BEDA / Scenarium / Leonina

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Foto por Public Domain Pictures em Pexels.com

O dia começa quando ela desperta.
O sol irradia luz para clarear o seu caminho.
Decide seus passos à revelia dos obstáculos.
As portas se abrem quando ela se aproxima.
Os espelhos disputam o seu reflexo quando ela passa.
A festa acontece quando ela aparece.
O DJ toca as suas músicas preferidas.
Na dança, ela comanda a coreografia.
Mares e brisas de mil anos contam segredos
quando pede que seu amor se entregue.
Quando nasceu, aceitou nascer todos os dias
em partos dolorosos,
pelo poder de viver mínimas alegrias,
poucos momentos de paz e prazer,
riso, paixão e nexo.
Por isso, vive…
Por que tudo é assim?
Esse é um enigma que não desvendei.
A resposta, não sei.
Não saberia, ainda que fosse o rei.
Ainda que percebesse o contexto.
Escritor, queria escrever outro texto
que pudesse mudar o destino,
arquitetar outro roteiro.
Queria que ela vivesse à larga,
bebesse o vinho tinto da melhor safra,
a caipirinha da mais apurada cachaça.
Ainda que não fosse alguém que ela amasse,
que eu não fosse feito de carne, mas de doce cassis.
Que meu corpo não tivesse ossos, mas giz.
Que eu estivesse em outro país
ou que não a tocasse por um triz,
que não apreciasse seu perfume pelo nariz
ou que ela viesse de outra raiz,
queria ver alterada a diretriz.
Que pudesse escolher entre ser o condenado ou o juiz,
cumprir a dura pena ou decidir que ela fosse, apenas, feliz…
Já que não tenho como a proteger
da necessária passagem do tempo e do sofrer,
me resta somente lhe perguntar:
de que maneira eu melhor posso lhe amar?

B.E.D.A. — Blog Every Day August

Adriana AneliClaudia LeonardiDarlene ReginaMariana Gouveia

Lunna Guedes

BEDA / Scenarium / Projeto Fotográfico 6 On 6 / À…gosto

Agosto de 2020 — Pandemia de Covid-19 grassando no País com a média de mais de 1.000 mortes por dia — por volta de 100.000 mortos oficialmente registrados, amplamente subnotificados. A direção da companhia indicou que poderíamos postar seis imagens à gosto. Escolhi algumas imagens que remetem ao passado. O presente indicado acima está um tanto estéril e o futuro não parece ser muito diferente, com tendência para ser um tanto enigmático, feito um jogo de azar.

 

6 on 6 agosto 4

Esta imagem foi colhida outro dia. Um fusca 1969 estacionado quase em frente à minha casa. 1969, assim como esse ratão, também foi o ano da mudança definitiva para a casa recém levantada no terreno 22 do loteamento realizado na antiga fazenda de fumo, na região da Vila Nova Cachoeirinha. Durante muitos anos, os pés de fumo nasceram a esmo em cada canto livre do quintal. O que ajudou bastante no controle dos piolhinhos que infestavam as galinhas que começamos a criar para completar o orçamento familiar. Tirávamos água do poço, tomávamos banho de canequinha, expulsávamos os cavalos que comiam a cerca feita de bucha (a planta), festejávamos a colheita de bananas, goiabas, abóboras e abacates, nos irritávamos com as picadas dos marimbondos. Eu adorava jogar futebol — balizas improvisadas com tijolos — bola improvisada com pano, recheio de papel e cordinha na rua de terra. Em dias de chuva, andávamos de chinelo, calças arriadas, até o asfalto, distante quase 2 Km para só então colocarmos os sapatos levados em sacolas. Tempos difíceis. Eu era feliz.

 

6 on 6 agosto 6

Essa imagem remete ao sincretismo religioso de minha mãe. São resíduos físicos de um tempo em que eu não compreendia como uma pessoa abarcava todas crenças possíveis em seu cotidiano. Além de acender velas aos “espíritos”, não via contradição em apresentar imagens díspares na prateleira. Um Buda gordo, inadmissível num asceta que jejuava frequentemente, se referia a símbolo de prosperidade. Assim como o elefante de costas. O Cristo em pedra sabão, apontava para a sua criação cristã, de primeira comunhão — a qual também fiz — crisma, missas dominicais e adoração aos santos. No entanto, seu nome — Maria Magdalena — já apontava para a tendência em ultrapassar os cânones e se ater ao teor herético da religião. Ela adorava ter o nome da 13ª Apóstola e, para alguns, mulher de Jesus.

