo um cenário confuso, quase sem propósito. Um deus que criou um mundo à sua imagem e semelhança, portanto. Um mundo habitado por tantos outros deuses que regurgitam grandeza na pequenez de seus atos. Que idolatram imagens de si. Que se afastam da verdade óbvia — a da sua eminente dissolução pelo ser ao qual chamam de Tempo — enquanto sofrem e fazem sofrer…

O Grande Irmão

Quando George Orwell criou, em 1949, a figura do Grande Irmão de “1984”, aquele que pairava como o absoluto observador que a tudo via – percursos, supostas intenções e ações dos que compunham a sociedade – a referência era o viés opressor e totalitário das ideologias políticas da primeira metade do século XX. O “Big Brother”, personagem praticamente onisciente, interferia diretamente na vida humana em todos os seus aspectos, formulava diretrizes e estabelecia regras específicas para o comportamento de cada pessoa da nação. Como que confinados ao Jardim do Éden, era Deus a ditar o certo e o errado para a convivência harmônica de seus cidadãos idealmente despersonalizados. A não-vida era invadida e quem quebrasse algum mandamento, sofria graves sanções.

Quando o programa Big Brother foi criado, nos estertores do século passado, a ideia era que os participantes da bolha competissem por um prêmio através de uma sequência semanal de eliminações — um a um — por meio de jogos. Aproveitando a cada vez maior participação do público, ocorria a escolha de quem deveria sobreviver até o fim, a base da extinção dos oponentes. Transformado em entretenimento, o confinamento de pessoas para serem observadas como os outros animais em zoológicos, parece emular certas condições que se amplificam em grande escala ao serem testemunhadas por milhões de espectadores, que despendem a vida em vigiar um pequeno grupo, a decidirem quem deve sobreviver ou não. Nesse sentido, estabelece-se uma inversão interessante em relação ao Grande Irmão original. Para a “alegria” de quem vê o programa, a direção formula tarefas ou situações que põem os componentes em conflitos constantes experimentos de ratos no labirinto ou gladiadores na arena de gladiadores modernos.

As personalidades dos participantes parece estabelecer um critério razoável para que a simpatia ou a antipatia recaia sobre tal e tal personagem do programa. O clima psicológico pode ir às raias do estresse total até a exaustão. Quem melhor se adapta às circunstâncias cada vez mais inóspita, encontra maneiras de superar as adversidades. Começam a criar grupos, a fazer conchavos, a traçar estratégias gerais e a desenvolver táticas de guerrilhas para buscarem derrotar os seus inimigos que, se der tudo “certo”, poderá ser o seu aliado de hoje.

Uma vez dentro da casa-bolha, pouco a pouco os participantes esquecem que estão sendo vigiados e começam a agir sem travas, principalmente quando estão alcoolizados — outro expediente desequilibrador: produzir festas regadas a bebidas destiladas. Deus, nesse caso, lhe apraz que todos os pecados sejam cometidos. Que haja nudez, luxúria, ódio, vingança, vaidade e outros sentimentos exacerbados pelo isolamento. O amor (ou o sexo) costuma ser bem visto, de tal maneira que, por conveniência, namoros são iniciados por acordo para angariarem simpatizantes.

No Brasil, os produtores parecem ter transformado a “casa mais vigiada” num campo de projeção do comportamento da nação, feito um imenso espelho de nossas mazelas éticas. Em determinado momento, a participação dos vigilantes é avaliada por outros vigilantes. Grupos de defensores e detratores dos participantes se perfilam frente a frente numa insana batalha de mútuo “cancelamento”, para usar uma palavra da moda. O cancelamento é como se fosse a morte na vida virtual, tão definitiva quanto a real. Chego a ver os soldados invadirem as casas dos vencidos, derrubarem as suas paredes e a salgarem o solo do terreno profano para que nada mais nasça no futuro.  

Por vezes, sinto que o planeta Terra seja, igualmente, um local desse tipo de experiência, como se deuses brincalhões passassem a eternidade a formular jogos de guerra para verem os habitantes da casa a se matarem até que reste um único vencedor que, muito provavelmente. será esquecido… porque quem sempre vence é o jogo.