Por uma última vez, peço mais uma primeira vez voltar ao centro do mundo… Ainda que o nosso mundo se restrinja ao quarto de um quarto de um quarto de uma casa sem paredes, no canto de nossas mentes, para onde fugimos no último quarto de um eterno minuto…
Quero você, ainda que neurastênica, irritada e irritante, misofônica e barulhenta, inconstante e desesperada por amor sem pudor, que tento recusar por temor de me perder de mim para sempre.
Mas que adianta me preservar, se sem você sou menos do que um logro que se esconde sob a fama de louco? Por que me recusar a amar profundamente se o pouco que me resta é menos do que um pouco?
Temos outros em nossas vidas, mas a história de cada um de nós dois não importa se nela não tiver nós dois… Quero uma última primeira vez… Quero que me dê e se dê, que se doe a quem se doará por inteiro ainda que doa, porque doerá. Sei que não sobreviverei, mas antes morrer de amor, que é melhor do que morrer — é viver por um instante que seja o que importa viver…
Eu não acredito em alma gêmea. Ou melhor, não acredito que a nossa vida deva se fundamentar na busca de alguém com a qual venhamos a se identificar a tal ponto que nos dê prazer apenas por ser igual a nós. Considero que isso seja uma espécie de masturbação. Eu acredito no crescimento mútuo das pessoas pelo embate de ideias, pela diversidade de sentimentos, pela diferença de posturas, pelo confronto de mundos. Eu acredito tanto nisso que me permito ser o outro, vez ou outra. Cada vez mais… Chamaria isso de compaixão – quando nos colocamos completamente na situação que o outro ser está vivendo. Essa viagem para outro é perigosa, conquanto não tenhamos certeza total de quem sejamos (se é que a temos alguma vez). Enfim, essa transitoriedade deve ser buscada com cuidado para que não nos percamos no caminho.
Em uma brincadeira interna da Scenarium Plural, chamam de “Eu Lírico” o empreendimento de ser outros. Eu, meio que cainho de paraquedas, sugeri que seria igualmente um “Eu Rico”. Graças a essa a personalidade lírica, podemos cometer pecados, dentro da escrita, buscar experiências, fazer quase uma peregrinação extracorpórea para construir histórias nas quais viajamos. Assim é quando escrevo. É comum eu me colocar no lugar de alguém que permite se apaixonar na caça de outra pessoa com a qual se identifique.
Passo por altos e baixos em minha própria auto avaliação, mas creio que tenha um ponto fulcral, uma linha mestra que me conduz que me permita dizer: “esse sou eu”. E esse ser não consentiria ferir quem quer que fosse ao buscar aventuras para, um dia, se comprazer em se encontrar, ele mesmo, em outra pessoa. No entanto, aceito igualmente a possibilidade de que o indivíduo acredite que isso seja possível e tente empreender esse encontro. Eu me vigio em minha prisão ética, mas não quero deitar normas para o amor. Liberdade para os amores!
O meu amor gosta de Bukowski e eu amo Augusto dos Anjos. Se Augusto dos Anjos tivesse sido influenciado por Bukowski, talvez não tivesse existido o poeta como o conheço. O preto, se se conformasse em se ater ao seu destino proclamado — marginal, apesar de ser maioria, palavra difícil de ser decifrada em meio a vocábulos fáceis de serem compreendidos, não chegaria a mim — menino da periferia — que me encantava com a palavra complexa que feria.
Se abraçasse o enunciado do americano — bêbado que vomitava durezas de descrente, leoninamente egoico, dogmaticamente estoico, adepto da simplicidade de expressão — não seria grande além do tempo, o paraibano. Dos Anjos era palavra quase inacessível. Fosse fiel às prisões do imediato e do lugar, se filiaria a obviedade e ao possível.