 

6 on 6 agosto 7

Essas conchas estão há muito tempo conosco na casa de praia, onde estou. Porém é bem provável que os moluscos que as ocuparam possam ter vividos mais de um século, antes dos 40 conosco. Há moluscos que, devido ao metabolismo muito lento, chegam a mais de 500 anos, a depender da espécie. São prodígios do passado. Mensagens de eternidade em tempos de rápida deterioração do mundo que nos rodeia, em todas as suas formulações. A arquitetura dessas habitações é esplêndida. Construída pouco a pouco, enquanto cresce, sua natureza é de deixar, após a sua partida, um monumento a beleza e a transcendência, para quem conseguir-quiser ver. São templos dignos de oração.

 

6 on 6 agosto 3

Ao vir para cá, recebi essas toalhas embaladas em plástico. Segundo a Tânia, eu as recebi de presente em meu aniversário de meio século de vida. Nem ela, nem eu nos lembramos quem me presenteou. Eu não sou ligado a regalos. Talvez uma postura de defesa de alguém que dificilmente ganhava presentes quando garoto. Quando acontecia, geralmente eram roupas. Sei que essa impassibilidade é mal recebida, mas não consigo evitar. O meu aniversário de 50 anos foi um acontecimento inesperado para mim. Minha família disse que haveria uma festa a qual deveríamos ir. Era um domingo e eu queria ficar em casa, assistir a um futebolzinho ou um a filme. Fiquei de mal humor. Disseram que não demoraria. O Buffet ficava perto de casa e vi ali a oportunidade de me mandar a pé assim que fosse possível. Ao subir as escadas, pelo menos 50 pessoas me esperavam. Revistas, as fotos com a minha expressão de surpresa dizem tudo. Pessoas que não via há muito tempo, compareceram ao evento e me senti um tanto estranho ao perceber que fosse alguém que merecesse ser homenageado. Os presentes, alguns guardo como marcas, como a camisa do São Paulo F.C. com meu nome e número 50. Outros, pertencem ao passado. O da imagem, tem sido útil para enxugar o meu corpo a caminho dos 60 anos…

 

6 on 6 agosto 5

Da parte inferior do cacho da banana ainda imaturo, sai um pendão e, em seu extremo, destaca-se um cone de coloração e consistência diferenciadas (avermelhado-roxo), que é a flor da bananeira. É conhecida como buzina, umbigo, flor, coração ou mangará da banana. Costumo chamar preferencialmente de coração. Dois dos cachos produzidos, cortamos os corações. Deles, podem ser feitas excelentes saladas. Analogamente ao umbigo, quando cortamos o cordão, os filhotes-bananas se desenvolvem mais rapidamente. Deixados sobre a mureta, sem a seiva que os alimentava, murcharam pouco a pouco, até fenecerem. Umbigos ou corações — quedaram amargurados.

 

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A foto mais prosaica deixei para o final. Nela, apareço com a face taciturna, amplificada pela heterocromia dos meus olhos. Quase uma marca registrada da minha condição mental diante do que vivemos, a natureza cromática dos tempos atuais — verso, reverso, controverso — ganham melhor definição em foto em preto, branco e tons de cinza, amálgama-palheta da composição de cores da maldição em ser brasileiro.

B.E.D.A. — Blog Every Day August

Adriana Aneli — Claudia Leonardi — Darlene Regina — Mariana Gouveia —

Lunna Guedes

Projeto Fotográfico 6 On 6 / Calendário Particular

Para além das efemérides coletivas, feriados que ensejam finais de semana prolongados — vivemos atualmente um bem longo — nossa vida acontece individualmente, envolvendo circunstâncias de grande importância particular, mas que para o mundo quase nada representa, a não ser que o anunciemos de alguma forma nas redes sociais ou outro meio. Isso poderá causar algum tipo de impacto para alguns poucos, muitos ou ninguém, o que apenas reafirma nossa particular pequenez. A não ser que, como eu, os considere como marcos da estrada que percorro. Se são de granito — como os antigos — ou feitos por pedaços de pão, eventualmente devorados pelos pássaros, só o tempo dirá… enquanto o tempo “existir”.

Janeiro II
“O Beijo Eterno” e a Igreja e Convento de São Francisco, adiante à esquerda

Janeiro. No dia desse registro, voltava de ônibus bem cedo vindo da Zona Sul. Cheguei ao Centrão para pegar outro ônibus para a Cachoeirinha. Caminhava em direção ao Convento Franciscano, intrinsecamente ligado a minha história. Era a primeira hora naturalmente iluminada do dia e a cidade despertava.  As pessoas começavam a circular ou nem tanto. Abaixo da marquise de entrada da tradicional Faculdade de Direito do Largo São Francisco, deserdados dormiam a sono solto. Em frente a ela, passei pelo “O Beijo Eterno” ou “Idílio”, em homenagem ao poema homônimo e ao seu autor, o poeta Olavo Bilac, ídolo nacionalista dos estudantes da faculdade no início do século XX. Esculpida pelo sueco William Zadig, em 1920, sofreu uma campanha de ódio nos Anos 60, levada adiante por conservadores que a consideravam sem valor estético. Porém, outras questões ganhavam relevância: se tratava de um beijo inter-racial — entre uma índia e um branco — inteiramente nus. A mesma indignação patrocinada por “novos” conservadores, quase 60 anos depois, pela aparição de um beijo gay numa revista em quadrinhos. Ah… as voltas que o mundo dá…

