Tempo-Deus

Voltava para a casa à pé (sou pedestre convicto) e desviei por uma rua mais tranquila. Em frente à uma casa que hospeda em sua calçada uma pedra grande e arredondada — resquícios da região alagada por um rio hoje canalizado — se apresenta uma igreja de formas simples e ar interiorano. Parece alheia ao intenso movimento de veículos que hoje desfilam na principal avenida da região a cem metros abaixo. Na torre, além da cruz sobranceira, um relógio… que funcionava perfeitamente. Conferi com o meu celular e me surpreendi com a exatidão. Como fundo musical, em meus ouvidos ouvia a canção “Raça Humana” do meu Guru, Gil, que entoava: “A raça humana, é / Uma semana / Do trabalho de Deus“.

O Tempo é um deus inventado pela espécie Homo sapiens. Para caber em seu sistema de medição, para a criação divina, estipulou uma semana. Na verdade, seis dias. Lembrando que o sétimo dia foi dedicado ao descanso de sua obra. Achou suficiente para que Deus, um seu semelhante poderosíssimo, empreendesse a incrível tarefa que fez surgir a Terra inteira do Nada, a Natureza — rios, mares, continentes, estrelas, Sol, Lua, as plantas, os animais — subordinados ao Homem, um bicho especial, filho dileto do Criador. Mas reparem que antes de tudo ou, no mínimo, concomitantemente, esse Deus, criou o Tempo: “E Deus chamou à luz Dia; e às trevas chamou Noite. E foi a tarde e a manhã, o dia primeiro”.

Ainda que os dias fossem alegorias para eras de milhões de anos, sublinho que o Tempo rege tudo. Quase diria que se confunde com a divindade. Passados outros milhões de anos, anos-luz da ciência total do pleno conhecimento de tudo, ainda que desconfiemos de muita coisa, vivemos comandados pela ditadura dos anos, meses, dias, horas, segundos… Estipulamos horas marcadas para tudo — acordar, comer, estudar, trabalhar, descansar, se divertir — nascer, viver e morrer… Para tudo isso, desenvolvemos o relógio, que nos mostra a inexorável “passagem” do Tempo.

Pois o Tempo não passa. Somos nós que passamos: envelhecemos. Os efeitos do desgaste causado pelas intempéries, ventos, luz, água e perda de energia celular, causando deterioração física e doenças, é relatado pelo tique-taque do relógio — marcado segundo a segundo. Para divergir um pouco dessa ditadura, anarquista, eu me divirto com a ideia de que tudo acontece ao mesmo tempo, agora. Por princípio, vivo (ou tento viver) o Presente, que creio ser o resumo do Passado e do Futuro. Mentalmente, pratico esse princípio, enquanto obedeço ao calendário humano para conviver com os outros de uma maneira minimamente equilibrada.

Ajuda muito tornar tudo mais embaraçoso a minha memória claudicante, a qual prefiro chamar de “randômica”. Talvez porque eu seja o deus que me (des)governa. Um deus estranho, que não se considera o centro do mundo, que se espanta constantemente por se sentir vivo, que se retira de si e se observa de fora, compondo um cenário confuso, quase sem propósito. Um deus que criou um mundo à sua imagem e semelhança, portanto. Um mundo habitado por tantos outros deuses que regurgitam grandeza na pequenez de seus atos. Que idolatram imagens de si. Que se afastam da verdade óbvia — a da sua eminente dissolução pelo ser ao qual chamam de Tempo — enquanto sofrem e fazem sofrer…

2 thoughts on “Tempo-Deus

  1. Confesso que me diverto com a idéia de que o tal deus fez tudo em seis dias e descansou no sétimo. Só para inventar a Natureza (figura femina em sua representatividade) precisaria de uma pequena eternidade e nem sei dizer se seria o bastante.
    Enfim, cada um escreve o que quer a partir do que é… logo, descansa-se, mas não dos feitos. rá… E quanto ao tempo, fico eu com Kairos. Vou ali… bacio

    1. Quando bem novo, eu não conhecia o conceito de Kairós, criei para mim a Teoria do Tempo Intenso para explicar porque certos acontecimentos que se eternizaram em detrimento de outros, que apenas repetiam mais do mesmo. Com o contato com a Filosofia fui percebendo o quanto o ser humano pode (re)criar pensamentos que tantos milhares de outros, milhares de anos antes já haviam feito.

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