O americano, necessário, porém perplexo, o paraibano, imprescindível, contudo sem aparente nexo, não se confrontam em meu coração, que eu sinta. Um, eu leio e deixo minha rebeldia extemporânea satisfeita. Outro, eu leio a mim e me encontro incompleto, a tentar alcançar lonjuras. O ébrio, ainda que espalhafatoso, morreu velho. O professor que era poeta, morreu aos 30. Não se encontraram a não ser diante dos meus olhos — os versos de um embriagam e me deixam de porre, os do outro suplantam meu corpo e dilaceram minh’alma. Bukowski, brincava com o perigo de existir. Dos Anjos, fazia de companhia a morte que não o enlutava, mas celebrava.
Bukowski, foi ele. Dos Anjos, sou Eu. Enquanto que o egoísta não quis mostrar a ninguém o pássaro azul no peito, o centrado revelou a “frialdade inorgânica da terra”. Enquanto um soltou crônicas de amor louco em ereções, ejaculações e exibicionismos, sendo incensado; o outro, incompreendido em seu tempo, renegou a religião como resposta e proclamou que ninguém doma o coração de um poeta — sendo amaldiçoado.
Sou palavra difícil. É compreensível que não possa ser entendido. Mas acho triste não ser lido ou ouvido por quem diz me amar. Começo a duvidar da minha expressão. Não deveria me derramar? Deveria ser prosaico ou antes, calado? Ao me revelar, deverei ser contido? Deverei reverberar a palavra fácil, complacente? Erradicar a minha fala de estranha vertente? Ser Bukowski e seguir a inóspita franqueza? Ou ser Dos Anjos e violentar meu cotidiano dos termos óbvios e tiranos? A única simplicidade a qual me rendo é dizer que a amo e disso não me arrependo…
Conversa entre o eu atual e o do futuro, sobre o nosso passado.
“— Obdulio, se lembra como conhecemos a Tânia? Dois ou três anos antes de nos casarmos, sequer a conhecíamos. Fico imaginando se, depois de tanto tempo, ainda estejam juntos.
— Não responderei da maneira que quer. Digo, como você reconhece, que tudo passa e não passa.
— Essa forma de responder é bem típica de minha parte e percebo o quanto é irritante. Quanto à Tânia, ela veio com a nossa prima Vanir e uma amiga de Volta Redonda, onde viviam, para fazerem testes de admissão em hospitais de São Paulo.
— Ainda me lembro… a Vanir era filha da branca tia Ermelinda, com o nosso tio Manoel, preto. Eu sempre achei a história dos dois incrível — aos 12 anos, idade que tinha ao chegar ao Porto de Santos, vinda da Espanha com a Vó Manuela e nossos outros tios… ela se assustou ao ver o primeiro homem preto de toda a sua vida.
— Sim! Talvez, um estivador. A Tia me disse que aquele ser lhe pareceu impressionante. Como era impressionante o grande Tio Manoel! Ele trabalhava na Companhia Siderúrgica Nacional e se distinguia pela inteligência. Eu gostava de ficar ao seu lado e ouvir suas histórias quando visitava aos tios e primos, todos muitos bonitos e enormes. A prima Vanir me adorava e quando me apresentou à Tânia, se referindo à minha eventual beleza e personalidade, revelou mais tarde que chegou a rir por dentro.
— Hilário, não? Aquele sujeito que nós éramos, de cabelos desgrenhados, a usar camisas postas ao contrário e atitudes um tanto ríspidas… não era bonito e muito menos interessante..
— Ao vê-la, não me lembro e não sei se você se lembrará — já que a nossa memória é um tanto randômica — de emitir alguma palavra. Talvez tenhamos grunhido algo. Com certeza, aquela magrela com voz de taquara rachada não chamou a minha atenção…
— Para você ver… Como você dizia e ainda digo: “a vida tem sempre razão”.
*Texto derivado de um exercício do Curso Narrativa Em Primeira Pessoa, ministrado por Lunna Guedes.