Fevereiro III
Participação de ETs no Carnaval de 2020

Fevereiro. Ocorrido no final do mês, o Carnaval, no qual trabalhei como prestador de serviços de som e luz, se desenrolou já com as notícias sobre o contágio da Covid-19 para além das fronteiras da China, chegando com força a alguns países da Europa, como Grã Bretanha, França, Espanha e Itália. A chamada pandemia aparentemente não foi levada a sério e alguns deles não tomaram as medidas restritivas preconizadas para conter o novo coronavírus. O número de mortos subia dia a dia, encontrando a União Européia na contra-mão. Enquanto isso, no continente americano de Estados Unidos e Brasil, a vida continuava sua rotina despreocupada, incrivelmente a negar que a doença pudesse atravessar o Atlântico ou o Pacífico. Em comum entre os dois países, governantes da mesma cepa virulenta do fascismo talvez se vissem a salvo por conta de algum tipo de messianismo ou apenas priorizavam a visão do lucro financeiro, não importando as vidas em jogo. Até o povão se sentia imune, dizendo se tratar de uma doença de rico. Começou realmente com quem podia viajar para o exterior, mas hoje a população mais pobre é a que sofre as maiores perdas. Ainda estou esperando a chegada dos ETs…

Março I
Sol, mar e máscara em Março

Março. Mês de mar e amor. Amor pelo sol e pelo mar. Amor por amar. O Brasil contava os seus primeiros mortos, iniciado com a primeira vítima no dia 17 e eu sabia que as minhas mini-férias poderiam se prolongar se as medidas mais rígidas começassem a ser implementadas. Contrário à orientação da presidência da República, os governadores decidiram tomar providências mais sérias. Estava na Praia Grande há pouco tempo e talvez tenha tido apenas uns cinco dias antes que fosse proibido pisar na areia e nadar no mar. O meu caso com as ondas e a salinidade é algo que me define. Sou água, apesar de meu signo ser do ar. Os eventos programados para o mês foram cancelados, por conta do fechamento de clubes, buffets e restaurantes, entre outros espaços de festas e confraternização. Foi implementado o uso de máscaras em público e o distanciamento social. Fiquei totalmente isolado por três semanas. Havia barreiras sanitárias que impediam a descida ou subida de ônibus de viagem e carros de fora. Não fosse a pandemia e seu teor infeccioso, eu estaria muito bem. A solidão era uma companheira antiga e íntima.

Abril II
Baile de máscaras

Abril. Mês que apresenta efemérides como a do dia 21, de Tiradentes — Joaquim José da Silva Xavier — eleito herói por ter pretendido a separação de Portugal, pagando com a própria morte. A do dia 22, do Descobrimento do Brasil por Pedro Álvares Cabral que, na verdade, denuncia a data da invasão de Pindorama pelos portugueses. Foi re-significada com a reunião ministerial que foi divulgada tempos depois — a descoberta do verdadeiro Brasil. Dia 10, foi Sexta-Feira Santa, um final de semana prolongado, muito ansiado pelos trabalhadores para escaparem às montanhas, às praias e aos campos, se o isolamento social não transformasse todos os dias em domingos em casa. Uma página de negócios chegou a fazer uma matéria que frisava: “Os feriados de 2020 podem representar uma ameaça ou oportunidade para o seu negócio — tudo depende da sua capacidade de planejamento. Este ano, especialmente, teremos nove feriados prolongados — quase o dobro de 2019″. Não coloco aqui a fonte para não desmerecê-la. A bem da verdade, a não ser os cientistas sanitaristas, poucos acreditavam no que viria a acontecer. Para mim, está claro — até hoje e desde então — nunca mais saímos do dia 1º de Abril.

Maio I
Pão, pão, beijo, beijo

Maio. Mês de ficar resolutamente em casa. E dá-lhe fazer pão, inventar receitas, experimentar novos pratos. Ou deixar de acordar ou dormir em horários fixos. Dias de alternar rotinas, conversar à distância com pessoas que sequer conversávamos presencialmente e, no meu caso, escrever muito. Ler os livros que não tinha tempo, apagar a lista de eventos dos meses que viriam. A não ser um, em agosto — uma moça que não abriu mão de casar — mesmo com todas as restrições que permearão as atividades no setor de eventos. Iniciei uma rotina de exercícios que alternavam ciclismo (apenas na Praia Grande, em horários alternativos) e circuitos de caminhada em casa, com passagens por escadas, além de uso de pesos feitos com vasilhames de alças, cheias de água. No mais, seguimos caminhando como se estivéssemos no escuro, tateando as paredes, tentando não darmos uma topada numa pedra ou batermos a cabeça numa quina. Pessoalmente, não sei se por clarividência ou puro pessimismo, não via a luz no fim do túnel.

Junho
Mês das reticências…

Junho. Mês da conformação, último do semestre. Mês de estabelecer definitivamente as regras do “novo normal” — locução que significa apena isso mesmo. Porque há pessoas que não se conformam. Brincam com as possibilidades expressas em porcentagens, transformadas no jogo do “talvez, sim, talvez, não”. Um outro nível de negação, jogado em fases de perigos maiores ou menores. Bares reabertos lotados, festas clandestinas saudadas como a última chance de ser feliz, roletas russas em que as armas são as próprias pessoas  — seres que respiram o mesmo ar, sem máscara. Mês da nuvem de gafanhotos, insetos que ameaçavam as nossas fronteiras em contraponto aos gafanhotos humanos que assolam o Brasil desde sempre. Mês das reticências… como as que aparecem na foto acima, surgidas inadvertidamente. Mês de quem viver, verá…

Alê Helga— Darlene ReginaLunna Guedes

Isabelle Brum — Mariana Gouveia

BEDA / Scenarium / Projeto Fotográfico 6 On 6 / Monocromático

É muito comum que eu olhe para o alto. As nuvens, as busco como se fosse um mago a prefigurar em suas formas agouros de desgraças ou presságios de boas novas. Mas não infiro nada. Apenas sou apaixonado pelas transições dos vapores d’água de elefantes para personagens históricos, baleias para dragões. Quando as nuvens escurecem – eventual prenúncio de tempestade – raios podem vir a riscar o firmamento-campo-de-batalha da Natureza. No entanto, a abóboda sob a qual caminhamos, também poderá surgir em monocromático azul celeste, de indecente nudez, como esta tela que registrei em um março ainda incrédulo da borrasca pela qual passaríamos adiante.

Beda 6 On 6 - A
Azul celeste

 

Além do céu, busco o chão. Caminhante da metrópole, o cinza impera nas vias ou leitos carroçáveis (termo advindo dos tempos das carroças) pelos quais passo. Sou pedestre e onde moro costumamos caminhar a pé pelas rotas dos automóveis. É uma tradição que conheço desde que surgiu o primeiro asfalto no bairro. O rio cinzento só não é totalmente monocromático porque buracos surgem recorrentemente. Poucos metros se afiguram tão perfeitos como o que mostro aqui.

Beda 6 On 6 - B
Cinza asfalto

 

Para quebrar um pouco a monotonia das portas metálicas, uma loja da Praia Grande, cidade onde fiquei isolado uma parte da Quarentena, decidiu chamar a atenção com um lilás chamativo que apenas foi vislumbrado tão fulgurante porque estava fechada. Era o início da restrição no funcionamento de pontos comerciais e empresas. Normalmente, o belo campo de lavandas metálico ficaria menos expressivo se estivesse recolhido à luz do dia.

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Lilás lavanda

 

No bairro de Cidade Ocian, a prefeitura da Praia Grande pavimentou as ruas centrais com tijolinhos vermelhos. Ao som de “GoodbyeYellow Brick Road” na cabeça, viajei na possibilidade de ver Dorothy, com Totó ao seu lado a caminhar junto ao Leão, o Homem de Lata e o Espantalho. Ela caminhava entoando “Over The Rainbow” a caminho do mar, em direção ao Netuno e seu tridente. Uma faixa de luz do sol, por um breve instante, atendeu à imaginação do garoto que retornou ao lugar em que foi mais feliz.

Beda 6 On 6 - D
Vermelho tijolinho

 

Ouvi várias vezes o termo “verde de raiva”. Para mim, se há verde, há esperança. Desejo firmemente que o verde um dia se espalhe por nossos solos a perder de vista. Quando a vingança do verde prevalecer, talvez tenhamos alguma chance de sobrevivermos a nós mesmos.

Beda 6 On 6 - E
Verde esperança

 

A ausência de cor, também é uma cor. Ao contrário do branco – síntese de todas as cores – sem o campo escuro que se estende sobre nós, à noite, não poderíamos distinguir as luzes das estrelas, a Lua ou outros planetas. A escuridão parece esconder segredos e nos impulsiona a criar seres fantásticos onde somente imperam nossos fantasmas. O preto é paz…

Beda 6 On 6 - F
Preto paz

 

Ale Helga — Darlene Regina — Lucas Buchinger
Mariana GouveiaLunna Guedes

Beda Scenarium